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O quati e os índios no Arsenal da Marinha

O quati e os índios no Arsenal da Marinha

“Quatipuru, me empresta teu sono para eu fazer meu filho dormir” 

Canção de ninar em Nheengatu – Rio Negro (AM) – 1873

Por José Ribamar Bessa Freire/TaQuiPraTi 

O quati de focinho preto, ainda bebê, foi doado à corveta francesa Uranie atracada no porto do Rio de Janeiro. Essa passou a ser sua nova casa. Com medo, o bichinho vivia se escondendo, mas pouco a pouco começou a circular livremente pelo tombadilho, saltitando de proa à popa. Bagunceiro, rolava pelos punhos das redes como uma bola, fazia piruetas no mastro, caçava ratos no porão, abria malas com seu nariz comprido e brincava com o cachorro do navio, mordiscando suas orelhas. Ao meio-dia, o enfermeiro de bordo, que dele se encarinhou, chamava-o com um assovio e ele subia em seu ombro para comer. Era a alegria do barco.

A história do quati é contada pelo capitão de mar-e-guerra Louis de Freycinet, geógrafo francês, comandante da expedição científica, que deu a volta ao mundo, de 1817 a 1820, levando 120 homens, com o objetivo de estudar o magnetismo terrestre e coletar amostras de vegetais, minerais e animais para museus franceses. Ele deixou 31 volumes manuscritos sobre o que viu, nove dos quais já editados. Em dois deles, relata o histórico da viagem, incluindo duas passagens pelo Rio, quando ladrões roubaram do barco três cronômetros, dinheiro, documentos e malas. O Rio já era o Rio. Dos avós de Sérgio Cabral e Eduardo Cunha.

Os dois tomos citados com 1.500 páginas de texto, mapas e gravuras podem ser consultados na biblioteca do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Lá o autor narra a permanência do navio por mais de quatro meses na capital do país e descreve o perfil da população indígena, cujas aldeias foram visitadas por integrantes da Expedição. São enumeradas as vilas e paróquias das seis comarcas da então Província do Rio, localizando pelo menos 20 aldeamentos que existiam em 1818, com dados sobre os seus moradores indígenas. E qual a situação deles? É aqui que entra o quati que, por ser cabeludo, foi batizado pelos marinheiros com o nome de César.

Dai a César

Arborícola, de hábitos noturnos, César se adaptou às novas condições. Trocou a noite pelo dia. Em vez de vadiar na noite sobre árvores, dormia em beliche nos camarotes. Costumava assistir ao jogo de baralho dos tripulantes, quando aprendeu a beber vinho francês. Metia seu focinho nas canecas e chupava doses do “rouge qui tache”. Gostou. Viciou. Tomava porres homéricos. Virou alcoólatra. Mas a César, o que é de César. Sua trajetória nos oferece uma metáfora que explica as categorias pré-darwinianas usadas para classificar os indígenas, baseadas nas “Considerações sobre os diversos métodos a seguir na observação dos povos selvagens” (1800) de Joseph Degérando.

A partir daí, Louis de Freycinet fez uma analogia entre a conduta dos animais e as experiências humanas. Para ele, as diferenças entre o homem e outros animais são de grau e não de espécie. Assim, o quati atravessa as três categorias em que ele divide os índios: “selvagens”, “semicivilizados” e “civilizados”. O quati, que era selvagem e arredio, torna-se “semicivilizado” e depois “humaniza-se”, já batizado com nome cristão, quando adota usos, costumes e vícios da tripulação, com a qual aprende a conviver. Cada uma das categorias foi definida por Freycinet.

Os “índios selvagens” vivem nus em aldeias no meio da floresta. São “preguiçosos, com tendência inata a fugir do trabalho”, mas também “vivos e corajosos, tanto na caça quanto na guerra”.Cultivam “costumes bárbaros como a abominável poligamia” – escreve com uma pitadinha de inveja o autor, cuja esposa Rose entrou clandestinamente na corveta e o acompanhou em toda a volta ao mundoEnquadravam-se nessa categoria “entre 1.500 a 2.000 índios Puri da boca do rio Paraibuna, a oeste do rio Pomba e nos limítrofes do Espirito Santo e Minas”, além dos Coroado que viviam em território próximo a Cantagallo.

Os “índios semicivilizados”, na definição de Freycinet, eram aqueles que, batizados com nomes cristãos, conservam, no entanto, a maior parte de suas “inclinações primitivas”, incluindo a língua, e “um acentuado amor pela independência”. Neste caso estavam os Puri, Coroado e Coropó dos aldeamentos em São Fidelis, Itaocara e Pádua.

Já os “índios civilizados” eram os que, convertidos aos cristianismo e estabelecidos em aldeamentos fixos, só falavam português, se submeteram ao colonizador e passaram a usar roupa, como os “remanescentes Tupinambá, Guarulho e Goitacá” que no início do século XIX habitavam as aldeias de São Lourenço (Niterói), São Barnabé (Itaboraí), Mangaratiba, São Francisco Xavier (Itaguaí), São Pedro (Cabo Frio), Santo Antônio de Guarulhos (Campos), Aldeia Velha e Sacra Família de Ipuca (Casimiro de Abreu). A “civilização” equivale à extinção – lamenta Freycinet, ao constatar o genocídio.

Remar contra a maré

Numa noite enluarada, em setembro de 1820, a corveta zarpou da baía de Guanabara, “qual cisne branco em noite de lua”, mas deixou para a posteridade os relatos da Expedição, não traduzidos ao português e ainda pouco explorados pela historiografia sobre o Rio de Janeiro.

Lembrei da história do quati e da expedição Freycinet durante a arguição da tese de Silene Ribeiro nesta segunda (20), sobre o recrutamento e o regime de trabalho de índios remeiros no Arsenal da Marinha do Rio, quando mencionei os dois tomos Historique du Voyage de Freycinet. Ele registra dados que podem ser cruzados com os documentos de arquivos que ela soube tão bem explorar, especialmente aqueles do Serviço de Documentação Geral da Marinha, que dão conta do trabalho dos índios.

O Arsenal da Marinha, criado em 1763, se tornou uma pequena cidade dentro do Rio. Lá dentro se desenvolvia um conjunto de atividades produtivas, através de um complexo de oficinas de tanoaria, ferraria, calafetagem e casa de breu, que davam suporte ao reparo, manutenção e construção naval. Além disso, tinha como atribuições fiscalizar os barcos que, para fugir dos impostos, aportavam, alguns deles, em ancoradouros clandestinos. Devia ainda impedir o roubo de cargas do armazém da alfândega e oferecer apoio logístico com o fornecimento de água potável em pipas d’água.

Essas atividades exigiam o serviço permanente de remadores nas embarcações do Arsenal, que era feito quase exclusivamente por dezenas de índios, que dominavam esse saber ancestral e as técnicas de navegação. Para verificar quem eram eles e qual era o sistema de trabalho, Silene escarafunchou documentos nos arquivos. Teve de tirar leite de pedra. As fontes estão dispersas, os nomes dos indígenas raramente aparecem nos ofícios, houve um apagamento deliberado. “Não foi possível encontrar na documentação as vozes indígenas” – escreveu ela, que cita o historiador Carlo Ginzburg, um dos pais da micro-história:

– “Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais e indícios – que permitem decifrá-la”.

Foi o que ela fez. Usou fragmentos biográficos de alguns índios e adotou uma escala de análise reduzida como estratégia para dialogar com diferentes aspectos da realidade. Produziu uma tese relevante para a história indígena. Conseguiu trazer à luz as condições de insalubridade, os salários baixos atrasados em até nove meses, as precárias condições de moradia com índios acampados no Campo de Santana, as deserções e a resistência dos índios ao trabalho compulsório, o que é confirmado por relatos de viajantes.

Sifilização ocidental

O médico e cirurgião da Expedição Freycinet, J. Paul Gaimard, observou pessoalmente a alimentação putrefata, indigesta, de péssima qualidade dos escravos e índios e o regime infernal de trabalho a que eram submetidos, responsáveis por doenças como varíola, erisipela, lepra, úlcera, sífilis, tuberculose, disenteria, hidropisia, tétano, coqueluche, alcoolismo e tantas outras. Ele conclui que isso explica a redução demográfica da população indígena e o consequente extermínio de línguas, narrativas, cantos.

E o César? Ah, três meses depois o nosso quati morreu bêbado debaixo da roda do leme, ao que tudo indica com cirrose hepática. Seu corpo foi lançado ao mar em singela cerimônia. Dessa forma, a metáfora de Freycinet se completa com o alcoolismo representando a contribuição da “sifilização ocidental”.

Um primo de César, o acutipuru, é celebrado em uma canção de ninar em nheengatu recolhida pelo cônego Bernardino de Souza, em 1873, no Rio Negro (AM). Conhecido nos igarapés como “cutia enfeitada”, passa a noite na balada e dorme o dia inteiro. Ficou com fama de dorminhoco. As mães pedem emprestado seu sono para ninar suas crias:

– Acutipuru ipurú nerupecê, cimitanga-miri uquerê uaruma.

Quem também precisou pedir emprestado o sono do César foi o enfermeiro de bordo da corveta Uranie, que deve ter sofrido de insônia algumas noites, esperando seu quatipuru atender o assovio dele.

P.S. Silene Orlando Ribeiro. Exímios remadores do Arsenal da Marinha: recrutamento indígena no Rio de Janeiro (1763-1820). Tese de Doutorado. Pós-Graduação em História. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 2019. Banca: Vânia Moreira (orientadora), Álvaro Nascimento (UFRRJ), Juciene Apolinário (UFCG), Marco Morel (Uerj) e José R. Bessa (Unirio/Uerj).

FREYCINET, Louis Claude Desaulces de: Voyage autour du monde fait par ordre du Roi. Chez Pillet Aîné Imprimeur-LibraireParis. 9 tomos. 1825. (Tomos I e II – Historique du Voyage).

FREIRE, José Bessa. Os viajantes e os índios do norte fluminense no século XIX. II Jornada de Trabalho. UENF, 1998, Campos.

Fonte originária desta matéria: TaQuiPraTi 

O quati e os índios no Arsenal da Marinha


 

https://xapuri.info/elizabeth-teixeira-resistente-da-luta-camponesa/

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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!


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