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Anamã: Metade do ano na água, outra metade na terra

Anamã: Metade do ano na água, outra metade na terra

Por Fábio Zuker/Amazônia Real 

Em Anamã, os problemas começam e terminam com a água. A cidade está localizada na confluência dos Rios Purus e Solimões, no interior do Amazonas – tornando-os extremamente fartos em peixes e fertilizando as terras para as pequenas produções agrícolas. As enchentes, que chegam a durar mais de cinco meses, obrigam a população a adaptar toda a arquitetura da cidade e os seus hábitos.

Na seca, a água fica lodosa, os peixes morrem e o acesso ao lago grande e às comunidades rurais se torna impossível. Em qualquer época, a água de consumo humano é de baixíssima qualidade: barrenta, ferrosa e malcheirosa. Nesse município, o aquecimento global não é uma hipótese longínqua, cujos efeitos serão sentidos em um futuro distante, mas uma realidade cotidiana.

A partir de meados de dezembro, com o aumento das chuvas que eleva os Rios Purus e Solimões, Anamã vai para debaixo d’água. A enchente pode durar até o mês de junho. Por não ter sistema de esgoto, conforme a água vai subindo, as fossas caseiras começam a vazar. Por estar em uma região de várzea de rio, o solo é barrento e, portanto, incapaz de reter fluxos de água. Aumentam as picadas de cobras e escorpiões, já que os animais acabam buscando as casas flutuantes como refúgio. Jacarés invadem os quintais.

É nessa época que ocorrem surtos de diarreia, micoses, hepatite A e B. As pessoas caminham pelas ruas ainda pouco alagadas, porém com água suja e contaminada pelos coliformes fecais das fossas sanitárias. Uma água pesada e que se move lentamente.

Conforme as águas vão subindo, aumenta a vazão do rio, dejetos humanos e outros tipos de lixos são arrastados pela correnteza. A força da água só não é maior pois os flutuantes à beira do paraná (braço de um rio) funcionam como uma peneira, diminuindo a vazão e impedindo que entrem grandes troncos na cidade, que neles ficam retidos.

Todos os carros precisam ser levados de balsa para a vizinha cidade de Manacapuru (a distância é de 90 quilômetros) e a locomoção pela cidade passa a ser feita exclusivamente por canoas e rabetas. O transporte para a escola, o policiamento, a remoção de lixo, as compras e idas à igreja, o encontro nos botecos próximos à praça principal, todas as dimensões da vida e da morte, na água e em canoas.

Os moto-táxis param de funcionar – ainda não desenvolveram um sistema de canoa-táxi – e seus condutores têm de se dedicar a outras atividades como a pesca ou trabalhar como auxiliares de descarregamento no porto. Essa atividade se torna menos penosa já que, com as águas elevadas, não é mais necessário subir e descer a rampa de difícil acesso ao terminal fluvial.

Construído na beira do paraná, o Hospital Francisco Salles de Moura, de Anamã, é anualmente renovado: “entra ano, sai ano, tudo isso aqui vai para baixo d’água”, afirma Dager Dourado, clínico geral que vive entre Anamã e Manaus. Para o médico, as cheias afetam o trabalho de atendimento à população e a rotina do hospital.

Durante as cheias, o hospital é transferido para um flutuante. Apesar da maleabilidade, a estrutura do hospital é, ano a ano, fragilizada. Algumas máquinas são fixadas no chão e não podem ser transferidas, passando cerca de dois meses submersas. As paredes apresentam rachaduras estruturais. “O hospital sofre isso desde 2012. Na época da construção, fez-se um estudo histórico. Não tinham essas enchentes”, garante o médico Dager. Os gastos com reformas no edifício pós-cheia são enormes.

A Escola Estadual Tancredo Neves, que também fica no beira-rio, foi totalmente reconstruída e “levantada” para aguentar as cheias. Luzinei Seixas de Oliveira, o vigia do edifício, conta que “essa escola era no térreo, junto com a rua. Qualquer enchente que tinha ela estava na água. A maior dificuldade é o material que perde”.

É através da arquitetura da cidade que podemos ver a forma pela qual as pessoas estão adaptando suas vidas. Quando aconteceram as primeiras cheias, em 2005, ainda sem a intensidade daquela de 2009, os moradores começaram a construir, às pressas, marombas, criando andares intermediários, mezaninos, em suas próprias casas e negócios.

Francisco Nunes Bastos (PMN) é o prefeito da cidade. Conhecido pelo apelido de Chico do Belo, ele conta que houve até um movimento para mudar a cidade de lugar; tirá-la da região de várzea para a de terra firme, na região de Arixi, junto ao lago grande de Anamã. Entretanto, a população não aderiu ao plano, já que durante a seca o acesso a Arixi fica praticamente impossível. Com receio de criar uma Anamã fantasma, que nunca seria habitada, a prefeitura abandonou o plano.

 

CHEIAS E SECAS CADA VEZ MAIORES

Nos últimos dez anos, foram registradas seis cheias extremas na região amazônica – três das cinco maiores enchentes desde que se iniciaram as medições no Porto de Manaus, em 1903, ocorreram a partir de 2009.

Verifica-se também, nos últimos anos, o aumento da amplitude entre o nível de águas durante as duas fases, ou seja: as cheias são cada vez mais cheias, e as secas cada vez mais secas. É no aquecimento das águas superficiais do Oceano Atlântico, decorrentes do aumento da temperatura global, que cientistas buscam as possíveis causas para essa talvez irreversível mudança no ecossistema da Amazônia.

“Com uma terra mais quente, mais água evapora no oceano, e mais chuvas na Amazônia”, resume Marco Oliveira, geólogo e pesquisador do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), vinculado ao Ministério de Minas e Energia. Com a transpiração da floresta, massas de ar úmido se deslocam em direção ao centro-sul do Brasil e países vizinhos, provocando as chuvas nessas regiões. A floresta amazônica não fabrica água, mas “a Amazônia recicla água”, afirma o pesquisador. Isso tem uma função direta em todo o ecossistema sul-americano.

O alemão Jochen Schongart, cientista florestal e pesquisador associado ao Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), chama a atenção para outros fatores que interferem na intensificação do ciclo hídrico da Amazônia, marcado pelo aumento na amplitude entre cheias e secas (média histórica de 10,2 metros), que ultrapassou 13 metros em vários anos durante as décadas recentes. Esse aumento de cheias é causado principalmente pelo aquecimento das águas superficiais do Atlântico Tropical, durante o período chuvoso, e, simultaneamente, pelo esfriamento das águas superficiais do Pacífico Equatorial.

As alterações climáticas causadas pelos fenômenos conhecidos sob o nome de El Niño e La Niña também influenciam os regimes de chuvas e o ciclo hídrico da Amazônia, explica Jochen. O El Niño decorre de um aquecimento incomum das águas frias do Pacífico, principalmente da costa litorânea do Peru, Equador e Chile. Esse aquecimento provoca chuvas inusuais na região, diminuindo o regime pluviométrico na Amazônia – e consequentemente aumentando as chuvas no Sul e Sudeste do Brasil. La Niña é o fenômeno inverso: as águas frias do Pacífico tornam-se ainda mais frias, causando mais chuvas na Amazônia – e consequentemente diminuindo as chuvas no Sul e Sudeste.

Para o pesquisador alemão, o aumento da frequência e da magnitude é inquietante. O ano de 2012 foi o recorde de cheia de Manaus desde que se iniciaram as medições: “Estamos falando da maior hidrobacia do mundo, quase 20% das águas doces do mundo. Então é algo para se preocupar”, alerta Jochen, que também chama a atenção para as consequências que podem ter a construção de usinas hidrelétricas na alteração desses ciclos hídricos.

 

A ÁGUA QUE NÃO É DE BEBER

“Todo mundo que chega aqui de fora adoece”, conta a enfermeira Fabrícia Nunes Batalha. Na cheia ou na seca, a qualidade da água em Anamã é péssima, alvo de reclamações constantes por parte dos moradores. “De manhã, a água é podre, podre, podre. A água fede e vem toda cheia de ferrugem”, reclama Nadione Correia Batalha. “A pior coisa da cidade é a água”.

Em Anamã, quem pode compra água mineral para beber, cozinhar e até tomar banho. Quem não tem os recursos para isso, vai periodicamente às duas principais fontes existentes na cidade: uma dentro da Escola Estadual Tancredo Neves e outra no balneário, nas imediações do bairro Esmeralda Moura, o mais atingido pelas cheias.

O agricultor Luiz Ribeiro dos Santos conta que é do poço que retira a água para viver. “Esse poço é uma bênção que joga água para a cidade todinha. Se não fosse ele, era difícil conseguir água boa. Porque essa encanada vem toda enferrujada”. Muitos, além de só usarem as águas do poço, ainda colocam gotas de cloro, já que mesmo essas águas são contaminadas pelas fossas sanitárias. “A água melhor para a gente tomar aqui, nem ela serve”, afirma Manoel Alves, também agricultor.

Luizinho Lelis de Chagas, autônomo, que trabalha em Anamã fazendo transporte de mercadorias no porto, comenta que “a cidade fica alagada, inundada, mas não para”. “Aqui são seis meses na terra, seis meses com água”, afirma um sargento da Polícia Militar da cidade que pediu para não ser identificado. O geólogo Marco Oliveira chama a atenção para o fato de Anamã ser a única cidade onde, em tempo de enchente, a Defesa Civil não interfere construindo pontes, pois a cidade já se adaptou.

Nada parece indicar aos pesquisadores que essa seja uma situação reversível ou mesmo temporária. A hipótese com a qual trabalham parece ser a de que o nível de chuvas na Amazônia tende a se intensificar. Mudanças climáticas em nível global afetam diariamente a população de pequenas cidades no coração da Amazônia, e a previsão, segundo Marco Oliveira, é que passem a existir cada vez mais “Anamãs” na Amazônia.

Fonte: Amazônia Real 

Fotos: BNC Amazonas, Conjuntura Online, Consolide Sua Marca, Portal do Holanda.

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