Há séculos, há ocorrências de orientadores semideuses que maltratam estudantes. Esses são os calhordas, como diz a jornalista Kelly Becker. Estudantes aprendem a admirar professores calhordas que, por sua vez, protegem estudantes calhordas. A crueldade e a postura distante do professor que encarna o estereótipo do homem, branco e velho são vistas como sinal de força. A generosidade da professora didática é vista como fraqueza, e sentimentos são encarados como inferiores. A boa notícia é que estou convencida que o feminismo e o movimento LGBT da juventude atual estão ajudando significativamente a romper com essa lógica no Brasil.
No caso brasileiro, há uma particularidade importante: as políticas de acesso ao ensino superior. Se estudantes europeus adoecem porque sentem saudade de casa, no nosso caso o deslocamento que afeta os estudantes não é geográfico, mas social. O Brasil viveu uma fase de crescimento, inclusão social e popularização universitária, mas os campi continuaram com o ethos elitista e branco, causando um choque nos novos entrantes. Seja nas universidades privadas ou nas públicas, dezenas de relatos que chegaram até a mim eram muito semelhantes: estudantes negras confundidas como profissionais da limpeza, que tinham o seu cabelo tocado o tempo todo e ouviam cotidianamente comentários racistas.
É o neoliberalismo contemporâneo que faz com esse campo, que sempre foi de tensão, se tornar insustentável, aprofundando velhos problemas e criando outros. Diversos especialistas têm entendido que o problema da saúde mental piora no século 21 porque hoje se pede muito mais de um estudante em menos tempo. Ou seja, nosso imaginário romântico sobre a vida acadêmica – sobre a produção brilhante de monografias, longas reflexões, prestígio e viagens – continua inalterado em um sistema que oferece isso apenas para uma ínfima minoria.
Mas o neoliberalismo não apenas retira direitos, tempo e dinheiro, como é também um modo de pensar que incorporamos em nossa conduta. Em um debate da ANPG que participei, uma estudante negra com um filho no colo, pegou o microfone e fez um depoimento comovente: “dos professores a gente espera pouco, mas o que me dói é ver a competição reproduzida pelos colegas”.
Tudo isso resulta em estudantes com insônia, distúrbios alimentares, ansiedade, desânimo, pânico, depressão e até crescentes casos de suicídio em campi. É a geração que toma ritalina para acordar e rivotril para dormir. Esse problema cai como uma batata-quente na mão dos professores, que também estão adoecidos, medicados, precarizados.
Recentemente participei de um workshop no Reino Unido no qual um profissional de saúde pública contou que, com base em dados confidenciais, um único posto de saúde – inserido em um campus com moderna infraestrutura e vista para o mar – recebe uma ligação por semana relatando tentativa de suicídio.
Uma professora, ao escutar o relato, ficou desesperada. Com dois filhos pequenos, ela disse que mal conseguia lidar consigo própria. Um médico acrescentou: “não estamos dando conta do problema. A verdade é que atendemos por cinco minutos, enchemos os alunos de remédios e indicamos aplicativos no celular de yoga e relaxamento”. Os departamentos começam a estender o prazo de todos os alunos. Mas está todo mundo enxugando gelo.
Trata-se de um problema estrutural, que exige políticas públicas de intervenção na área da educação e saúde pública. Mas nós podemos atuar na “redução de danos”. O primeiro passo é encará-lo e falar sobre ele. Precisamos deixar claro mostrar que é um fato social, não individual e que não se trata de fragilidade de quem “não segura o tranco”. Mas mais do que qualquer coisa, um estudante com sintomas de adoecimento deve procurar ajuda especializada.
Na Universidade de Oxford, em que muitos alunos chegavam em minha sala para chorar, percebia que mais da metade dos alunos que eu encaminhava para o serviço de aconselhamento resolvia seus problemas nos grupos gestados pelos próprios alunos, que reuniam também ex-alunos que haviam superado depressão. Conversar com quem passou pelo mesmo problema era libertador. Então, é importante que os alunos brasileiros, diante do desmonte universitário, também consigam organizar rodas de conversas.
O segundo passo é que precisamos romper o círculo vicioso da calhordice. Escolher, quando possível, um orientador generoso (e não o “fodão”, que na prática nem sempre ajuda) é fundamental. Eu só me tornei uma acadêmica feliz no dia que em que decidi me afastar dos ególatras e atuar por meio de alianças colaborativas, nas quais prevaleciam a generosidade. Em grande parte, isso significou me aliar a mulheres. Além disso, também precisamos manter uma postura solidária para com os colegas menos privilegiados.
O fim do mundo – e o recomeço
No Brasil, o fogo no Museu Nacional era uma espécie de presságio do apocalipse científico que viria ocorrer em 2019. Com todas as suas contradições e conflitos, a academia como conhecíamos está em fase de extinção. Por isso, temos ido a público para valorizar nossas conquistas como cientistas. Isso é tão importante como mostrar que, nestes tempos sombrios, os estudantes estão adoecendo porque nunca antes na história do Brasil uma autoridade máxima da nação tratou pesquisadores como inimigos – o que adiciona uma camada extra a um quadro já dramático. Os alunos hoje não veem perspectivas de futuro. É muito pior do que a sensação de não ter bolsa e a falta de papel higiênico: é a sensação de que nosso trabalho não tem valor.
É preciso denunciar o que este governo está causando na saúde mental. Trata-se de responsabilizar os produtores do terrorismo a que nossos estudantes estão submetidos. Precisamos ainda falar sobre sofrimento na academia, justamente para reforçar a importância de uma universidade democrática, inclusiva e humanista.
Por fim, não posso deixar de comentar um lado positivo – e inesperado – que observei em meio à catástrofe. Meus ex-alunos da UFSM, hoje me parecem mais fortes. O motivo? Aprenderam que precisam lutar pelo curso de ciências sociais e passaram a se mobilizar, organizar passeatas, atos e rodas de conversa. O medo, assim, se transmuta em indignação e ação. E, na própria prática de luta coletiva, talvez sem se dar conta, eles têm conseguido quebrar a alienação do individualismo atroz do ensino neoliberal e, assim, repensar – e até recriar – a universidade que desejam.
*Nome foi alterado para preservar a identidade da fonte.