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Chico Mendes: “Sabia que chegaria, a morte sem avisar”

Chico Mendes: “Sabia que chegaria, a morte sem avisar”

Falar de Chico Mendes é, primeiramente, falar de um homem comum. Um seringueiro de fato, um sindicalista, um ambientalista, um defensor da Amazônia e dos povos da floresta, mas acima de tudo um homem comum…

Por Gomercindo Rodrigues

Sendo um homem comum, Chico Mendes adorava jogar dominó e baralho, sempre valendo alguma coisa, muito pouca coisa, mas valendo. Não jogava “de graça” porque, segundo ele, “jogar de graça não tem graça”. Embora jogasse a valer, nunca vi o Chico perder dinheiro que pudesse fazer-lhe falta, e olha que ele sempre tinha muito pouco. Eu não sei se efetivamente o Chico era um exímio jogador ou um ser humano muito comedido.

Jogar era, digamos, seu lazer predileto, mas normalmente não tinha muito tempo para fazê-lo, especialmente no pouco tempo – três anos – que convivi com ele, pois nesse período o Chico estava sempre viajando para ajudar a organizar o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) e para divulgar as Reservas Extrativistas, proposta lançada em 1985, durante o I Encontro do CNS, em Brasília.

Como todo jovem daquela época, Chico gostava da diversão que era possível no seringal: jogar futebol, embora não fosse nenhum craque, jogar baralho e dominó e fazer “zoada” com o violão, normalmente acompanhando o amigo Raimundo Monteiro na sanfona, nos encontros na casa da família Monteiro, e nos dias de festa.

Nas festas, Chico era do tipo tímido, até porque não era um bom dançarino. Como sabia ler e escrever, o que Chico mais fazia nas festas era escrever bilhetes para as moças, em nome dos amigos. Em seu favor mesmo, Chico Mendes não escrevia bilhetes, e precisava da intermediação dos amigos quando queria se aproximar de uma possível pretendida, me disse o primo Tião Mendes.

Também, nas festas e fora delas, Chico bebia muito pouco, e raramente. Fumava, gostava muito de festas, mas não de bebidas. Nas festas, como era extremamente popular, ficava entre os companheiros, bicando de um copo e outro, mas tomando sempre o cuidado de não se embebedar. Na verdade, acho que as bicadas nos copos dos companheiros eram só pra fazer de conta.

Chico era muito requisitado para ler folhetos, na verdade livros da literatura de cordel. Todos são unânimes em dizer que ele lia as histórias muito bem, ficando sempre um grupo de pessoas à sua volta, absolutamente compenetradas e eletrizadas, rindo e acompanhando atentamente a leitura. Foram esses, talvez, os primeiros exercícios de Chico Mendes para falar em público, o que lhe facilitaria, mais tarde, dirigir as assembleias e as reuniões de trabalhadores rurais e sua participação como vereador (1977-1982) na Câmara Municipal de Xapuri.

Outra coisa gostosa de lembrar era a forma carinhosa como o Chico tratava seus filhos, quando voltava das viagens ele ficava sempre com eles, e também sempre que podia. São inúmeras fotos em que ele aparece com Elenira e Sandino. Em 1988, ele estava pensando em levar a Angela, sua filha do primeiro casamento, então com 19 anos, que estava se formando em contabilidade em Rio Branco, para trabalhar com ele no Sindicato, em Xapuri.

Eu acho que foi esse amor aos filhos que fez com que ele, ao ser atingido pelo disparo fatal, tentou andar até o quarto das crianças, onde caiu morto na porta. Não sei o que ele pensou naquele momento, quando gritou apenas: “Os caras me acertaram!”, mas acho que ele pensou nos filhos.

EXÍMIO SERINGUEIRO

Dona Cecília Mendes, tia de Chico, foi quem me confirmou que Chico Mendes nasceu na Colocação Bom Futuro, no Seringal Porto Rico, na “extrema” com os seringais Santa Fé e Porvir, à época município de Xapuri, hoje Epitaciolândia, em 15 de dezembro de 1944.

Chico foi o filho mais velho de Francisco Alves Mendes e Irani Freire Mendes, conhecida como Durica. Os avós paternos de Chico Mendes eram José Alves Mendes e Maria do Carmo Mendes, conhecida como Sinhá. Os maternos eram José Freire e Consuelo Lopes.

Como o pai de Chico nasceu com os pés virados e, embora tivesse sido tratado com cinza quente e sebo de cordeiro, que eram os tratamentos possíveis, ele “jogava a perna” e, por conta dessa deficiência, tinha dificuldade em cortar seringa. Por isso, muito cedo, Chico Mendes aprendeu a profissão do pai.  E quando foi morar na Colocação Pote Seco, no Seringal Equador, aos 12 anos de idade, Chico já era o responsável por toda a produção da borracha, para ajudar na manutenção da família.

O primo Miguel Mendes me contou que Chico, garoto ainda, saía de casa por volta de uma, uma e meia da madrugada, sempre levando num vidro de biotônico uma boa quantidade de café, talvez para despertar-se do sono, talvez para ter a energia de que precisava para dar conta do serviço.

 

MEDO DE ONÇA

Por muitos anos, andei milhares de quilômetros por dentro da floresta e nunca vi uma onça. O máximo que senti da presença delas foram seus esturros e as marcas de suas pegadas.

Mas falo de onças porque, dentre as conversas que tive com Chico Mendes, às vezes só eu e ele caminhando pelos varadouros, Chico me disse muitas vezes que, no início do seu trabalho de corte de seringa, ainda garoto, seu grande medo era, efetivamente, de onça.

Para que ele se sentisse seguro, o pai tentou ensinar-lhe a atirar, mas Chico teve dificuldade em aprender, porque não conseguia “fazer mira” fechando um dos olhos. Nessa época, quando tinha por volta de 15 anos, sua companhia era um cachorro que na verdade mais atrapalhava do que ajudava, porque quando farejava onça entrava em desespero, o que fazia com que os dois corressem em pânico.

Em sua vida de seringueiro, Chico aprendeu a conhecer os remédios da floresta e a ser um bom caçador, para garantir o alimento da família. Depois das “esperas” na mata, sempre voltava pra casa com uma boa presa, mas a caça pra ele   nunca foi diversão, ele só caçava para garantir o sustento.

Mais tarde, quando deixou de temer as onças, Chico passou a temer as divindades da floresta, como o caboclinho da mata, a mãe da seringueira. Sempre que perguntávamos se realmente acreditava nas divindades da mata, Chico nos respondia com um meio sorriso, de uma forma dúbia: “Eu sou seringueiro”.

CONJUNTURA E MILITÂNCIA

Antes de ser líder em Xapuri, Chico Mendes já vinha de uma liderança forte no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia, do qual participou da fundação em 1975, e foi eleito secretário-geral da primeira Diretoria. O STR de Brasileia foi a primeira organização forte dos trabalhadores rurais no estado; o primeiro foi em Sena Madureira.

Interessante é que culturalmente os seringueiros foram, durante quase um século, extremamente individualistas, na base do “cada um por si e Deus por todos”. Até hoje o local onde o seringueiro mora se chama colocação, porque eles eram colocados, espalhados pelo seringal, distantes uns dos outros – e a distância se media em minutos, em horas, em dias.

O único lugar onde eles conseguiam se encontrar era no barracão, normalmente situado às margens do rio, sempre sob as vistas do gerente do barracão, ou dos jagunços, sem nenhuma chance para conversar entre eles.

Para fomentar a divisão e aumentar a vigilância, pois os seringais tinham áreas enormes, de 20, 30 mil hectares, os seringalistas chamavam um ou outro seringueiro e faziam sua proposta; o seguinte: “no final do ano eu dou uma espingarda nova se você ficar de olho pra ver quem está vendendo borracha fora”. Alguns concordavam. Como ninguém sabia quem era o dedo-duro, todo mundo desconfiava de todo mundo, gerando essa cultura do individualismo.

No final da década de 1960, chegou a primeira leva de “paulistas”, como eram chamados os que chegavam ao Acre para comprar as grandes extensões de terra dos seringais; os que compravam as terras de avião, sem andar na mata; os que do alto perguntavam se lá embaixo tinha gente.

Aqueles que, quando os vendedores diziam que não havia gente na floresta, compravam a terra a preço de banana, e mandavam os prepostos, sempre acompanhados de jagunços, para ocupar os espaços que já eram ocupados. Expulsavam as famílias. Tocavam fogo. Derrubavam as casas. O seringueiro saía cedo para trabalhar e quando voltava a casa dele estava no chão; a mulher no terreiro. Era muita violência.

A diferença era gritante: para o fazendeiro, a floresta era um atrapalho; para o seringueiro, a terra era o que sustentava a floresta. Era o desencontro de dois mundos: para um, a terra é reserva de valor; para o outro, o que vale é a floresta, que dá tudo o que ele precisa. O seringueiro sem a floresta não sobrevive.

Quando o fazendeiro desmatava, o seringueiro ia sumindo. Então os seringueiros, que não tinham organização, começaram a fazer reuniões com as reuniões de base da Igreja Católica para discutir como se organizar. E nos meados da década de 1970, a Contag trouxe o pessoal dela para organizar os sindicatos, começando por Sena Madureira e Brasileia.

Os seringueiros começaram a sair das suas colocações para defender a colocação dos companheiros – surgiam os empates. Era um processo de autodefesa, a cultura do individualismo e da desconfiança foi-se rompendo. Porque o empate era uma questão de sobrevivência para o seringueiro. Ou eles “empatavam” o desmatamento, ou deixariam de ser seringueiros, pois deixaria de existir floresta. Em Brasileira houve vários empates.

Em 1980 mataram o Wilson Pinheiro, o Sindicato se desmobilizou um pouco, e a força do movimento foi transferida para Xapuri. Em 1983, o Chico saiu da Câmara Municipal, onde era vereador, eleito pelo antigo MDB, desde 1977, disputou, ganhou e ficou na presidência do Sindicato até o dia em que foi assassinado.

No Sindicato, Chico continuou a defender o que ele defendia na Câmara e, ao mesmo tempo, começou a discutir a importância de ter cooperativas para que os trabalhadores pudessem vender a produção de forma organizada e fugir dos marreteiros ou dos patrões. Em 1980, mais de 98% dos seringueiros eram analfabetos; além disso, tinha aquela desconfiança que ainda estava lá no fundo – os poucos que sabiam ler e escrever, os outros achavam que podiam estar fazendo as contas erradas.

As escolas surgiram como uma forma de respaldar a proposta das cooperativas, que ainda não tinham sido internalizadas pelos seringueiros. Para entender por que, fizemos um diagnóstico de campo – escolhemos três seringais com e três seringais sem experiência de cooperativismo. O diagnóstico ficou tão complexo que nunca conseguimos tabular. Mas eu, que nunca tinha entrado num seringal, saí convencido de que não era a ideia, e sim a metodologia que estava errada. Falei isso pro Chico.

RESERVAS EXTRATIVISTAS

Em 1985, aconteceu em Brasília o I Encontro Nacional dos Seringueiros, onde se criou o Conselho Nacional dos Seringueiros e foi lançada a proposta das Reservas Extrativistas, um achado.

Para os ambientalistas que defendiam a preservação da floresta só com discurso, sem ter projeto, enquanto o governo fazia o “desenvolvimento” da Amazônia com discurso, projeto e dinheiro para financiar a devastação, através do Banco da Amazônia (BASA), agora havia uma bandeira, um modelo de desenvolvimento sustentável, as reservas extrativistas dos seringueiros para defender.

A partir do Encontro de Brasília, a Amazônia passou a ter dois projetos distintos: um do governo, da pecuária; outro dos povos da floresta, com apoio dos ambientalistas. Os seringueiros dizendo: “Queremos as nossas áreas, como as dos índios, com a terra sendo da União, e a gente tendo o direito do usufruto sem ser para destruir.

Alguém disse: “Vocês não são índios, são extrativistas”. Então ali mesmo no encontro surgiu a reserva extrativista como a expressão da proposta que partiu dos seringueiros.

O Chico não era dirigente do CNS, mas sua liderança no movimento era incontestável. Como estava em campanha para prefeito, o Chico foi a Brasília, abriu o Encontro, voltou pra Xapuri, fez campanha, e depois regressou a Brasília para encerrar o Encontro. Foi ele quem apresentou a proposta das reservas extrativistas, onde o seringueiro pudesse melhorar a qualidade de vida e permanecer na floresta.

E o Chico, que não era bom de discurso, mas era fantástico de conversa, passou a ser o porta-voz dessa proposta que ganhou a simpatia do mundo. Ele explicava e todo mundo entendia; ele cativava, puxava as pessoas. Ele sempre buscava diferentes aliados, dos ambientalistas do PV (Partido Verde) aos militantes do Partido dos Trabalhadores (PT), seu próprio partido; ele juntava todo mundo, independente das tendências políticas.

O Chico sempre soube usar a mídia, sempre teve informações. Ele escrevia um bocado, e bem. O que ele escrevia era simples e direto, era muito legal. Podia ter erros de concordância, de um cara que teve pouca escolaridade, mas as ideias eram fantásticas.

O Chico ia andando mais pra fora e eu ia andando mais pra dentro do seringal, levando as notícias que ele mandava – cartas, bilhetes, informações. Às vezes ele me ligava e dizia: “Guma, estamos conseguindo isso, aquilo, você vai a tal lugar, fala para os companheiros que estamos avançando nisso”. Eu ia discutindo a criação das cooperativas com o respaldo do Sindicato.  Nós passamos um ano conversando, trocando ideias e, em junho de 1988, fizemos a Cooperativa Agroextrativista de Xapuri (CAEX), que funciona até hoje.

O fantástico disso tudo foi o que aprendi com os seringueiros, com os trabalhadores rurais de Xapuri. O Raimundão (Raimundo Mendes Barros), o que Chico Mendes me ensinou… Só sinto o pouco tempo que tive para aprender com o Chico, porque enquanto eu via dois metros à minha frente, o Chico via 200 na frente dele.  O Chico sempre estava muito à frente de todos nós. De uma forma simples, ele via o horizonte com muita clareza, sempre. Era ele quem dizia: “Agora é hora de negociar, agora é hora de ser duro”.

Em 1988, o coronel Castelo Branco, secretário de Segurança Pública do Acre, chegou a Xapuri, ligou para o Sindicato e pediu para o Chico ir à delegacia. O Chico foi e, quando abriram a porta, o secretário estava conversando com o Darly Alves. Ao ver o Chico, ele disse: “Entra! Estou chamando vocês para darem as mãos e ficarem amigos”. O Chico disse: “Não! Esse homem não é meu amigo. Quando o senhor quiser conversar comigo, eu converso com o senhor, mas não tenho nada para conversar com esse moço, não”.

Depois o Chico escreveu no Ventania, o nosso jornalzinho: “Propuseram ao Chico Mendes que pusesse a mão de amigo a Darly. É a mesma coisa que colocar o cordeiro na jaula do leão, com a combinação de que o leão não vai comer o cordeiro”. Ao publicar aquela notinha, Chico mostrou a clareza que tinha disso.

CHICO MENDES POR CHICO MENDES

Muitas foram as entrevistas concedidas por Chico Mendes a jornalistas nacionais e internacionais, ambientalistas, professores universitários, mestrandos, doutorandos. Há muita coisa registrada que Chico Mendes falou.

Em dezembro de 1987, eu também realizei uma entrevista com Chico Mendes que nunca foi publicada. Agora, repassando as respostas do Chico 31 anos depois do seu assassinato, vejo o quanto elas nos ajudam a compreender o pensamento desse ser humano fantástico, capaz de doar a própria vida em defesa da Amazônia e dos povos que nela e dela vivem.

 

Compartilho este excerto da minha entrevista, onde Chico Mendes fala sobre ele mesmo:

Guma – Como é a vida de Chico Mendes, a vida do homem comum? Como é que esse cara vive?

Chico Mendes – Bom, é uma pergunta muito boa essa, inclusive eu faço questão de me aprofundar nessa resposta. O problema é o seguinte: Eu, quando assumi o movimento sindical no Acre,  a partir de 1974, no final daquele ano, 1975, que começou a surgir o primeiro movimento sindical e foi exatamente naquele momento em que se dava o maior confronto, acontecia o maior ataque do latifúndio.

Com a chegada do latifúndio aqui no Acre, os companheiros seringueiros estavam sendo expulsos sem direito de defesa; viam seus barracos queimados; saíam de suas posses forçados por pistoleiros; eram, muitas vezes, forçados a assinar documentos sob a ameaça do punho de armas do latifúndio. Foi a partir daí que eu fiz essa opção de entrar no movimento sindical, exatamente para levantar essa bandeira de luta em defesa dos seringueiros, em defesa dos posseiros.

E, quando eu entrei nesse movimento, eu já tava consciente de que eu tinha que renunciar a qualquer interesse pessoal meu, a qualquer interesse financeiro, e de que eu ia assumir naquele momento uma luta dura, uma luta do tostão contra o milhão, uma luta do pequeno contra o grande, uma luta do seringueiro contra o grande latifúndio, e eu tinha que ter posição séria e estar coerente com a minha posição de lutar em defesa dos trabalhadores.

No decorrer desse período todo que eu venho lutando, 77, 78, 79 até hoje, 87, a minha luta não mudou.  Tem sido uma luta junto com outros companheiros de resistência… De modo que muitos companheiros que começaram junto comigo na década de 70 desistiram porque não resistiram, não conseguiram amadurecer politicamente na questão do idealismo, de modo que esses companheiros, quando viram seus interesses, sua situação financeira cair, eles não tiveram como resistir e caíram fora.

Alguns, infelizmente, chegaram até a se vender e hoje vivem sua vida particular, financeira, vida boa, e há aqueles companheiros que resistiram. Inclusive, eu me orgulho de estar incluído entre os companheiros que assumiram esse ideal de lutar, e até hoje não tenho casa para morar. A família vive em casas alheias, na casa dos pais, graças ao apoio que ainda recebo dos próprios parentes da minha família que a acolhem em casa, do contrário eu não sei como seria, mas o importante é esse ideal que a gente leva, enfrentando as duras consequências.

Infelizmente ainda hoje tem trabalhador que acha que eu uso o dinheiro do Sindicato até, mas uma coisa que eu me orgulho é que qualquer companheiro, trabalhador, seringueiro, ou mesmo aqueles que vierem ao Sindicato, que está aberto, para ver se existe algum documento que prove que Chico Mendes tem salário do Sindicato, ou que qualquer companheiro que trabalha no Sindicato ganha salário.

Não recebemos, eu pelo menos, pra resistir ainda consigo algumas ajudas de companheiros que admiram a nossa luta e, com isso, eu vou vivendo, mantendo-me nesse ideal que a gente tem e que hei de levá-lo, esse capricho, essa opinião, esse idealismo, até enquanto puder resistir.

Esse é o compromisso que a gente assume com o movimento, a luta dos trabalhadores, porque, se você for pensar na sua questão particular, na questão financeira, no seu interesse pessoal, você não vai conseguir manter esse idealismo nem lutar pelos trabalhadores.

 

CHICO MENDES VIVE

A morte do Chico foi um erro de avaliação dos fazendeiros. Os caras acharam que ia acontecer em Xapuri o mesmo que aconteceu em Brasileia, quando mataram o Wilson Pinheiro.  Só que o próprio Chico Mendes já tinha dito várias vezes: “Se eu morrer, nós temos que mostrar que vai ter mais 300 Chico Mendes”.

Todos nós assumimos o compromisso de continuar o trabalho dele. Nós decidimos que não ia ter mais uma liderança para ser forte e dividimos o trabalho com todo mundo. Ficou todo mundo sobrecarregado, foi difícil no começo, mas não caiu o Movimento.

Quanto ao Chico, o único erro de avaliação dele foi quando, em sua última entrevista, ele disse que se a morte dele pudesse ajudar a salvar a Amazônia, ele morreria de bom grado, mas que enterro não ia salvar a floresta.

Infelizmente ele teve que morrer para que a gente ainda tenha a Amazônia, mesmo estando ela tão ameaçada; se hoje ainda temos a Amazônia em pé, isso se deve à repercussão que a morte dele trouxe. O Chico virou um mártir da Amazônia, e essa é a grande lição: aqueles que atiraram no Chico Mendes erraram o alvo, porque o Chico nunca vai morrer.

O Chico está vivo porque nós continuamos trabalhando com o mesmo ideal dele, erramos no meio do caminho, tropeçamos muitas vezes, mas seguimos trabalhando. A gente trocaria tudo o que conquistou para ter o Chico aqui hoje, porque com ele entre nós nossa organização estaria mais forte, mais coordenada e com muito mais aliados.

Porque nenhum de nós, nem juntando todo mundo, consegue fazer o que o Chico fazia. Mas nós nos transformamos nos 300 Chico Mendes que ele pediu e conseguimos fazer com que o Movimento não caísse.

SABIA QUE CHEGARIA, A MORTE SEM AVISAR

Uma canção nicaraguense, que Chico Mendes conhecia, pois foi um dos admiradores da revolução sandinista, diz em um de seus versos, ao relatar a morte de um de seus dirigentes: “… sabia que chegaria, a morte sem avisar…”

Com Chico Mendes não seria diferente. Desde 1977 ele vinha recebendo constantes ameaças de morte que partiam dos fazendeiros, principais prejudicados pelo trabalho de organização dos seringueiros na região de Brasileia e Xapuri, que tinha por base a realização dos empates contra as derrubadas.

Em 21 de julho de 1980, pistoleiros a soldo assassinaram o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia, Wilson Pinheiro, a primeira grande liderança sindical da região, com quem Chico Mendes trabalhava desde 1975. De acordo com o que se conseguiu de informações posteriores, nesse mesmo dia deveria ser morto Chico Mendes, que não foi encontrado pelos pistoleiros.

Após o enterro de Wilson Pinheiro e, principalmente depois da morte do testa-de-ferro dos fazendeiros na região, Nilão, Chico teve que passar cerca de dois meses vivendo na semiclandestinidade, dormindo cada dia num lugar diferente, sendo permanentemente seguido por pistoleiros que aguardavam uma chance para matá-lo.

Foram dias muito tensos, segundo relato do próprio Chico.

Todos os anos, as ameaças se repetiam, principalmente na época das derrubadas, em função da resistência organizada dos trabalhadores.

Até sua morte, segundo o que o próprio Chico Mendes sabia, ele esteve muito próximo de ser assassinado por seis vezes, conseguindo escapar em algumas ocasiões por acaso, mudando trajetos de deslocamentos ou simplesmente adiando, por outros motivos, as viagens já marcadas. Outras vezes, avisado de que havia emboscada armada, Chico mudava a direção de seus deslocamentos.

Em um registro feito numa agenda de 1987, Chico Mendes anotou no quadro do dia 10 de agosto: “2 horas da madrugada, ameaças, tentativa pelo girau da cosinha do Sindicato”.

Naquela madrugada em que, por sorte, Chico não estava sozinho na sede do STR, em Xapuri, alguém tentou invadir a sede da entidade  pulando pela janela do “jirau” (local onde se lavam utensílios de cozinha), somente não conseguindo porque a madeira do jirau, apodrecida, cedeu  sob o peso do pistoleiro, que fugiu deixando as marcas de seus pés na lama existente embaixo do local.

Poucas semanas antes de ser assassinado, Chico Mendes deixou um bilhete para uma amiga na sede do Centro dos Trabalhadores da Amazônia – CTA, em Rio Branco, dizendo que fora seguido o dia todo por pistoleiros.

Chico Mendes sabia que estava marcado para morrer e denunciou tal situação durante todo o ano de 1988, tendo sido enviadas não poucas correspondências a autoridades, tanto em nível do estado do Acre como em nível federal sobre essa situação. A imprensa e os políticos acreanos encaravam tais registros como sendo de alguém que denunciava as ameaças apenas para ficar em evidência na mídia.

Sabendo que não tinha muito tempo de vida, a cada vez que proferia uma palestra, durante o ano de 1988, ao viajar de volta para o Acre, sempre se despedia dos amigos como se fosse a última vez que os veria. Isso ficou muito patente nas palestras proferidas em Piracicaba – SP (07 de dezembro) e Rio de Janeiro (09 de dezembro), quando, ao ressaltar que estava ameaçado de morte, frisou que talvez estivesse voltando para sua terra para ser morto.

Como diz a música em homenagem ao revolucionário Comandante Padre Gaspar, o padre sandinista: “Sabia que chegaria, a morte sem avisar, porém, a morte se enfrenta quando há um povo por trás…”.

Gomercindo Rodrigues, o Guma – Advogado. Assessor e amigo de Chico Mendes à época do assassinato, em 22 de dezembro de 1988. Excertos de textos publicados no livro “Caminhando na Floresta (Editoras UFAC-Xapuri, 2009, e depoimento colhido por Zezé Weiss para o livro “Vozes da Floresta” (Editora Xapuri, 2008)

 

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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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