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A morte silenciosa dos rios do Cerrado

A morte silenciosa dos rios do Cerrado

A morte silenciosa dos rios do Cerrado

De maneira geral ou bem específica, como é o caso dos cursos d’água do oeste da Bahia, sul do Piauí, noroeste do Tocantins, Maranhão e norte de Minas, as águas do Cerrado padecem de um mal semelhante à diabetes escondida ou disfarçada que, quando se manifesta, dificilmente o portador escapa dela com vida.

Por Altair Sales Barbosa 

No caso da diabetes, a doença vai minando paulatinamente alguns órgãos vitais, terminando com a falência deles. A amputação de membros é apenas uma das manifestações, mas a doença ataca os rins, o coração e o sistema nervoso.

A diabetes pode ser considerada uma doença crônica que tem como causa a falta de produção de insulina no organismo, que é um hormônio controlador da glicose nas correntes sanguíneas.

Numa comparação rudimentar entre a diabetes e os rios do Cerrado, a insulina que mantém o equilíbrio dos rios tem origem nos lençóis subterrâneos, que são fontes de águas armazenadas nas rochas porosas sedimentares.

Ela, que ao longo de milhões de anos foi sendo depositada na região, como é o caso do arenito Urucuia, em Minas, oeste da Bahia, noroeste do Tocantins e o arenito Poty, do sul do Piauí e Maranhão. Quando a fonte de insulina é insuficiente, os cursos d’água superficiais entram em desequilíbrio, que se manifesta de diversas formas.

O desequilíbrio altera a dinâmica do rio, como se tivesse afetado o seu sistema nervoso, aumenta a turbidez da água, como se seus rins deixassem de funcionar, além do que o veneno utilizado fica no solo e, quando carreado para o leito do rio, afeta seu sistema vital, fazendo desaparecer grande parte de sua fauna.

A ausência de água nos lençóis subterrâneos provoca a amputação de vários membros integrantes da bacia. Essa amputação inicia com a migração das nascentes até o desaparecimento total de muitos cursos d’água. Esse é o início do fim e se conclui com a morte do rio e todo o seu entorno, incluindo a desestruturação de comunidades humanas, através da desterritorialização.

Nunca compreendi a atitude de certos funcionários públicos, que se valendo de imagens de satélite argumentam que 40% ou 50% do Cerrado ainda estão preservados.

A imagem de satélite, para essa finalidade, mostra apenas o dossel da vegetação arbórea restante, não mostra a vegetação que constitui os estratos inferiores do Cerrado, incluindo a vegetação rasteira, constituída basicamente por gramíneas, com uma grande variedade de capins nativos e bambuzinhos, que na realidade exercem uma função ecológica vital para o bioma, pois é o tipo de vegetação que retém as águas das chuvas que lentamente vão abastecer os lençóis subterrâneos e formar os aquíferos – a insulina dos rios.

Fico a indagar: a quem interessa esse tipo de informação descalçada de uma visão sistêmica do Cerrado? Será que é usada para justificar mais ocupações intensivas ou reflete simplesmente falta de conhecimento?

Não entendo, também, ou talvez não queira entender, a visão obtusa de certos profissionais liberais, funcionários públicos ou free-lancers contratados para falarem que a vazão dos rios tenha diminuído em função de mudanças climáticas.

Ora, todos nós que estudamos o rol das ciências da evolução, incluindo estratigrafia, climatologia, sedimentologia, sabemos que mudanças climáticas não ocorrem bruscamente, demandam centenas, às vezes milhares de anos para um novo padrão se estabelecer

O que pode acontecer é um período de estiagem mais prolongado, em decorrência de fatores naturais, tais como circulação marinha, que afeta a circulação atmosférica, resfriamento ou aquecimento das águas oceânicas, ação dos ventos solares, ou mesmo das correntes de convecção existentes no Manto da Terra.

Porém, são fatores isolados e isoladamente não estabelecem padrões, a não ser que pendurem por um longuíssimo tempo.

Estudos de estratigrafia e sedimentologia, apoiados em diversas datações radiométricas, têm demonstrado que o padrão climático, com uma estação seca e outra chuvosa, opera nos chapadões centrais da América do Sul, área ocupada por Cerrado desde pelo menos há 45 milhões de anos.

Do final do Pleistoceno e início do Holoceno, quando populações humanas já ocupavam as grutas e cavernas existentes no Cerrado, a estratigrafia mostra de forma clara essa oscilação, sendo a estação chuvosa demonstrada por camadas claras e a estação seca explicitada por sedimentos escuros. Esse padrão é tão evidente que não deixa dúvidas quanto à sua existência pretérita.

Portanto, o discurso da diminuição da vazão dos rios, associado a mudanças climáticas, não passa de uma falácia.

Não é preciso ser especialista para enxergar o prejuízo irreversível causado nas áreas do Cerrado. Basta acessar uma imagem de satélite da região para constatar grandes quadrículas nos interflúvios com monoculturas e grandes círculos demarcados pela irrigação de pivôs.

Os motores que fazem funcionar as máquinas da irrigação são tão possantes que necessitam de baterias de motores auxiliares, para colocá-los em operação. Quando este complexo começa a funcionar, os rios sofrem impactos gigantescos, alguns param totalmente do ponto de captação para baixo. Pensem, se fôssemos animais aquáticos o que faríamos? E se fôssemos população ribeirinha, vivendo da produção familiar, ou se vivêssemos em alguma cidade ou povoado abaixo desses sistemas, qual seria a nossa reação?

Com relação aos animais, a resposta é fácil, mas com relação aos humanos a resposta é difícil, pois os humanos agem muitas vezes por interesses individuais, às vezes têm conhecimento dos problemas, porém, pode lhes faltar a consciência, elemento fundamental que os transforma em cidadãos e os faz agirem coletivamente, ou seja, em benefício da coletividade.

Muitos sentem medo de lutar contra os lobos – os donos do capital –, mal sabendo que estes já lhe tiraram quase tudo: os ideais, o bem-estar, os amigos, falta apenas lhes tirarem a alma, se é que isto já não aconteceu. Seria bom neste momento indagar: em que aurora se escondem e como esperam o amanhecer?

Já escrevi centenas de artigos sobre o assunto, falando sobre as consequências da retirada da cobertura vegetal nativa, dos aquíferos, do futuro das águas. Também chamando atenção para as consequências que virão em breve, se esse modelo predatório de relação com o território continuar.

Quase nada teve ressonância. Um ou outro idealista ou grupo de idealistas empunha a bandeira da construção de um futuro melhor, mas, diante de tanto poder, só encontra ao final da luta uma espécie de cadáver no calabouço. E o entusiasmo que o impulsiona, qual uma luz de candeia, vai se apagando pouco a pouco.

Nunca entendi a voracidade da ganância dos grandes empresários rurais, muitos dos quais nem conhecem a região, mas suas ações aniquilam tudo. Não têm compromisso com o Estado nem com as futuras gerações, seus filhos e netos.

Por isso, menos ainda entendo a ação dos políticos e de alguns advogados nacionais que, com unhas e dentes, protegem esses exterminadores e provocadores de entropias ambientais e sociais. Serão cegos? Mal-intencionados? Onde foi que se escondeu a luz dos olhos deles?

Não tenho respostas.

Também não sei onde mora a aurora daqueles que um dia despertaram para a esperança.

Só uma certeza eu tenho: no silêncio acelerado do tempo, nossos rios vão morrendo.

A MORTE DOS RIOS É APENAS A PONTA DE UMA PROCISSÃO FÚNEBRE

RIOS DO CERRADO

Tenho expressado nos meus escritos que o Cerrado deve ser visto como um Sistema Biogeográfico, não só composto de vegetação, mas de um conjunto de elementos interdependentes e que qualquer modificação em um desses elementos desencadeia modificações nos demais.

A vegetação varia de um gradiente totalmente aberto, como as campinas, até ambientes sombreados com manchas de mata, passando por uma variedade de muitas formas intermediárias, mas todas interdependentes.

Essa ligação se dá também com o solo, com a água, com os animais, com a amplitude térmica diária, com a geomorfologia e assim por diante – todas são elos de uma mesma corrente. A junção de alguns desses elementos foi fator primordial de ocupação humana, desde os ancestrais indígenas até a contemporaneidade.

Os lemas que guiaram a conquista do território quase sempre foram a força, a ganância e o desrespeito ideológico, deixando sempre rastros de profunda violência e desrespeito aos elementos componentes do sistema.

Estudos referentes ao sequestro e fixação de dióxido de carbono por formas vegetacionais demonstram a importância e a relação direta que o Cerrado tem exercido ao longo da sua história evolutiva para o equilíbrio da vida no planeta Terra. No mesmo sentido, estudos de Geotecnia apontam o valor dos lençóis freáticos, artesianos e aquíferos, oriundos do Cerrado, para a perenidade das principais bacias hidrográficas da América do Sul.

Entretanto, a ocupação humana desordenada, decorrente de programas de políticas públicas equivocadas, que colocam o Cerrado como grande fronteira de expansão agrícola e econômica, tem criado um panorama assustador, de dimensões nunca observadas na História da Humanidade.

Nesse contexto, o Cerrado foi e é recortado por inúmeras estradas, rios são represados, montanhas aplainadas, vegetação derrubada, rompendo o equilíbrio da cadeia alimentar. Como consequência, animais são levados à extinção e comunidades rurais desestruturadas de forma avassaladora, gerando o crescimento rápido e desordenado dos polos urbanos.

Geralmente, os responsáveis pela implantação de políticas públicasnão levam em consideração o “tempo da natureza” em seus planejamentos; tampouco consideram a dinâmica da Ecologia do Cerrado. Por essa razão são incapazes de entender aspectos da sua história evolutiva, cujo tempo é medido pelos padrões estabelecidos pela Geologia e calculado em milhares, milhões e até bilhões de anos antes do tempo presente.

Se esse cenário continuar persistindo, dentro de um tempo mais curto que possamos imaginar, poderemos presenciar um quadro desolador, conforme nos apontam dados e observações atuais.

No Sistema Biogeográfico do Cerrado, as águas subterrâneas se acumulam diferentemente nos diversos subsistemas.

Nos Subsistemas de Campos, também conhecidos pelas denominações de Chapadões ou Campinas Tabulares, o lençol de água é profundo e constitui-se no grande alimentador dos aquíferos. E, dependendo da natureza do solo, a água das chuvas que é infiltrada se desloca de forma mais ou menos rápida em direção aos aquíferos.

Nos chapadões de origem lacustre, a infiltração é mais lenta e depende exclusivamente das formas vegetacionais nativas. Nos Subsistemas de Cerrado stricto sensu e Cerradão, situados nos interflúvios, a água da chuva que se infiltra no solo forma um lençol freático rico, abundante, e também profundo. Grande parte das águas pluviais escorre para o leito dos rios de acordo com a declividade dos terrenos, onde o estrato de gramíneas e arbustos nativos é denso, não há processos acentuados de ravinamentos; o contrário ocorre quando aparecem manchas que caracterizam áreas desnudadas.

Nos Cerrados e Cerradões, situados em áreas com declives mais acentuados, não há formação de lençol freático. As águas pluviais escorrem com velocidade para o leito dos cursos d’água.

No subsistema de Matas, o lençol freático é abundante e subsuperficial, em função do caráter ombrófilo, que diminui o impacto da insolação e da serapilheira que protege o solo. A rede hidrográfica que aí se forma é caracterizada por pequenos córregos e muito rica. Sua origem e alimentação estão na dependência direta dos lençóis freáticos aí existentes.

Nas Matas Ciliares, o panorama é similar; a diferença é que o lençol freático alimenta diretamente o curso d’água mais próximo, através do escoamento rápido.

Nas Veredas, em função do sistema radicular das plantas e do caráter do solo húmico, turfoso e às vezes argiloso, o lençol é abundante e superficial, formando pequenas lagoas e sendo responsável pelas nascentes dos cursos d’água do Cerrado, cuja morfologia se apresenta como um anfiteatro.

Uma vez retirada a cobertura vegetal nativa, em qualquer subsistema de Cerrado, tem início um processo de desequilíbrio, que se manifesta nas formas seguintes. O primeiro lençol a secar é o que se encontra nos subsistemas de Matas, Matas Ciliares e Veredas.

O tempo para a finalização desse processo, de acordo com observações, situa-se entre dois e cinco anos. Nas Veredas, por se tratar de um lençol superficial, o processo de desaparecimento será muito acelerado; talvez não chegue a alcançar o período de dois anos.

Nos Capões ou manchas de matas mais homogêneas, tipo as que definiam em outros tempos o chamado Mato Grosso Goiano, a rede de drenagem, caracterizada por pequenos córregos, também será extinta no prazo de dois a cinco anos, deixando nos locais os caminhos secos, que serão avolumados por processos erosivos colossais em cada estação chuvosa, dependendo da gênese dos solos.

Nos Cerrados e Cerradões situados nos interflúvios, os lençóis secarão no prazo máximo de cinco a oito anos. Haverá a acentuação dos processos de ravinamento, cujas erosões serão capazes de esculpir no solo sinistras cicatrizes ruiniformes.

A retirada total da cobertura vegetal afetará, também de forma decisiva, a já reduzida recarga dos aquíferos, cujas reservas chegarão a um nível crítico, pois as águas pluviais que conseguirem penetrar através do solo serão de imediato absorvidas por estes, dado aos seus estados de aridez, em função da insolação. A pouca umidade retida evaporará de forma rápida devido às mesmas causas.

No início, os problemas oriundos dessa situação poderão ser contornados com a construção de barramentos, através de curvas de níveis e pequenos açudes, para reter as águas das chuvas.

Entretanto, os ambientes que surgem desse processo originam a argilicificação e a consequente impermeabilização do fundo dos poços que, associada à forte insolação, resultará numa ação de nula eficácia.

O primeiro aquífero a ter suas reservas diminuídas será o Urucuia, até o quase total desaparecimento, seguido do aquífero Bambuí e do aquífero Guarani. O prazo para finalização deste processo, de acordo com dados de Geotecnia atuais, deverá compreender um período situado entre 15 a 25 anos.

RIOS DO CERRADOCom o desaparecimento do lençol freático, seguido da diminuição drástica da reserva dos aquíferos, os rios iniciarão um processo de diminuição da perenidade, oscilando sempre para menos, entre uma estação chuvosa e outra, e desaparecendo quase que por completo na estação seca. Este fato afetará primeiro os pequenos cursos d’água, depois os de médio porte e, em seguida, os grandes rios.

Os fenômenos ocorridos nos chapadões centrais do Brasil, em função do desaparecimento do Cerrado, afetarão de forma direta várias partes do Continente.

A parte sul da calha do rio Amazonas, representada pelos baixos chapadões, terá uma rede de drenagem insignificante no que diz respeito ao volume d’água, uma vez que os grandes afluentes da margem direita, que têm suas nascentes e seus alimentadores situados no Cerrado, deixarão de existir ou terão seus volumes diminuídos de forma significativa nos cursos superiores e médios.

Os grandes afluentes do rio Amazonas, pela sua margem direita, serão alimentados apenas nos seus cursos inferiores, fato que reduzirá em mais de 80% suas vazões, isto em função de estarem na dependência direta do lençol freático, que depende da vegetação situada numa base cratônica.

A floresta equatorial deixará de existir na sua configuração original, sendo paulatinamente substituída por uma vegetação rala tipo caatinga, salpicada em alguns locais por espécies de plantas adaptadas a um ambiente mais seco.

O vale do Parnaíba, englobando a bacia geológica Parnaíba- Maranhão, será invadido na direção sul/norte por dunas arenosas secas, provenientes da formação Urucuia, existente no Jalapão e Chapada das Mangabeiras.

E, na direção norte/sul, por sedimentos arenosos litorâneos, da Formação Poty, que caracterizam os Lençóis Maranhenses e Piauienses, que em virtude de condições favoráveis terão facilidade de transporte eólico em direção ao interior. Os atuais poços jorrantes do vale do Gurguéia deixarão de ser fluentes, mas uma ou outra pequena fonte continuará existindo de forma precária.

Com o desaparecimento dos principais afluentes do rio São Francisco, pela sua margem esquerda, que cortam o arenito Urucuia, a ausência de alimentação constante, associada ao assoreamento, contribuirá para o desaparecimento do grande rio, nos seus aspectos originais. Permanecerão algumas lagoas e cacimbas onde o terreno tiver característica argilosa, ou outra rocha impermeabilizante originária da metamorfose do calcário Bambuí.

A Caatinga que já caracteriza parte do curso inferior do rio São Francisco avançará um pouco mais em direção ao norte, transicionando paulatinamente para a formação de uma grande área desértica, que certamente abrangerá o centro, o oeste, o sul da Bahia e norte e centro de Minas Gerais.

A região da Serra da Canastra permanecerá com alguns elementos originais, como uma espécie de enclave geoecológico, com clima subúmido.

Nas áreas correspondentes aos formadores e bordas da Bacia Hidrográfica do Paraná, as desintegrações intensas dos arenitos Botucatu e Bauru – que já formaram na região, durante os períodos Triássico e Cretáceo, grandes desertos, abrangendo um período de tempo compreendido entre 245 a 70 milhões de anos antes do tempo atual, com pequenas variações temporais – acordarão de um sono profundo, expandindo seus grãos de areia, em várias direções, provocando erosões colossais, assoreamento e acúmulos de sedimentos na configuração de dunas.

Do curso médio da Bacia do Paraná, até a parte superior de seus afluentes, haverá muitas áreas desérticas, separadas por formações rochosas e ostentando vegetação de características áridas e semiáridas.

A sub-bacia do rio Paraguai, alimentada pelo aquífero Guarani, sofrerá as mesmas consequências das demais regiões hidrográficas do Cerrado, transformando o atual Pantanal Mato-grossense numa área de desertos arenosos, tal como já ocorreu na região durante o Pleistoceno Superior, onde ali existia o deserto do Grande Pantanal.

Logo após o desaparecimento por completo das comunidades vegetais nativas, fato que poderá ocorrer em cinco anos, a agroindústria terá seus dias de grande apogeu em termos de produtividade.

Os núcleos urbanos criados ou dinamizados como suportes destas atividades atingirão também seu apogeu em termos de aumento demográfico e em termos de ofertas e oportunidades de serviços de natureza diversa.

Passado certo tempo, contado em alguns poucos anos, essa realidade experimentará um grave processo de modificação. A produtividade agrícola começará a diminuir assustadoramente, causando ondas de demissões nas empresas estabelecidas. Isso acontecerá porque a água dos lençóis subterrâneos não será mais suficiente para sustentar a produção no sistema de rotatividade de antes. Não haverá água para fazer funcionar os pivôs centrais. A atividade agrícola sobrevivente se restringirá à época da estação chuvosa.

Os solos, outrora preparados intensivamente para os cultivos, serão ocupados em pequenas parcelas, deixando exposta uma grande superfície desnuda. Da mesma forma, as pastagens que sustentavam a pecuária serão afetadas, provocando a redução paulatina do rebanho.

Essa situação começará a se refletir de forma visível nos polos urbanos. Haverá racionamento de água, em função da diminuição da vazão dos rios, que por sua vez provocará a redução do nível dos reservatórios. O racionamento de energia elétrica também será imposto pelas mesmas causas. O desemprego e os serviços, antes mais fartos e variados, afundarão numa crise sem precedentes.

Este fato provocará o aumento de pessoas ociosas e vadias nas cidades, situação que criará enormes embaraços sociais desagradáveis. Haverá a intensificação da criminalidade de todas as espécies, desde pequenos furtos, saques, assaltos e assassinatos. A prostituição se generalizará, trazendo consequências consideráveis para a saúde pública, que se apresentará cada vez mais decadente.

Os serviços públicos, incluindo a educação, por falta de arrecadação e manutenção, começarão a beirar o caos.

Depois de aproximadamente certo tempo contado em anos, a ausência de água nos rios criará uma paisagem desoladora. Áreas outrora ocupadas pelas lavouras serão caracterizadas então por formas vegetacionais rasteiras e exóticas, típicas de formações desérticas, com um ciclo vegetativo muito curto.

Grande parte dos campos agrícolas abandonados, sem a cobertura vegetal necessária para fixar o solo, passará durante algumas épocas do ano a ser assolada por ventos e tempestades fortes, em extensões quilométricas, que criarão uma atmosfera escura carregada de grãos finos de poeira, restos de adubos e outros produtos insalubres e nocivos à saúde.

Será possível ainda avistar um ou outro ser humano vivente, utilizando água empoçada, provavelmente de chuvas, e exercendo pequenas atividades de subsistência. Também será possível encontrar uma ou outra família desgarrada e solitária, sobrevivendo de restos que ainda poderão ser obtidos. Os mais bem situados economicamente migrarão para outras partes.

Os polos urbanos serão assolados por diversas epidemias, que provocarão índices alarmantes de mortalidade. A maioria da população sucumbirá, diante da miséria crescente.


Altair Sales Barbosa
Arqueólogo. Excertos do livro “O Piar da Juriti Pepena – Narrativa
Ecológica da Ocupação Humana no Cerrado”.- Sales, Altair [et al]. 

 
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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!


 

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Zezé Weiss

Gratidão por sua nota. Ela foi enviada ao professor Altair. Abs.

ÁLVARO RODRIGUES DOS´SANTOS

Caro Altair,
Li com atenção seu ótimo texto. Muito explicativo e muito alertador. Talvez valha a pena precisar mais o principal fato que colabora com a redução de alimentação de nossos lençóis freáticos: a agricultura e a pecuária implicam no sensível aumento do Coeficiente de Escoamento Superficial, que mede a quantidade de águas de chuva que escorre superficialmente, sem infiltrar no solo, e se dirige diretamente aos cursos d’água. Por óbvio que o preferível para evitar o rebaixamento do lençol subterrâneo seria interromper a ocupação de nossos cerrados por atividades agrícolas e pecuárias, e até reduzir as áreas já ocupadas. No entanto, como forma pelo menos compensadora do aumento do Escoamento Superficial deve-se obrigar as área agricultadas a adotar expedientes de aumento de infiltração de águas de chuva, como implantação de “curvas de nível” com inclinação transversal contrária á do terreno, grandes e médios reservatórios de infiltração, manutenção de “ilhas” naturalmente florestadas, etc. Sugiro ao amigo contato com o Prof. Osvaldo Ferreira Valente, que tem se dedicado a recuperação de bacias hidrográficas, e que, com certeza, muito poderia colaborar em projetos aplicados ao nosso cerrado.
Abs
Geol. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)

Eduardo Pereira

Gratidão por seu comentário, que será encaminhado ao professor Altair, nosso mestre.

Eduardo Pereira

Gratidão pelo comentário, que será repassado ao professor Altair.

Josias Rincon

Excepcional artigo sobre nossos recursos hídricos e futuro das nossas cidades que certamente enfrentarão brevemente caos social e econômico pela escassez da água. Concordo com diversas afirmações sobre causas ambientais, principalmente a exploração desenfreada de nossos rios pelos canais de irrigação agrícola e de seus pivôs. Especialistas e governos devem agir imediatamente em defesa de nossos mananciais que deixaram de ser renováveis.

Mafalda

Altair, já ouvi falar sobre você. Mas não conheço seus escritos. Ontem assisti, aqui em Palmas, o filme “Ser Tão Velho Cerrado, do André Délia. Fala tudo o que você está dizendo, usando a linguagem artística. Olha , Altair, não podemos desanimar. Talvez seus escritos não tenha alcançado os corações que sofrem as mesmas angustias que você padece pelo meio ambiente. O grande problema do Brasil é que temos muitas coisas no papel que não passaram para o chão, onde realmente ganham vida. Mas os seus escritos servem para inspirar outras pessoas á lutarem. Você poderia fazer um texto para elaborar um abaixo assinado pela proteção ambiental do Estado de Goias? Exigindo redução do desmatamento e proteção do cerrado para a margem da BR 153? se sim, faça e me envie por favor. Aquela região está se tornando um verdadeiro deserto. Se o povo se unir, vai conseguir superar. sugiro que o Você forme um grupo de jovens e trabalhe com eles mostrando que são eles e seus descendentes as “gerações futuras” tantas vezes retratada na legislação ambiental brasileira. Assim encontrarão, em ti, forças para alavancar projetos de preservação ambiental para nosso Goias.

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