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Abelhas: Agrotóxicos devastam colmeias

Abelhas: Agrotóxicos devastam colmeias

Mal o dia havia raiado e já se ouvia o ronco do motor do avião agrícola – aquele mosquito metálico, gigante, borrifador de veneno. Voando baixo, ele estava ali para espalhar altas doses de inseticidas sobre uma enorme área onde se revezam lavouras de soja e milho. O cheiro é tão forte…

Por Jaime Sautchuk

Seu Orlando e Dona Zilá, moradores de um sítio não muito longe dali, pressentem o estrago nas colmeias por eles dispersas nas redondezas. No início da tarde, a cena do crime: começam a aparecer abelhas mortas pelo chão e em pouco tempo as colmeias montadas pelo casal, com abelhas europeias, estarão dizimadas.

Eles não sabem o que irá ocorrer com as abelhas silvestres, incrustadas nas matas de toda a região. Sobre essas comunidades ninguém tem controle, muito pouco se sabe. É certo, no entanto, que elas também deixarão de visitar as plantas e de produzir mel com mais brevidade ainda, pois as abelhas domésticas são alimentadas por seus criadores, o que as torna mais resistentes.

Grande parte das abelhas mortas por veneno é infectada quando sai pra percorrer suas rotas de polinização ou coleta de alimentos. Normalmente, elas morrem ali mesmo. Muitas vezes, porém, elas conseguem voar até suas colmeias e se recolher, indo morrer lá dentro, o que provoca a contaminação de todo o enxame, que em poucas horas estará extinto.

Nos primeiros meses do ano, grande mortandade de abelhas ocorreu em vários estados brasileiros com a destruição de centenas de apiários pela ação de inseticidas utilizados em grandes lavouras. Além de serem venenos altamente letais, não há controle sobre os métodos de uso, especialmente sobre a quantidade usada em cada aplicação.

Em verdade, o modelo agrícola em vigor no Brasil, com extensas lavouras e larga utilização de agrotóxicos, está matando abelhas de modo desenfreado, afetando negativamente o ciclo de vida em nossa fauna e flora.

Ademais, a mudança do cenário socioeconômico do campo, com a expulsão do pequeno proprietário pelo grande produtor, ajuda a afetar o setor. A manutenção de colmeias como atividade agregada requer esmero e dedicação e é importante gerador de renda, mas esses fatores acabam virando secundários no processo.

MAIS VENENO

Atualmente, os estados da Região Sul lideram a produção nacional, mas competem com alguns estados nordestinos, especialmente o Ceará, produtor tradicional, que vem passando por ações de modernização de sua apicultura.  As previsões da Federação de Apicultura do Ceará (Fecap) são de retomada de posição de liderança no ranking nacional ainda em 2019. Todos, porém, enfrentam um inimigo comum: o agrotóxico.

No final de maio, uma nota circulou na mídia oficial, informando que o Ministério da Agricultura havia publicado, no Diário Oficial da União, a autorização para comercialização de mais 31 agrotóxicos no Brasil, dando continuidade ao objetivo do governo de Jair Bolsonaro de agilizar as análises dos pedidos de registro.

Dos 31 produtos, 13 foram avaliados como extremamente tóxicos à saúde humana e 14 como muito ou altamente perigosos ao meio ambiente. Segundo a jornalista Fernanda Wenzel, a lista não traz novidades em termos de moléculas. Ou seja, são os mesmos princípios ativos já vendidos no Brasil, apenas sob novas marcas (genéricos) ou formulações.

“O que chama atenção é que um dia após o Dia Mundial das Abelhas (20 de maio), marcado por alertas sobre a mortandade destes polinizadores, o governo registrou mais dois inseticidas à base do princípio ativo Fipronil e um à base de Tiametoxam (neonicotinoide proibido na União Europeia), diretamente relacionados às mortandades de abelhas”, afirma ela.

Ela produziu um material que contou com a participação de vários técnicos, especialistas, que avaliaram a situação de modo sistemático.

“Não existe uma doença que mate as abelhas, 100 colônias ao mesmo tempo, em dois, três dias. Isso é característico do uso de agrotóxicos. Nós temos vários casos no Brasil, isso vem acontecendo há bastante tempo. A gente tem trabalhado inclusive com os agricultores nos sistemas de aplicação para diminuir, mas inseticida é para matar inseto, e abelha é inseto”, explica Roberta Nocelli, bióloga e professora da Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo.

As abelhas são as principais polinizadoras da maioria dos ecossistemas do planeta. Voando de flor em flor, elas polinizam e promovem a reprodução de diversas espécies de plantas. No Brasil, de 141 espécies de plantas cultivadas para alimentação humana e produção animal, cerca de 60% dependem em certo grau da polinização deste inseto. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 75% dos cultivos destinados à alimentação humana no mundo dependem das abelhas.

MAIS MORTANDADE

O cientista Albert Einstein previu, no século passado que, se as abelhas desaparecessem da superfície da Terra, o ser humano teria apenas mais quatro anos de vida.

A morte em grande escala desse inseto, interpretada como apocalíptica na época, hoje é um alerta real. Desde o começo do século, casos de morte e sumiço de abelhas são registrados nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, estudiosos destacam episódios alarmantes a partir de 2005.

Agora, o fenômeno parece chegar ao ápice. Nos últimos três meses, mais de 500 milhões de abelhas foram encontradas mortas por apicultores apenas em quatro estados brasileiros, segundo levantamento da Agência Pública e Repórter Brasil. Foram 400 milhões no Rio Grande do Sul, 7 milhões em São Paulo, 50 milhões em Santa Catarina e 45 milhões em Mato Grosso do Sul, segundo estimativas de associações de apicultura, secretarias de Agricultura e pesquisas realizadas por universidades.

O principal causador, afirmam especialistas e pesquisas laboratoriais analisadas pela reportagem da Pública, é o contato com agrotóxicos à base de neonicotinoides e de Fipronil, produto proibido na Europa há mais de uma década. Esses ingredientes ativos são inseticidas fatais para insetos, inclusive abelhas, e quando aplicados por pulverização aérea se espalham pelo ambiente. Os principais inimigos das abelhas são os agrotóxicos neonicotinoides, uma classe de inseticidas derivados da nicotina, como por exemplo o Clotianidina, Imidacloprid e o Tiametoxam.

A diferença para outros venenos é que ele tem a capacidade de se espalhar por todas as partes da planta. Por isso, costuma ser colocado na semente, e tudo acaba com vestígios: flores, ramos, raízes e até no néctar e pólen. Eles são usados em diversas culturas, como de algodão, milho, soja, arroz e batata.

Até os Estados Unidos caminham na mesma direção, de controle do uso de defensivos agrícolas, em defesa das abelhas. Em 2013, um relatório do Departamento de Agricultura americano (USDA) mostrou que quase um terço das abelhas de colônias do país morreram durante o inverno de 2012/2013. No ano seguinte, o então presidente americano Barack Obama proibiu o uso de neonicotinoides em áreas de vida selvagem.

Além dos neonicotinoides, há casos de mortandade relacionados também ao uso de agrotóxicos à base de Fipronil, inseticida que age nas células nervosas dos insetos e, além de ser utilizado contra pragas em culturas como maçã, soja e girassol, é usado até mesmo em coleiras antipulgas de animais domésticos.

Muitas vezes esse veneno é aplicado em pulverização aérea, o que o expõe diretamente às abelhas. Segundo pesquisa da Embrapa, de 2004, 19% do agrotóxico aplicado através do método de pulverização aérea são dispersados para áreas fora da região de aplicação, bem além do seu alvo.

MONITORAMENTO

Por meio de notícias da imprensa, investigações do Ministério Público e estudos científicos, a reportagem já citada identificou casos de mortandade de abelhas em pelo menos dez unidades da Federação brasileira, desde 2005: Ceará, Distrito Federal, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

O engenheiro agrônomo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Aroni Sattler é especialista em sanidade das abelhas e trabalha na área desde 1973. Segundo ele, casos de mortes de enxames se tornaram mais recorrentes na última década. “Devido ao meu trabalho, sempre recebi amostras de abelhas para análises, e vim percebendo que cada vez mais não havia sinais de doenças nos insetos que explicassem mortandades tão agudas”, explica Aroni.

No ano passado, ele foi procurado pelo Bioensaios, um laboratório privado, pra orientar um trabalho sobre coleta de amostras em casos de mortandade. Foram analisados 30 casos de grandes baixas em enxames no Rio Grande do Sul. Os resultados mostram que cerca de 80% ingeriram ou tiveram contato com Fipronil antes de sucumbir.

O especialista aponta que, mesmo naquelas que não apresentaram vestígio dos agrotóxicos, pode ter ocorrido contato. “Nos outros 20%, é notado que a coleta das amostras não foi feita adequadamente, ou foi feita em um período muito longo após a mortandade, o que dificulta a identificação dos tóxicos”.

Ao mesmo tempo, porém, a maioria dos apicultores afetados no Brasil inteiro atesta nunca ter usado agrotóxicos em suas lavouras, de modo que a infestação tem origem externa. E coincide, sempre, com períodos de aplicação de venenos por via aérea, com uso de aviões borrifadores.

ECONOMISTAS

A Royal Economic Society, entidade que congrega os economistas britânicos, tem uma abelha no seu logotipo. Na terra de grandes economistas, o inseto laborioso é respeitado e sua forma de organização já serviu de base a incontáveis estudos acadêmicos.

As colmeias são, enfim, o que os economistas chamam hoje em dia de externalidade positiva. Ou seja, é um fator externo à Economia real que contribui positivamente à sua evolução. E continua sendo objeto de estudos.

O economista Tim Harford escreve uma coluna no jornal Financial Times. Recentemente, ele se ateve ao tema neste artigo cujo resumo é esclarecedor: “No decorrer do tempo, as pessoas começaram a se preocupar com o desperdício e com o tratamento dispensado aos animais que não apenas forneciam aos humanos mel, mas também polinizavam as plantas.

Na década de 1830, um movimento pelos direitos das abelhas emergiu nos Estados Unidos sob o lema ‘nunca mate uma abelha’. Em 1852, o escritório americano de patentes concedeu a patente número 9300A ao sacerdote Lorenzo Langstroth pela invenção de uma colmeia com moldura removível.

A colmeia de Langstroth é uma caixa de madeira com uma abertura na parte superior e molduras móveis, cuidadosamente separadas uma da outra pelo intervalo mágico de 8 milímetros de ‘espaço abelha’ – qualquer coisa maior ou menor que isso faz com que os insetos construam suas próprias estruturas nas molduras e dificultem a extração do mel.

A rainha fica na parte de baixo, separada por uma grade no ‘isolamento de rainhas’ – uma rede que a impede de circular, mas permite a entrada das abelhas operárias. Isso mantém as larvas distantes dos favos de mel. Os favos são retirados com facilidade e colhidos por uma centrífuga que gira e expele a parte líquida, filtrando o mel. Com esse aparelho, uma maravilha do design e da eficiência, a nova colmeia permitiu a ‘industrialização da abelha’. E foi essa industrialização que escapou a James Meade. A abelha melífera é um animal cuidadosamente domesticado.

Com as colmeias de Langstroth, as abelhas se tornaram portáteis. A partir de então, nada impedia que produtores rurais chegassem a um acordo financeiro com apicultores para que eles pudessem posicionar as colmeias no meio da plantação.

Algumas décadas depois do exemplo famoso de James Meade, outro economista, Steven Cheung, ficou curioso sobre o assunto e fez algo que nós economistas talvez não façamos o suficiente: ele chamou pessoas do ‘mundo real’ e perguntou a elas o que de fato acontecia. E descobriu que, com frequência, eram os produtores de maçã que pagavam aos apicultores pela polinização de suas plantações.

No caso de outras culturas, os apicultores de fato pagam aos produtores rurais pelo fato de que suas abelhas se beneficiam do néctar das plantações adjacentes. Um exemplo nesse sentido é a hortelã, que não precisa de ajuda das abelhas, mas que rende mel de excelente qualidade. Maçãs e abelhas não são, portanto, bons exemplos de externalidades positivas, já que a interação entre elas cria de forma natural um mercado – e grande.

Atualmente, seu centro de gravidade é a indústria de amêndoa da Califórnia. A oleaginosa ocupa quase 4 mil km² do Estado – e movimenta cerca de US$ 5 bilhões por ano. As amendoeiras precisam de abelhas – mais precisamente de 5 colônias por hectare, alugadas por cerca de US$ 185 cada uma.

As colmeias de Langstroth são amarradas umas às outras, carregadas em caminhões articulados – 400 por veículo – e levadas para os campos de amendoeiras da Califórnia a cada nova primavera. Isso tudo à noite, enquanto as abelhas estão dormindo.

Os números impressionam: 85% dos 2 milhões de colmeias comerciais existentes nos EUA são deslocados e, com eles, dezenas de bilhões de abelhas.

Como descreve a autora Bee Wilson em The Hive: The Story of the Honeybee and Us (A colmeia: a história da abelha melífera e nós), os grandes apicultores americanos administram 10 mil colmeias cada um e, da Califórnia, podem viajar milhares de quilômetros até chegarem aos campos de cerejas no Estado de Washington, aos campos de girassóis na Dakota do Norte e Dakota do Sul, às plantações de abóboras na Pensilvânia ou de blueberries no Maine.”

DILEMA

 “O prêmio Nobel de Economia James Meade estava equivocado ao imaginar a apicultura como uma espécie de idílio rural. As abelhas foram quase completamente industrializadas e a polinização, amplamente comercializada.

E isso nos coloca diante de um dilema. Ecologistas estão preocupados com a população de abelhas selvagens, que estão em franco declínio em diversas partes do mundo. Ninguém sabe ao certo o porquê. Entre motivos aventados estão parasitas, o uso de pesticidas na agricultura e o misterioso ‘distúrbio do colapso das colônias’, em que as abelhas simplesmente desaparecem e deixam a rainha para trás.

Como as abelhas domesticadas enfrentam as mesmas pressões, entraria em cena um princípio econômico simples – uma redução da oferta de abelhas acabaria pressionando os preços dos serviços de polinização.

Mas não é isso que os economistas estão vendo. O distúrbio do colapso das colônias tem tido efeito mínimo, considerando-se diversas métricas, sobre o mercado de abelhas. Produtores estão pagando basicamente a mesma coisa pela polinização, e os preços de novas rainhas praticamente não se mexeram.

Aparentemente, apicultores industriais conseguiram desenvolver estratégias para manter a estabilidade das populações usadas no negócio, seja comercializando e reproduzindo em cativeiro abelhas-rainhas ou dividindo colônias. É por isso que não há redução na oferta de mel – ou de amêndoas, maçãs ou blueberries. Pelo menos até agora. Deveríamos comemorar a ação de incentivos econômicos na preservação de parte da população de abelhas? Talvez.

Outra perspectiva é a de que o impulso da economia moderna de controlar e monetizar o mundo natural é justamente o que causou o problema. Antes de a agricultura monocultora mudar ecossistemas, não havia a necessidade de levar as colmeias de Langstroth de um lado a outro para polinizar plantações – populações locais de insetos faziam o trabalho de graça.

Então, se quisermos um exemplo de externalidade positiva – algo que o mercado não regulado não produzirá na quantidade que a sociedade desejaria –, talvez devêssemos olhar para um uso da terra que contribuísse para a proliferação de abelhas selvagens e de outros insetos. Campos de flores selvagens, talvez – e alguns governos já estão subsidiando esse tipo de iniciativa, assim como James Meade os aconselharia.”

Jaime Sautchuk 

Jornalista Escritor

 


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