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Paulo Freire, educador do mundo

Paulo Freire, educador do mundo

Quem me avisou desta bela poesia foi Peter Lownds, o escritor e poeta norte-americano mais brasileiro que existe, ele próprio um estudioso da obra de Paulo Freire. Não sei se cito um trecho ou todo o poema. Mas quem sou eu para editar a poesia de Paulo Freire? Então que siga inteiro este cântico de amor ao povo.
Por Urariano Mota no brasil247
Escritor Paulo Freire
Escritor Paulo Freire
Neste domingo, ele completaria 100 anos. Na verdade, outros cem anos vão passar e não passará a lembrança da sua obra em todas as gentes. Nascido no Recife em 19 de setembro de 1921, Paulo Freire superou a contradição de ser recifense e cidadão do mundo inteiro ao mesmo tempo. Muito além de `Pernambuco, ele se tornou um homem sem fronteiras por força do trabalho como filósofo e educador revolucionário.  
 
Perdoem por favor o tom de discurso à beira do túmulo. Desculpem a exaltação, que até parece exagero. Mas é que Paulo Freire sofre um segundo exílio post-mortem neste governo Bolsonaro. De Patrono da Educação Brasileira ele passou a ser perseguido de novo, proibido mais uma vez, um palavrão da ditadura novamente, apesar de ser o brasileiro mais vezes laureado com títulos de doutor honoris causa na maioria das universidades do mundo. Ou será por isso mesmo, por essa razão que ele sofre, num governo fascista que odeia os educadores e a educação?

Vale a pena lembrar uma brevíssima história da sua prisão em 1964, no quartel do exército em Olinda. Ali, um dos oficiais responsáveis pelo quartel de Obuses, sabendo que ele era professor famoso, solicitou a Paulo Freire que alfabetizasse alguns recrutas que não sabiam assinar nem o nome. Com paciência, Paulo explicou ao militar que estava preso exatamente por causa disso. “Eu estou preso porque alfabetizo, viu?”.   

Em “Educação como prática da liberdade”, escrito do Chile em 1965:
“Na experiência realizada no Estado do Rio Grande do Norte, chamavam de ‘palavra de pensamento’, as que eram termos e de ‘palavras mortas’, as que não o eram. Num dos Círculos de Cultura da experiência de Angicos, no quinto dia de debate, em que apenas se fixavam fonemas simples, um dos participantes foi ao quadro-negro para escrever, disse ele, uma ‘palavra de pensamento’. E redigiu: ‘o povo vai resouver os poblemas do Brasil votando conciente’… 

Em Pedagogia do Oprimido, escrito em 1968, o terceiro livro mais citado na área de humanidades em todo o mundo, Paulo Freire aprofunda o pensamento de como vê a educação:
“Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode ficar distante dos oprimidos, quer dizer, pode fazer deles seres desditados, objetos de um ‘tratamento’ humanitarista, para tentar, através de exemplos retirados de entre os opressores, modelos para a sua ‘promoção’. Os oprimidos hão de ser o exemplo para si mesmos, na luta por sua redenção. A pedagogia do oprimido, que busca a restauração da intersubjetividade, se apresenta como pedagogia do Homem….

Se, porém, a prática desta educação implica no poder político e se os oprimidos não o têm, como então realizar a pedagogia do oprimido antes da revolução? Esta é, sem dúvida, uma indagação da mais alta importância”. 

Em outros pontos da Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire fala melhor do seu diálogo com o marxismo, na sua prática educativa: “A tão conhecida afirmação de Lênin: ‘Sem teoria revolucionária não pode haver movimento revolucionário’ significa precisamente que não há revolução com verbalismo, nem tampouco com ateísmo, mas com práxis, portanto, com reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas…

As citações acima vêm como esclarecimento de que a sua pedagogia também era política, de um educador de esquerda. Mas não de um marxista ortodoxo, ou de um marxista organizado, pode ser dito. Ele possuía diferenças com o sectarismo do partido no Recife dos anos 60. Mas sempre guardava um diálogo fraterno, de futuro camarada, também pode ser dito.

Na leitura de suas obras, percebemos uma cultura ampla, filosófica, que se nutre dos clássicos marxistas e dos não-marxistas como Bergson, que vai das fontes de educadores nacionais e estrangeiros. Os conceitos que Paulo Freire descobre são de um pesquisador e pensador. Não sei em que ordem, se primeiro vêm da pesquisa nas ruas, no campo, ou do pensar.

É da sua formação o trabalho no meio do povo e a reflexão sobre esse trabalho no gabinete. Ou de modo mais claro, no que ele chama com muita razão de práxis: “A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição opressor-oprimidos.

Neste sentido, em si mesma, esta realidade é funcionalmente domesticadora. Libertar-se de sua força exige, indiscutivelmente, a emersão dela, a volta sobre ela. Por isto é que, só através da práxis autêntica, que não sendo ‘blablablá’, nem ativismo, mas ação e reflexão, é possível fazê-lo”.

Práxis viva, que não foi um objetivo retórico, mas viva em obra. Ou como ele fala em outra frase do livro Pedagogia do Oprimido, que denuncia o núcleo do seu ser: “só na plenitude deste ato de amar, na sua existenciação, na sua práxis, se constitui a solidariedade verdadeira”. E aqui chegamos a um ponto crucial da pessoa de Paulo Freire: ele era um homem profundamente amoroso, de um certo tipo de amor, de um afeto fino, daqueles que beijam as pessoas, os animais e as flores da sua infância e juventude no Recife. De modo lindo essa práxis amorosa vem clara em um poema.

Quem me avisou desta bela poesia foi Peter Lownds, o escritor e poeta norte-americano mais brasileiro que existe, ele próprio um estudioso da obra de Paulo Freire. Não sei se cito um trecho ou todo o poema. Mas quem sou eu para editar a poesia de Paulo Freire? Então que siga inteiro este cântico de amor ao povo, que o nosso maior educador escreveu no exílio, sob a mais funda saudade:

RECIFE SEMPRE
Cidade bonita
Cidade discreta
Difícil cidade
Cidade mulher.
Nunca te dás de uma vez.
Só aos pouquinhos te entregas
Hoje um olhar.
Amanhã um sorriso.
Cidade manhosa.
Cidade mulher.
Podias chamar-te Maria
Maria da Graça
Maria da Penha
Maria Betânia
Maria Dolores.
 
De Santiago te escrevo, Recife,
Para falar de ti a ti,
Para dizer-te que te quero
Profundamente, que te quero.
 
Cinco anos faz que te deixei –
Manhã cedo – tinha medo de olhar-te,
Tinha medo de ferir-te
Tinha medo de magoar-te.
Manhã cedo – palavras não dizia.
Como dizer palavra se partia?
 
Tinha medo de ouvir-me,
Tinha medo de olhar-me, Tinha medo de ferir-me,
Manhã cedo – as ruas atravessando
O aeroporto se aproximando,
O momento exato chegando,
Mil lembranças de ti me tomando
No meu silêncio necessário.
 
De Santiago te escrevo,
Para falar de ti a ti,
Para dizer-te de minha saudade, Recife,
Saudade mansa – paciente saudade,
Saudade bem-comportada.
 
Recife, sempre Recife, de ruas de
nomes tão doces,
Rua da União, que Manuel
Bandeira tinha “medo que
 se chamasse rua Fulano
de tal” e que hoje eu temo
que venha a se chamar
Rua Coronel Fulano de Tal.
 
Rua das creoulas
Rua da aurora
Rua da amizade
Rua dos Sete Pecados.
Recife sempre.
Teus homens do povo
queimados do sol
gritando nas ruas, ritmadamente:
Chora menino pra comprar pitomba!
Eu tenho lã de barriguda pra “trabiceiro”!
Doce de banana e goiaba!
Faz tanto tempo!
Para nós, meninos da mesma rua,
aquele homem que andava apressado
quase correndo – gritando, gritando:
Doce e banana e goiaba!
Aquele homem era um brinquedo também.
Doce de banana e goiaba!
Em cada esquina, um de nós dizia:
Quero banana, doce de banana!
Sorrindo já com a resposta que viria.
Sem parar,
sem olhar para trás,
sem olhar para o lado,
apressado, quase correndo,
o homem-brinquedo assim respondia:
“Só tenho goiaba
– Grito banana porque é meu hábito”.
Doce de banana e goiaba!
Doce de banana e goiaba!
Continuava gritando,
andando apressado,
sem olhar para trás,
sem olhar para o lado,
o nosso homem-brinquedo.
 
Foi preciso que o tempo passasse,
que muitas chuvas chovessem,
que muito sol se pusesse,
que muitas marés subissem e baixassem,
que muitos meninos nascessem,
que muitos homens morressem,
que muitas madrugadas viessem,
que muitas árvores florescessem,
que muitas Marias amassem,
que muito campo secasse,
que muita dor existisse,
que muitos olhos tristonhos eu visse,
para que entendesse
que aquele homem-brinquedo
era o irmão esmagado
era o irmão explorado
era o irmão ofendido
 o irmão oprimido
 proibido de ser.
 
Recife, onde tive fome
Onde tive dor
Sem saber por que
Onde hoje ainda
Milhares de Paulos
Sem saber por que
Têm a mesma fome
Têm a mesma dor,
Raiva de ti não posso ter.
 
No ventre ainda, ajudando a mãe
a pedir esmolas
a receber migalhas.
Pior ainda:
a receber descaso de olhares frios.
Recife, raiva de ti não posso ter.
 
 
Recife onde um dia tarde
No ventre ainda, ajudando a mãe
a pedir esmolas
a receber migalhas
Pior ainda:
a receber descaso de olhares frios.
Recife, raiva de ti não posso ter.
 
Recife, cidade minha,
Já homem feito
Teus cárceres experimentei.
Neles, fui objeto
Fui coisa
Fui estranheza. Quarta feira. 4 horas da tarde.
O portão de ferro se abria.
Hoje é dia de visita.
Sem fila.
 
O relógio de minha casa também dizia
Um, dois, três, quatro,
Quatro, três, dois, um,
Mas sua cantiga era diferente.
Assim, cantando,
O tempo dos homens
Apenas marcava.
Recife, cidade minha,
Em ti vivi infância triste
Adolescência amarga em ti vivi.
 
Não me entendem
Se não te entendem
Minha gulodice de amor
Minhas esperanças de lutar
Minha confiança nos homens
Tudo isto se forjou em ti
Na infância triste
Na adolescência amarga
O que penso
O que digo
O que escrevo
O que faço
Tudo está marcado por ti.
Sou ainda o menino
Que teve fome
Que teve dor
Sem saber porque
só uma diferença existe
entre o menino de ontem
e o menino de hoje,
que ainda sou:
Sei agora por que tive fome
Sei agora por que tive dor.
 
Recife, cidade minha.
Se alguém me ama
Que a ti me ame
Se alguém me quer
Que a ti te queira.
Se alguém me busca
Que em ti me encontre
Nas tuas noites
Nos teus dias
Nas tuas ruas
Nos teus rios
No teu mar
No teu sol
Na tua gente
No teu calor
Nos teus morros
Nos teus córregos
Na tua inquietação
No teu silêncio
Na amorosidade de quem lutou
E de quem luta.
De quem se expôs
E de quem se expõe
De quem morreu
E de quem pode morrer
Buscando apenas
Cada vez mais
Que menos meninos
Tenham fome e
Tenham dor
Sem saber por que
Por isto disse:
Não me entendem
Se não te entendem.
O que penso,
O que digo,
O que escrevo,
O que faço,
Tudo está marcado por ti.
Recife, cidade minha,
Te quero muito, te quero muito
Santiago, fevereiro de 1969.
Paulo Freire”

 
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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!


 
 
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