Na pandemia de coronavírus que está se espalhando pelo mundo, estamos vendo respostas de todos os tipos. Sim, temos casos de pessoas irracionalmente empilhando papel higiênico. Mas, ao meu ver, a resposta ainda mais comum e perigosa é a negação do forte cheiro de fumaça que já podemos sentir. O teatro está, sim, em chamas.
Todo mundo que tem salário, trabalho que pode ser feito remotamente, que vive em uma casa confortável e carro é privilegiado.O balanço entre pânico e inércia é difícil de acertar, pois nunca vivemos uma situação assim na era contemporânea. Mas o importante é que todo mundo reconheça: desta vez não é como nas últimas vezes. Não é dengue, nem H1N1, nem febre amarela, e precisamos estar dispostos a mudar radicalmente nossos modos de vida – e talvez até o jeito que pensamos sobre a sociedade em que vivemos. E a razão, provavelmente, não é para proteger a si mesmo, mas para ajudar a sociedade como um todo e as pessoas mais frágeis e expostas. É hora de pensar nos outros de fato.
Em momentos de crise, as fissuras sociais e o caráter de todos nós são acentuados. Vivemos em tempos de extremo capitalismo em que os Guedes, Temers e Trumps querem sucatear os serviços sociais e glorificar a privatização e o livre mercado – mas, concordando com eles ou não, o individualismo que é a base do nosso sistema socioeconômico já impregnou a consciência de todos nós. Vamos ter que repensar isso agora.
É socialmente irresponsável – uma negligência absurda – dizer e pensar “isso não vai me afetar”, “eu não vou mudar a minha vida por causa disso” ou “não faço parte de grupos de alto risco, então estou de boas”. É responsabilidade de todos levantar nossas vozes quando vemos esse tipo de discurso e corrigi-lo. Do mesmo jeito que ficar calado quando presenciamos racismo, sexismo, classismo e fascismo é compactuar com estes comportamentos, fechar os olhos para esse tipo de individualismo agora também é contribuir para sua existência.
Um exemplo horrível disso foi relatado na coluna do Lauro Jardim sobre o primeiro caso de transmissão local do novo coronavírus no Rio de Janeiro. Um “empresário” e sua esposa foram infectados e se colocaram em quarentena no seu apartamento em São Conrado, bairro de classe alta da zona sul. “A empregada do casal, cujo exame deu negativo, está trabalhando de avental, luvas e máscara”, revelou a coluna.
Este casal exigiu que a empregada arrisque a vida dela e de sua família para trabalhar num ambiente infectado, usando medidas de prevenção que não impedem a transmissão. Se eles próprios não estivessem doentes, você acha que aceitariam trabalhar em um ambiente cheio de pessoas infectadas? Ou isso só é aceitável para as pessoas que os servem? Se a empregada ou alguém que mora com ela estivesse doente, eles manteriam ela trabalhando? Deixariam seus filhos fazerem isso? Será que a empregada realmente pôde fazer uma escolha livre ou estava preocupada com a possibilidade de perder o emprego caso se recusasse a servir o casal doente?
Todo mundo que tem um salário, que tem uma poupança, que tem um trabalho que pode ser feito remotamente, que vive em uma casa que comporta confortavelmente seus moradores, que tem um carro para não precisar usar transporte público – essas pessoas são privilegiadas neste cenário. Não por acaso, provavelmente são os mais privilegiados na sociedade também.
Enquanto escrevo isso, 126 mil pessoas foram confirmadas com o novo coronavírus no mundo (e muito mais gente assintomática está andando nas ruas sem perceber que precisa de um teste), incluindo 151 casos no Brasil. O número por aqui vai aumentar dramaticamente nos próximos dias e a pressão no sistema de saúde também. O único método que temos para conter os estragos e as mortes é a conscientização e a pressão para que os líderes de governos, empresas e movimentos sociais façam de tudo para as pessoas ficarem em casa e reduzirem seu contato social – e isso é algo que todos nós podemos fazer.
Após o secretário de comunicação Fábio Wajngarten testar positivo para o novo coronavírus, foi muito correto que sua mulher retirasse seus filhos da escola e avisasse as outras mães do colégio. Por outro lado, foi extremamente irresponsável da parte de Bolsonaro, que viajou com Wajngarten e mais três pessoas que mostravam sintomas, parar em frente ao Palácio da Alvorada para apertar as mãos de apoiadores e tirar selfies com eles.
Mas, depois que a ficha caiu – quando bateu o medo de estar infectado –, Bolsonaro se submeteu a exames e fez sua live semanal no Facebook, ao lado do Ministro de Saúde, com máscaras e álcool em gel. Finalmente falou em medidas de prevenção de transmissão. Antes, o presidente havia se espelhado na negação de realidade do seu ídolo Donald Trump, chamando a reação ao novo coronavírus de “exagerada” e a pandemia de “uma fantasia”.
Mas o comportamento do Bolsonaro é o da maioria das pessoas, na verdade: ele prefere viver negando os fatos até que alguém próximo ou ele mesmo tenha contato com o vírus. O problema é que se todo mundo espera para ter contato com o vírus para tomar medidas preventivas, elas já não serão mais preventivas. Já era. Seria o equivalente a só começar a usar camisinha depois de ficar grávida.