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Brasília de Goiás: Capital da tradição e modernidade

Brasília de Goiás: Uma capital da tradição e modernidade a caminho dos 62 anos

Entrevista à Frederico Le Blue Assis, Pós doutor em Artes EBA/UFMG, doutor em Planejamento Urbano IPPUR/UFRJ, autor do livro “Tradição da Modernidade: memórias e mobilidades goianas no urbanismo de Brasília” (2019, Editora Brasílha Teimosa) e idealizador do mov. Artetetura e Humanismo

1) Como surgiu essa pesquisa-militante cujo lema é “Brasília também é Goiás”?

Surgiu de uma pesquisa etnográfica e histórica de 18 anos sobre o impacto pós-ocupacional do urbanismo moderno no Plano Piloto em Brasília, com ênfase no fenômeno da migração e da ancestralidade goiana na capital federal, que deu origem ao livro “Tradição da Modernidade. Meus questionamentos iniciais sobre a goianidade em Brasília e no DF foram despertados pela percepção do deslocamento regional de estudantes goianos para realizar cursos de graduação na Universidade de Brasília (UnB). O paradoxo dos macrodramas nessas micromigrações que os levam a estar em permanente trânsito, criando territórios imaginários, a partir da formação de grupos de moradias (Repúblicas) na Asa Norte, permitia aos mesmos carregarem consigo velhas e novas experiências em suas trajetórias de vida. A distância cultural entre as duas cidades, no entanto, apesar da proximidade física e vinculações histórias entre elas, conforme o observado em 2005, tendia a ser reforçada por um duplo processo de (auto)estigmatização regional mútua. Essas tensões geoidentitárias entre jovens migrantes da minoria goiana e os nativos brasilienses são reveladas no livro por um estudo etnográfico e historiográfico de um pesquisador-migrante, que morou por mais de anos nas zonas envoltórias do Campus Darcy Ribeiro. O que tornou possível desmembrar alguns dos entrelaçamentos de memórias prático-discursivos convergentes e desviantes em jogo, apontando para como a construção simbólica de Brasília, como capital da modernidade-diversidade oblitera a relevância sociourbana pioneira de Goiânia. Para tanto, o livro faz uso também de uma abordagem de história oral, como, no relato da visita à casa do jataínse Toniquinho JK, que é um dos heróis civilizatórios menos conhecidos da história urbana de Brasília. Além disso, perpassa as polêmicas utópicas do período anterior à construção de ambas as cidades, seus impactos para o desenvolvimento e culturalidade no Centro-Oeste e no Brasil, bem como as expectativas para um futuro de maior integração e desenvolvimento, no que aponta para a formação desse novo eixo econômico e cultural brasileiro.

2) Como se deu de forma mais sólida e na prática esses entrelaçamentos de memórias entre Brasília e Goiás?

Em termos simbólicos e urbanísticos dos entrelaçamentos de memória entre as duas cidades, a observância dos seus nomes e seus traçados já é sugestivo: Goiânia de Goiás de 1933 do carioca Attílio Corrêia Lima com sua geometria icônica do manto de Nossa Senhora e Brasília de Brasil de 1960 do carioca Lúcio Costa com seu plano piloto do avião (pássaro). Ambas são derivativas das unidades que representam e isso sugere também influências e paralelismos históricos e geopolíticos do longo processo de modernização cultural e urbanística de Goiás com a construção e transferência de capitalidade de uma capital colonial e coronelista para Goiânia e, posteriormente, do Rio de Janeiro para Brasília. Por outro lado, Brasília enquanto utopia já havia plantado suas sementes em Goiás com a demarcação do “quadrilátero Cruls” pela missão militar homônima que definiu Goiás em 1892, para o território do novo Distrito Federal, acirrando os debates de correntes nacionalistas vanguardistas (positivistas, mudacionistas, salvacionistas e modernistas) no século XX a se entranharem nas “Marchas” discursivas e sociais para o “Oeste”. O que, certamente, ouriçou os insurgentes/entusiastas regionais goianos da Revolução de 30, sob a liderança política de Pedro Ludovico, na “refundação” descolonizadora simbólica de um novo Brasil. A pioneira construção de Goiânia funcionou para Brasília não somente como base logística infraestrutural para os primeiros anos, mas como catalisador histórico do seu projeto, que demonstrava a viabilidade de transferência de capital, assim como Belo Horizonte de 1987, também mostrou. Mas a capital goiana foi também uma conquista regional lenta, a partir de um caminho de dependência de longa duração, com vários grupos políticos progressistas estaduais contrários ao mandonismo oligárquico da Cidade de Goiás, que se encontrava estagnada não só na política, – por negligenciar o extremo norte do Estado -, mas na economia e no urbanismo, devido às suas condições topográficas montanhosas, que a impedia de se expandir com salubridade e se integrar à linha férrea do país, antiga capital de Goiás.

3) Qual a importância do jataiense Toniquinho JK para construção de Brasília?

No livro “Tradição da Modernidade”, lançado pela Editora Brasílha Teimosa em 2019, resgato a memória coletiva em torno da figura quase lendária do goiano Toniquinho JK. Ao perguntar em 1955 sobre a obrigatoriedade constitucional da mudança da capital para o Centro geográfico do país ao candidato à presidência Juscelino Kubitschek (PSD) na cidade de Jataí (GO), – reduto retumbante do psdista sob liderança do Dr. Serafim de Carvalho, colega de medicina de JK em Belo Horizonte -, na ocasião do primeiro comício de campanha do então candidato, o povo goiano se tornou cocriador da Meta-Síntese do seu Plano de Metas. Esse foi o estopim fundante para a concretização da utopia de construção de Brasília, tanto é que Juscelino fora senador por Goiás em 1961 e não por Minas Gerais. Os “lugares de memória” mais sólidos da ligação inter-regional entre Goiás e Brasília são os dois memoriais com nome do ex-presidente: Memorial JK de Jataí, construído em 2003 o de Brasília de 1981, em que há breve menção à Jataí como “mãe de Brasília”. A relevância social que a cidade do sudoeste goiano passou a ter, em função disso, pode ser observada na projeção política estadual e nacional, em torno da liderança do ex-governador e ex-senador Maguito Vilela (MDB), que era cunhado e afilhado de Toniquinho. Por meio dessa interface com Jataí da qual sou descendente e com a tradição oral familiar sobre esse ilustre jataiense, meu contraparente, infelizmente falecido ano passado dias antes do lançamento do livro que o homenageia, é que consegui perceber com mais concretude essas interfaces entre as duas cidades. Mas que faz parte de um triângulo amoroso com Belo Horizonte, pois que JK, quando prefeito da capital planejada Belo Horizonte em 1940, teve como arquiteto da orla do Lago da Pampulha Oscar Niemeyer, inaugurando a parceria que seria reproduzida em 1955 a do Lago do Paranoá.

4. De que maneira Goiânia e Brasília tem atuado de forma interdependente?

Várias cidades mineiras e goianas, inclusive, Anápolis e Goiânia, serviram de entrepostos comerciais para realização das obras da “NovaCap” e toda essa movimentação permitiu perceber o tamanho da pegada cultural e desenvolvimentista de Brasília no Centro-Oeste, o que, talvez, explique até mesmo a pujança do agronegócio de Goiás, Minas e Tocantins. Mas esse “quadro de Marinetti na fazenda Goyaz” trouxe também desencantamento com as utopias de progresso futurista. As preexistências socioespaciais não foram respeitadas pelo urbanismo modernista de Lúcio Costa, que acreditou ser possível eugenizar um território, pensado como folha quadriculada em branco na prancheta. A arquitetura modernista tem sido criticada pelo distanciamento do contexto geohistórico do ambiente construído, por desconsiderar que o espaço não é só físico e financeiro, mas também vivido e afetivo. O projeto “Documento Goyaz” do Arquivo Público de Brasília, que criou uma cartografia das antigas fazendas do território do Distrito Federal, mostra como as histórias de vida do sertão do Cerrado foram fagocitadas para criar os “belos horizontes” de Niemayer. Porém, essas narrativas caipiras sobreviveram no inconsciente coletivo em Brasília e estão camufladas sob a forma de paródia folclórica da cultura rústica e do catolicismo rural, presente nas suas festas juninas, julinas e agostinas, que são verdadeiros rituais alegóricos cosmogônicos de reconexão com as origens caipiras goianas e nordestinas de Brasília. De Goiás, Brasília herdou também uma espiritualidade muito acentuada, mesmo que com um menu multicultural mais extenso, devido à forte presença de religiões orientais.

5. Qual a real possibilidade de ser reforçada uma identidade social comum entre goianos e brasilienses, – sem que Brasília roube a cena como estrela maior da modernidade no mundo -, a partir da ecologia do Cerrado presente em todo o território de Goiás e Distrito Federal?

As cidades goianas históricas, espiritualistas e ecológicas de Pirenópolis, Corumbá de Goiás e Alto Paraíso costumam ser os locais preferidos de migração turística de final de semana dos brasilienses, o que a partir de uma reapropriação cultural e econômica “candanga”, tem contribuído para fomentar a atividade do turismo sustentável e cultural em Goiás. O interessante aqui é que a paisagem ambiental de Goiás e Distrito Federal, por ser marcada pelo bioma comum do Cerrado, tem um antídoto natural contra as fronteiras geopolíticas e identitárias regionalmente “cerradas” entre eles, que podem ser desnaturalizadas através de uma educação ecológica. A banda de “reggae com MPB” Natiruts, de Brasília, que em 1997 escolheu a cor local do Cerrado como mote inicial de sua trajetória artística, conseguiu fazer de Goiânia e Goiás o trampolim para sua carreira nacional provando que somos do mesmo habitat ecológico na Terra. Já a banda brasiliense de rock pós-tropicalista Móveis Coloniais de Acaju aprofundou essa ideia em 1998, criando uma fábula fictícia do seu nome associada à Ilha do Bananal (TO). Essa diversidade musical de Brasília também tem provocado a ampliação das matrizes musicais da cena cultural goiana, mais calcada no sertanejo urbano, na música regionalista (que seria o nosso MPB), no pop rock e no rock underground. A própria consolidação imagética de Goiânia como “Seattle Brasileira” (referência a Meca do grunge no EUA), em função da forte ascensão da cultura de rock garageiro, é tributária ao fato de Brasília ter sido capital do Rock Brasileiro comercial antes, a partir de bandas como Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude.
O que tento apontar no livro “Tradição da Modernidade: memória e mobilidade no urbanismo de Brasília” é que Goiânia, apesar de ter sido a capital modernista pioneira em relação à Brasília, por falta de políticas públicas perenes de educação patrimonial, ressignifica pouco sua ancestralidade moderna e modernista e acabou, em função da alta contrastividade com Brasília, que se impõe como um voraz capítulo da arquitetura mundial, por reforçar, predominantemente, os laços com a ruralidade em sua fase tecnológica. A construção do Centro Cultural Oscar Niemeyer em 2006, longe de corrigir essa incipiência da consciência histórica, o agrava, já que obras primorosas como essa, também presentes em Niterói (RJ) e Curitiba (PR), construídas na pós-modernidade, são réplicas genéricas do modernismo de Brasília. Goiânia tem repertório patrimonial a contento para contar sua versão sobre a modernidade.

6. A alta mobilidade interurbana chega suscitar uma identidade regional multissituada entre as duas capitais planejadas 2 Centro-Oeste?

É provável que essa visão multissituada entre as matrizes culturais predominantes em Brasília e Goiás exista de uma maneira mais equilibrada em Anápolis, que está geograficamente no meio do caminho. O protagonismo regional dessa cidade, cuja ancestralidade histórica (fundação em 1873) e infraestrutura logística (mais de 80 anos da Estação Ferroviária de Anápolis) são anteriores à Goiânia e a Brasília, certamente, contribuiu para a formação da cultura e do urbanismo de ambas. A sua inclinação política (Henrique Santillo e Henrique Meirelles), a sua vocação acadêmica (Universidade Estadual de Goiás), a sua indústria farmacêutica (Distrito Agro Industrial de Anápolis) e a sua inteligência aeronáutica (base aérea militar de Anápolis), no entanto, são reflexos dos sopros de modernidade urbanística oriundos das duas capitais planejadas. É possível perceber ali uma forte influência das dinâmicas antropológicas, relativamente mais politizadas e globalizadas de Brasília, em contraponto aos habitus sociais mais morosos e amorosos, típicos de cidade de interior goiana. A promessa de maior integração regional que poderia apontar para a consolidação de uma maior hibridização identitária transregional foi, no entanto, engavetada em 2018 pelos governos federais e estaduais, que seria o transporte férreo “Expresso Pequi” (Águas Lindas, Santo Antônio do Descoberto/ Anápolis/Goiânia), o que, provavelmente, afeta essa performance coletiva de entremeios, que chamo carinhosamente de “candangoiana”.
Alguns brasilienses e goianos que vão morar, moram ou moraram em Goiânia e em Brasília, como os estudantes goianos da UnB (Asa Norte) que acompanhei em 2005 e 2006, podem ser os agentes individuais e coletivos da transformação regional, em prol de uma tecnologia sociocultural de paz que aponte para maior tolerância e diversidade inter-regional. É possível superar o processo de (auto)estigmatização das identidades e discursividades assumidas e/ou atribuídas aos “tradicionais” goianos (sociabilidade oral e coletivista) e aos “modernos” brasilienses (sociabilidade visual e individualista). A tendência mínima de incorporação dos valores individualistas e culturalizantes do Plano Piloto por parte dos seus estudantes goianos na UnB é o primeiro passo para permitir uma maior inserção social continuada e estável na sociedade brasiliense, para além das situações de acolhimento mais comum via casamento inter-regional, empreendedorismo empresarial ou concurso público.

7) Qual era a situação de preconceito e exclusão regional vivida por parte dos goianos estudantes da UnB

O surgimento de redes regionalistas de moradia e mobilidade de estudantes goianos dessa universidade no Plano Piloto aponta para processos de negociação e resiliência identitária regional de relevo subjetivo e interpessoal. Como em uma das repúblicas que visitei em 2005, chamada “República dos Goianos” com bandeira do Estado na parede, eles eram capazes de recriar um Goiás imaginário no cartesianismo social do Plano, mas que o reifica de maneira fetichista e que tende a criar também uma autoexclusão em Brasília, por restringir seu campo de interação social. Ao reatualizar e ritualizar seus hábitos socializantes de Goiás, convivendo de forma íntima, quase que somente entre conterrâneos e contemporâneos, voltando para a cidade natal quase todos os finais de semana, esses goianos costumavam apreciar muito pouco do cosmopolitismo individualista e místico observável nos modus operandi socioculturais de Brasília. Por outro lado, a hostilização para com a minoria regional goiana é aviltante dos direitos à cidade, à diferença e à memória, o que contribui para uma segregação física e/ou simbólica dos goianos na capital federal e um distanciamento social e cultural entre as duas capitais em questão. No curso de Mecatrônica na época pesquisada, como havia mais goianos do que brasilienses, coletei relatos de maior integração regional, e percebo que o preconceito contra brasilienses em Goiânia não parece ser tão tóxico, também porque é mais fácil para o goiano, conhecido por sua hospitalidade, coordenar essas trocas culturais, do que eles. Talvez essa defensiva “abrasiva” ensimesmada dos brasilienses, seja um bloqueio psicanalítico de autoafirmação territorialista com a paternidade urbanística de Goiânia e antropológica de Goiás, no tocante à construção social e urbana de Brasília, cujos habitantes não querem também se associar ao interior do Brasil em termos de memória coletiva, ou mesmo dividir o status habitacional que a cidade confere, sobretudo, com seus vizinhos-ancestrais goianos. Como se fosse uma nave espacial ancorada no planalto, os brasilienses preferem reiterar o discurso de capital eurocêntrica para criar uma cortina de fumaça como uma capital multicultural, mas que por ser antigoiana, revela os limites de sua democracia urbana. O resultado é que muitos jovens goianos optam por “não quererem gostar de Brasília”, sem conhecê-la para além dos clichês. A verdade é que visto do Rio e de São Paulo, com exceção do mundo da política, não há um status muito diferente de ter nascido em Goiânia ou Brasília. Essa rivalidade quase irredutível entre as duas cidades, que é até maior do que entre as duas capitais do Sudeste – que encontram no futebol uma válvula de escape mais segura – pode dificultar a possibilidade de uma nova megalópole brasileira surgir desse novo eixo econômico e cultural.

8. Qual sua percepção sobre os conflitos sociourbanos no entorno de Brasília e de Goiás, no tocante também a essa questão de pertencimento geoafetivo?

Há uma diversidade seletiva nas práticas socioespaciais reiterada pelo imobilismo tombado do Plano Piloto, que exclui fisicamente goianos, nordestinos e negros pobres (apesar da Lei de Cotas ter sido pioneira na UnB) do Plano Piloto. No entanto, a periferia de Brasília tem criado uma economia criativa resiliente e sincrética através da música sertaneja, forró (brega) e pagode/funk, já que todas essas minorias sociais apresentam como traço comum a festividade musical. Nas cidades do entorno de Brasília, multissituadas entre Distrito Federal e Goiás, como mostra o premiado filme brasiliense “Branco sai, Preto Fica” (Adirley Queirós) de 2015, esses grupos marginalizados tentam lutar sem muito sucesso pelo seu direito à moradia. Mas a elite cultural e política de Brasília não costuma ser condescendente com o empoderamento habitacional dessas camadas na sua órbita, como mostram os fatos históricos envolvendo o ex-governador e Cristóvão Buarque (ex-reitor da UnB) e as remoções policiais na Vila Estrutural em 1998 comandadas por ele. O que, talvez, tenha corroborado ainda mais a preferência popular dessas camadas populares pela figura do goiano Joaquim Roriz que, no entanto, é odiado pelos moradores do Plano por ter negligenciado o crescimento desordenado e favelizador da Samambaia em troca de voto. Para além do cinturão verde que os separam da capital federal, a ausência do capital cultural e social para acessar esse museu ao céu aberto que é Brasília pode barrá-los também. A sua região metropolitana se tornou uma das regiões mais territorialmente desiguais do país com extrema violência estatal e simbólica em suas bordas, compatíveis com a Grande Vitória e a Grande Rio de Janeiro. Na tentativa de dar conta das ingerências dos pequenos municípios vicinais, em 14 de junho de 2018, mais 12 cidades foram incluídas na Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (Goiás e Minas), o que pode facilitar o diálogo intermunicipal e interestadual na resolução dos desafios comuns causados pela capitalidade nacional e regional de Brasília – como já sugeria a própria participação do Associação Atlética Luziânia no Campeonato Brasiliense e a cobertura telefônica em Alto Paraíso (GO) pela Telebrasília. Essa ampliação é resultado direto do estudo “Regiões de Influência das Cidades” do IBGE – REGIC 2007, publicada em 2008, em que Brasília já figurava na condição de metrópole nacional, equivalente à São Paulo e a Rio de Janeiro, com 298 municípios no seu espectro de influência, o que corresponde a uma superfície total de 1.760.734 Km2 e uma população de 9.680.621 habitantes. Apesar desse novo arranjo geopolítico ser promissor para criar uma inteligência institucional comum, pesquisas mais recentes na área de sociologia do direito no macro-entorno de Brasília como de Welliton Carlos tem mostrado que a consolidação da violência urbana física e simbólica nessa região expandida, bem como o efeito de rotulação social dessas periferias e seus moradores, criam um reforçador negativo subliminar (“violência invisível”), por meio de um sistema perfomativo complexo de agencialidades produzidas pelo estado, comunidade e mídia. O cinema marginal da periferia de Brasília, aqui representado pelo já citado Filme de Adirley, – um desses agentes contrahegemônicos do sistema prático-discursivo desses territórios imaginários construídos também socialmente -, além de confirmar o surgimento também de uma vanguarda de arte política na quebrada de Brasília, engendra uma resposta simbólica terrorista, hackerista e pirata (o protagonista narrador tem uma rádio-pirata) para rachar o concreto mental do preconceito racial que aprisiona a alteridade em um index das pessoas-cores proibidas de ir e vir, ser e estar, expressar e opiniar. O potencial de denúncia e transformação social pela arte geoafetiva (“artetetônica”), desse palco-território de muitos ninguéns, às sombras das torres gêmeas de Brasília, “já havia sido inaugurado pelo próprio Renato Russo (Legião Urbana), ex-morador do Plano, com sua cinematográfica canção “Faroeste Cabloco”.

9. Se “Brasília também é Goiás” no que tem de moderno e tradicional também, em que medida a capital da modernidade no mundo é também um cidade interiorana?

A capitalidade política nacional e global de alta visibilidade midiática não implica na deslocalização da vida. Brasília apresenta uma quantidade de descampados que se aproximam muito do conceito de não-lugares de Marc Augé. Mas ainda, assim, os ambientes naturais e construídos também são ambientes vividos e, por vezes, passíveis de cristalizar sentimentos de pertencimento geoafetivo localistas. Mesmo que a globalização das grandes cidades tenha criado um duplo digital do espaço físico, a necessidade da tribalização desglobalizante vital e/ou virtual cresce na mesma ou maior proporção. A vida cotidiana é experimentada em Brasília em um umwelt (universo imediato) comezinho no território e na localidade. Há peculiaridades, em função do alto fluxo de mobilidade humana nacional e internacional na capital, o que evidencia que o espaço cartesiano pode ser reinventado por “comunidades imaginárias” de acordo com o componente regional ou internacional da migração temporária ou consolidada. É claro que, por não ter esquinas, o que é um problema estrutural da sua escala gregária, a sociabilização entre vizinhos e estranhos fica um pouco prejudicada, apesar dos bares, boates, bailões, academias de ginástica, casas lotéricas (de turfe), cafés literários e clubes náuticos atenuarem isso. A solução é apelar para “amizades funcionais” (trabalho/estudo/arte), que não tem a mesma qualidade fática e “bisbilhoteira” da comunicação oral e da exposição pública do interior. No período em que morei na comercial da Super Quadra Norte 406/7 (2005-7), era aluno especial da Pós Graduação em Antropologia Social da UnB, da Escola de Música de Brasília e do Espaço Cultural Renato Russo, me restringia a interlocução quase matemática com as pessoas dessas tribos urbanas com conversas especializadas, – além de alguns amigos e/ou entrevistados migrantes (imigrantes), com quem conversava sobre as vicissitudes da aventura da modernidade urbana. Vivia uma vida pacata e monástica de uma cidade de interior, até mesmo porque a arquitetura dos vazios faz com que Brasília condecore os infinitos e os silêncios campestres como características de sua urbanidade, o que estimula certo bucolismo arcadista de inclinação taoísta. Mas, é claro que um cidadão típico de classe média típico tem muito pouco tempo para apreciar a cidade com seus altos custos de vida, haja vista o alto nível concorrencial da piracema por oportunidades de estudo e trabalho. Em contraponto a monotonia serial dos blocos, o atributo paisagístico ecológico do Plano Piloto com vegetação nativa, além de árvores frutíferas, como mamão e amora, permite estabelecer uma relação contemplativa com a natureza “entrequadras”.

10) Brasília vista como cidade antissocial é uma cidade tradicionalmente modernista enquanto Goiânia, como anfitriã, seria modernamente tradicional?

Ainda assim, resta o problema antropológico de um espaço, que não favorece o encontro de tribos, o que pode ter contribuído para surgimento de gangues das quadras em algumas épocas. Quando queria lembrar da antropologia do Brasil profundo e sentir mistura de cheiros e sons, tinha que ir para a Rodoviária do Plano, a Feira da Torre de TV ou ao Conjunto Nacional (ou mesmo a eventos culturais e políticos na Esplanada do Ministério), que eram um dos poucos ambientes do Plano Piloto que se pareciam com a cidade pseudocaótica brasileira. Como o individualismo que causa a solidão criativa também pode criar a sociofobia paranoica e delinquência juvenil, eu diria que a experiência da sociologia arquitetônica de Brasília tem um misto de ficção científica primeiro mundista, mas que esconde um “faroeste caboclo” bem goiano. A diferença é que em Brasília a paradoxal “tradição da modernidade” fica evidenciada pelo produtivismo egocentrista dos pilotos-moradores que mantém a tradição de aprimorar sua individualidade a todo vapor às custas de um regionalismo que tende a fazer da figura do goiano um pária regional antimoderno, independentemente de sua classe social. Aparece também no autoritarismo patrimonialista de um Plano Piloto intocável e imutável, que ao tentar conservar demais a modernidade, que é caracterizada pela compulsão por mudança, acaba por negá-la. As coordenadas sociais e arquitetônicas de Brasília, outrora vanguardistas, foram encapsuladas em um passado mítico heroico de um modernismo quase atemporal e universal, – até porque foram essas as premissas inconsequentes da arquitetura de Le Corbusieur (CIAM), que geraram, por vezes, comportamentos espaciais desertificantes. Mas a origem e o espelho antropológico dessa inédita experiência de cidade na humanidade que é a monumental e recalcada Brasília do Brasil, é ainda a visionária e provinciana Goiânia de Goiás, que enquanto metonímia cultural de Brasil, permite acordar os brasilienses do sonho de Dom Bosco, que virou pesadelo.

11. Sobre os conflitos interregionais entre goianos e brasilienses, de que forma essa celeuma de esteriotipagem surgiu e em que medida isso tende a contribuir para uma compreensão errônea do movimento iniciado com a Marcha para o Oeste?

Apesar da proximidade física, fluxos migratórios e vinculações mnemônicas entre as duas cidades, a distância cultural entre Brasília e Goiânia é estimulada por um processo de (auto)estigmatização regional relacional, atrofiante de possíveis experiências de alteridade entre as duas cidades-irmãs vicinais e planejadas. Em termos antropológicos, eu diria que, ao menos, em relação aos jovens estudantes goianos da Asa Norte e da UnB de 2005, a implicância com Goiás, se devia ao fato de eles figurarem na época no posto de segunda maior penetração em termos de aprovação institucional no vestibular normal e fatiado (PAS). O Programa vestibular de Avaliação Seriada (PAS) contribuiu para isso porque, diferentemente do ENEM, ele exigia que os alunos de outros Estados do segundo grau, fossem os 3 anos consecutivos da prova até o Distrito Federal (atualmente somente a 3ª etapa, podendo as demais serem feitas em cidades de Minas e Goiás). Mas é claro que essas brigas de pichações em porta de banheiro de Universidade, não explica a animosidade social na cidade como um todo. O sotaque goiano carregado, mesmo em goianienses, seria, nesse caso, um marcador regional da diferença que dispara o conflito com os brasilienses, mas, que não é a causa primeira. Na verdade, essa intolerância é referente a disputas culturais sobre a partilha do legado da modernidade social e urbanística no Centro-Oeste e territoriais pelo compartilhamento de espaços econômicos e universitários na “capital da esperança”. O mito de que Brasília não tem sotaque e é terra de ninguém oculta uma verdadeira hierarquia de sotaques regionais exotizantes ou estigmatizados que são formas de capitais linguísticos para acessar com mais “propriedade” territorial e simbólica a capital brasileira.
Antes de pensarmos no conflito regional entre goianos e brasilienses, talvez, seja mister relembrar que essa região de sertão goiano onde Brasília fica situada, como a que se tornou o Tocantins, eram vistas como uma região semifeudal, inclusive, pelos goianos de áreas mais consolidadas, que de certa forma, porém, eram estigmatizados pelas regiões mais ricas do Sudeste, de maneira genérica: mito do velho Goiás de “Goiás Velho”. Após a construção de Brasília, que em tese, viria arrefecer isso, o mito de futurismo de Brasília acabou por efetuar uma transferência desidentificadora com as preexistências espaciais de memória coletiva do seu território sertanejo, soterrado pelo concreto, para os goianos e o resto de Goiás, que, em relação à opulência de modernidade, passaram a (auto)representar erroneamente uma antítese social e urbana da capital federal. Na verdade as polêmicas que existiam, surgiram até antes das duas capitais planejadas terem sido construídas, já que elas foram precedidas de intensos debates ideológicos polarizadores das elites culturais e políticas goianas e brasileiras contra e a favor às mudanças da 2 capitais, que depois de construídas, foram realinhados pelas frustrações geradas pelo elitismo reoligarquizante, reprodutor de segregação socioespacial e clientelismo político.

12) Por que historicamente o modernismo em goiano tende a ser silenciado se comparado ao de Brasília?

O que as diferenciou (e seus habitantes, por tabela), de fato, é a projeção midiática, turística e acadêmica de suas qualidades e mazelas sociais e urbanísticas, por ser uma capital federal moderna de 60, em relação à Goiânia estadual pré-moderna de 33. O esquecimento moderno de Goiânia permite abrandar o fato que ela é “aparecida” (ou até pior) com Brasília no quesito desigualdade sócio-espacial, desestruturante da habitabilidade das cidades dormitórios ao seu redor! Essa desmodernização em Goiânia tem fatores específicos como: 1) mudanças de plano urbanístico da linhagem moderna francesa para a inglesa, gerando um projeto híbrido após o mineiro Armando Augusto de Godoy ter assumido a construção da capital no lugar de carioca Attilio Corrêa Lima para, como o impacto da escala demográfica do planejamento urbano em Goiânia, pensada para 50.000 pessoas, –  que expirou em função da expansão rentista especulativa desenfreada na mancha urbana; 2) o nostalgismo vilaboense reverenciado em termos de memória temporal no ritual de transferência da capital de Goiânia para cidade de Goiás no dia 23 de março; 3) a onipresente simbologia vilaboense reapropriada em termos de memórias espaciais em Goiânia através de nomes de equipamentos públicos (Ginásio Rio Vermelho, Estádio Serra Dourada e Avenida Cora Coralina, cuja construção modificou o traçado original do Setor Sul) e desenhos urbanos (réplica da pedra goyana na Praça das Mães São Nicolau e da Cidade de Goiás dentro do Colégio Marista, p. ex.);  4) a vinda de famílias ricas das mais ricas cidades do interior e da antiga capital, que se estabeleceram na capital repaginando suas identidades interioranas; 5) o acontecimento do segundo maior acidente radioativo do mundo na cidade no ano de 1987 com ampla projeção midiática e científica, que criou muito preconceito contra os produtos e pessoas da cidade, por falta de informação sobre o contágio da substância Cs 137 e 6) o “eterno retorno” dos Caiados à política regional, até mesmo se participando da luta pela construção física (Emival Caiado) e pela reconstrução moral (Ronaldo Caiado) da capital federal. Todos esses fatores fizeram com que a cidade fosse (auto)estigmatizada como culturalmente atrasada e rural, ocultando e desmobilizando os rompantes modernistas no patrimônio cultural edificado e imaterial, ao contrário do que ocorreu em Brasília, – que sempre recorria a dupla de urbanista e arquiteto responsável sobre qualquer inovação urbana posterior. A fricção regional ao longo do tempo se encarregaria de transformar essas deixas simbólicas em polarização cultural e geopolítica entre a “terna Goiânia Velha” e a “eterna Nova Cap”, em que (auto)representamos o estigma regional do atraso, o rural e o colonial, mesmo sendo Brasília resultado dos mesmos condicionantes geohistóricos. 

13) Como se deu esse processo de amnésia coletiva referente à memória urbana modernista de Goiânia?

Os conflitos discursivos e sociais interregionais (intermodernos) entre goianos e brasilienses são resultados de uma tentativa de apagar ou relativizar os entrelaçamentos históricos positivos entre eles. Talvez, seja operacional para alguns grupos econômicos e políticos goianos e brasilienses que haja essa dicotomia de memória, podendo, inclusive, ser explorada pelo mesmo grupo social e político, em lados opostos e momentos distintos. Como o exemplo do mudacionista Emival Caiado (UDN), autor da Lei 3.273/1957 que fixou a data de mudança (21 de abril de 1960) da capital brasileira do Rio de Janeiro para Brasília e o ex-senador Ronaldo Caiado (DEM), que fazem uso de projetos modernos fora de casa, – como a construção social e moralização política (anticorrupção) de Brasília, respectivamente, para melhor manter o tradicionalismo mandonista tacanho em Goiás, contra o qual Goiânia fora construída pelo seu fundador em 1930. A reificação reducionista da nossa cultura e economia à sua parcialidade sertaneja e agrária, mesmo em sua fase agrotecnológica, é nefasta para a construção de uma sociedade goiana mais tolerante e sincrética.
Após termos sido o fiador entusiasta de memória coletiva e de território geoafetivo da construção social e urbanística da nova capital em uma espécie de pacto com o Mefistófeles, houve um arrependimento cristão e uma desindentificação cultural goiana, diante da “tragédia fáustica” decadente do positivismo seletivo e segregador. Aos avanços e aos traumas decorrentes do advento da modernidade em Brasília, se seguiu uma relativa descrença do povo goiano em relação à grandiloquência urbanista carioca, que transvestiu a miséria do país com fantasia de primeiro mundo em um monumental carro alegórico faraônico. Esse distanciamento geoafetivo de Brasília, no entanto, acabou por incitar um (auto)apagamento regional da memória moderna de Goiânia e um reforço da sua herança rural e interiorana. As narrativas, memórias e pessoas (auto)excluídas física e simbolicamente do planejamento cartesiano da “BraXília” (criticada pelo poeta nativo Nicolas Behr) e de seu modus operandi socioculturais de máquina capitalista predatória, demonstram que o positivismo republicano têm sido seletivo e até antinacionalista. Muitos goianos trabalharam nas obras da construção de Brasília, mas eram tidos como menos combativos do que os candangos, em função de sua cultura de ajuda mútua e boa vizinhança.

14) Por que a goianidade é subtraída da história urbana de Brasília, apesar do goiano Joaquim Roriz ter sido governado e Senador do Distrito Federal?

O nordestino, como não tinham condições de retornar às suas regiões com facilidade, era mais obrigado a aceitar empregos e moradias em condições subumanas. Por isso, há pouca referência à goianidade no panteão histórico capital federal, que somente considera os cariocas (Niemeyer e Lúcio Costa), os mineiros (JK) e os nordestinos (candangos) como heróis civilizatórios, apesar de que em 2017 foi sancionado o projeto da controversa deputada distrital Celina Leão (herdeira do legado político de Roriz), que instituiu o dia de 12 de setembro, como o dia do goiano em Brasília. Essa data talvez seja uma reparação da estigmatização e esquecimento da memória coletiva goiana em Brasília, já que a famigerada dinastia goiana da família Roriz, após suas passagens pelo legislativo e executivo distrital, reforçaram as rotulações deletérias e as invisibilizações “preventivas” em relação aos goianos, independente da classe social, no contexto globalizada classe média Plano Piloto. Em função das políticas públicas sócio-habitacionais eleitoreiras, mas que vinham ao encontro das necessidades prementes da população de baixa renda (migrantes), em meio ao caos do déficit habitacional brasileiro, o ex-governador por Goiás na chapa de Henrique Santillo (1996), escolhido governador “biônico” do Distrito Federal pelo Presidente Sarney (1988), aproveitou do resquício de Ditadura para mostrar serviço para territórios “goianizados” do Distrito Federal. Consciencioso do potencial curral eleitoral dessas áreas semirurais das bordas da mancha urbana de Brasília, Cidades Satélites e Cidades do Entorno atuou para institucionalizar a inclusão descentralizadora/exclusão centralizadora, legalizando juridicamente territórios devolutos e precários. O tipo de goianidade política clichê que Roriz representa se tornou um fantasma a assombrar os horizontes impressionistas geometricamente calculados de Brasília (Plano Piloto), já que há um componente estético e eugenista desumano muito forte na identidade urbana dos brasilienses e sua crença absoluta no pseudoplanejamento exemplar da sua capital. Sobre isso é interessante pontuar como parece haver uma dissociação política de conotação cultural, regional e social muito forte do eleitorado no Distrito Federal, perceptível em relação à análise do curral eleitoral dos dois políticos de maior prestígio da região. O ex-reitor da UnB e ex-governador distrital o pedagogo Cristovam Buarque (na época do PT), se tornou uma espécie de guardião dos moradores do Plano Piloto em sua estagnação eugenista excludente, tendo atuado por excesso do uso da força policial com diversas remoções compulsórias violentas de habitações irregulares na Vila Estrutural. Já o apadrinhado por militares, o goiano ex-governador e ex-senador distrital Joaquim Roriz, se tornou rei dos moradores do Samambaia em seu crescimento desordenado includente, através de várias aglomerações sub-normais, por omissão do rigor da lei urbanística. O humanista se tornou fascista revelando que o fenômeno da exclusão socioespacial “estrutural” em Brasília e quando o biônico se tornou populista, revelando o da inclusão descentrada eleitoreira.

15) De que maneira o elitismo da tecnocracia e da política em Brasília atua para criar uma cidade fora do Brasil e de Goiás?

Já para os que entraram pela porta da frente na engrenagem e memória social de Brasília, a tentação em reproduzir a miragem da cidade como capital do progresso, da arquitetura e da diversidade parece ser a única forma de garantir suas “imunidades sociais”. Como as vozes da política de Goiás e dos demais Estados em Brasília, seguiram sendo “castas” dominantes do grande capital e da grande propriedade privada (fundiária), é natural que o desencantamento democrático inter-regional, político, social, racial e sexual com os 3 poderes federais e sua modernização aparente, acabe respingando na imagem dos moradores da cidade como um todo, também porque, boa parte deles pertencem à burocracia estatal federal com altos rendimentos. O elitismo tecnocrático de Brasília também cria uma ilusão de superioridade relacional com os goianos, e como ocorreu com o Rio da Guanabara (ex-DF) em relação aos demais brasileiros, a capitalidade política da cidade tende a ser internalizada e naturalizada pelos migrantes adaptados e gerações nativas como uma qualidade intrínseca subjetiva -, no que revela que o antigoianismo que reduz Goiás a uma colonialidade atroz, oculta também um carioquização provinciana de Brasília, que, em tese, deveria combater os resquícios de monarquismo e coronelismo da velha política no Rio. Os espaços sociais tendem a ser georreferenciados afetivamente, por conservar a memória coletiva de determinados grupos. A antipatia social dos goianos vizinhos completa essa “arquitetura da destruição” de Brasília, pois se trata de um esforço de autoafirmação identitária que o elege no senso comum como o estereótipo antiexemplar ou execrável. O que acaba resultando também na estigmatização regional sobre os brasilienses em Goiás, que também é resultado de uma falta de uma consciência histórica mais fluente e influente, já que temos sido outsiders de nossa própria tradição moderna que gestou Brasília.

16) Qual a importância da consciência histórica e educação patrimonial para que Goiânia possa de fato valorizar sua tradição moderna?

De forma geral, esse relativo silenciamento da memória coletiva goiana no plano e gestão do urbanismo de Brasília não explica toda essa exclusão simbólica e estigmatização regional dos goianos na interlocução “inter-moderna” com os brasilienses, pois apesar de termos sidos os patriarcas da modernidade no Brasil, nós é que não incorporamos esses valores modernos de maneira mais autorreferentes e continuadas no cotidiano goianiense. São as nossas formas de narrar as “hestórias” de cidade e sociedade, que escamotearam os valores mais cosmopolitas de sua historiografia. Apesar de haver uma sinalização da prefeitura no sentido de construir um museu da arquitetura (Museu Atílio Correa Lima e Armando de Godoy), não há um especial cuidado pedagógico em gerir e ensinar a memória coletiva e patrimônio edificado modernista, como vemos no cuidado com os canteiros de flores e parques, – que desde de Nion Albernaz, tem sido merecidamente uma marca registrada da nossa cidade. A própria celeuma em torno da construção da Avenida Cora Coralina aponta para atropelamentos privatizantes de bairros históricos como o Setor Sul, que tendem a sabotar sem doce ou poesia, o traçado original e a história patrimonial da cidade, – o que certamente, comprometerá caso se queira se pleitear no futuro o título de Patrimônio Histórico da Humanidade (UNESCO). A UFG, mesmo depois de 50 anos após a fundação da cidade, não tinha ainda se quer um curso de Arquitetura e Urbanismo e esse delay com o tema na capital nacional de 30, certamente, está cobrando a conta. A estátua do Pedro Ludovico de Neuza Moraes que hoje está na Praça Cívica ficou anos em um depósito ali perto da Igreja Coração de Maria coberta pelo esquecimento no Centro e quando foi, então, apresentado ao público tem se movido de lugar e altura como um fantasma animado, enquanto um representante da estirpe Caiado, família, para qual Goiânia foi construída para se afastar de sua influência oligárquica, tem endereço fixo no Palácio das Esmeraldas, visando saltos maiores, quiça, com planos de aterrissar de caminhonete branca no Palácio do Planalto. Esse tipo de contradições históricas, que também estamos vivendo no Brasil em relação ao tema da ditadura, da qual Goiânia também fez história com o comício pelas Diretas-Já na mesma Praça que espero que não mude o nome para “Moral e Cívica”, tem causado um nó historiográfico, em função do fracasso das correntes pós-getulistas com a derrocada do lulopetismo. Tal conjuntura nos apresenta como oportunidade única para redefinir e reconhecer em bases confiáveis, – muito além da versão da história brasileira proposta pelos militares com esquecimentos estimulados e pelos marxistas com conflitualidades superdimensionadas -, o que é moderno e o que é conservador na sociedade brasileira, goiana e brasiliense, e problematizar, qual é o lugar da modernidade em nossa tradição.

17) O que modificou após esses 16 anos de pesquisa até hoje para melhor ou pior em relação ao quadro de conflito e (auto)estigma regional mútuo?

Com o aumento da participação de Goiás na economia nacional e internacional, proporcionado pelo crescimento, principalmente, do setor de agronegócio e agroindustrial – , mas também industrial, imobiliário (construção civil) e farmacêutico no Estado -, juntamente, com a ascensão da indústria cultural sertaneja goiano sediada em Goiânia, a goianidade recebeu um aporte de capitalidade simbólica e econômica, que permitiu aos goianos se impor um pouco mais em relação à cultura e à economia brasiliense (mais calcada no setor terciário público e privado). O crescimento das empresas goianas, que, em alguns casos, voltaram como nos primórdios da capital federal a ter um esforço de vendas em Brasília -, em alguns casos, constituindo sede em Brasília ou Distrito Federal -, também permitiu uma reconquista simbólica do território do DF, por meio do empreendedorismo empresarial. Por outro lado, percebendo o dinamismo cultural e econômico de Goiânia e Goiás, as empresas brasilienses, também passaram a atuar com mais pragmatismo mercadológico sem afetações regionalistas, como o caso do Jornal Correio Braziliense, que aproveitando da lacuna de não haver um jornal goiano com cobertura nacional e internacional com qualidade, passou a ser vendido em muitas bancas de Goiânia. No entanto, se há 17 anos atrás eram os brasilienses que ditavam a tônica do processo de hostilização regional, por ser Brasília a capital na época mais atrativa para a migração goiana e não o contrário, hoje, a situação se nivelou ou até se inverteu, em alguns casos. Em função também da ascensão política-ideológica do bolsonarismo antipolítica (antiBrasília e antimodernidade), que tem afinidade eletiva com o discurso do caiadismo ruralista (pró Cidade de Goiás e pró-neocoronelismo), a vocação e “tradição de modernidade” de Goiânia segue sendo obnubilada por correntes de memória psicocoletiva espacial e temporal associada à antiga capital do Estado, que autenticam uma desvalorização dos seus valores e arquiteturas (pré)modernas. Um exemplo disso foi o fato do sítio histórico arquitetônico de 1962, que compõe o Colégio Marista -, no casos 2 blocos de uma extensa edificação horizontalizada de 3 pavimentos com inspiração modernista, sendo um deles com pilotis -, terem sido parcialmente descaracterizado por upgrades para aumentar o número da área construída. Por outro lado, o colégio construiu uma pré-escola nas áreas devolutas no fundo do terreno que é uma réplica do centro histórico com arquitetura colonial da Cidade de Goiás.

18) Qual seria uma estratégia de refundação simbólica de Goiânia para que sua modernidade pudesse ser salvaguardada e seu visionarismo renovado?

A questão do futuro da patrimonialização cultural e histórica em Goiânia esbarra na falta de políticas públicas urbanas e educacionais, que não utilizam de estratégias pedagógicas e educomunicativas para conscientização cidadã para tornar o cidadão co-responsável pela gestão da cidade. A luta pelo patrimônio histórico natural, arquitetônico e cultural (material e imaterial) em Goiânia é árdua, pois em diversos momentos vários territórios da memória tem sido pervertidos para atender aos interesses do desenvolvimento insustentável, inclusive, com desafetações e grilagens de áreas públicas, sobretudo, abertas e verdes. Muito já tem sido feito pelos órgãos de salvaguarda patrimonial para tombar e conservar prédios históricos em Art Decó, o que, no entanto, pode ser uma política pública urbana reducionista e enviesada, que desconsidera que as “zonas envoltórias” e “ambiente vivido” também compõe são ativos importantes da paisagem cultural (patrimônio arquitetônico e antropológico). Por tal pressuposto, o Estádio Olímpico que tem o nome do fundador da cidade (Pedro Ludovico), por exemplo, foi inteiramente descaracterizado. A falta de educação urbana e patrimonial revela um profundo desconhecimento da história urbana local (capital planejada por urbanismo moderno francês e inglês), que acaba gerando negligências e equívocos sociais e políticos na gestão do bem público (privado) histórico. A WEB série “Descentralizando o Centro” de Goiânia, realizado pelo Movimento Artetetura e Humanismo em 2021, tentou justamente incentivar uma nova percepção urbana e comportamento ambiental, criando um mapa mental imersivo (2.0) e inclusivo, que possibilita se apropriar do passado, do presente e do futuro da urbanidade do Centro da capital, enquanto metonímia das outras regiões. Iniciativas como essa podem despertar a aptidão individual e coletiva para a defesa do patrimônio edificado, ambiental e cultural em Goiás. Mais do que elegível ao título de patrimônio da humanidade, o que pretendemos é transformar Goiânia, a capital de (19)30, na capital do (trans)humanismo de 2030. Por isso também, criamos em 2022 o selo futurista “Goiânia: capital de 2030”. Este projeto educomunicativo sobre questões socioambientais, urbano-patrimoniais e sociomuseológicas em Goiânia (GO) realiza uma autenticação do imaginário e memória coletiva da cidade enquanto capital planejada símbolo do urbanismo moderno (ecologicamente correto) e da Revolução de 30. A proposta visa refletir sobre a relevância história urbana e política da cidade, no que prepara seus moradores e visitantes para uma cidadania participativa e inclusiva, no tocante à observância e reivindicação da aderência da gestão pública aos preceitos do Direito à Cidade constituído através de um Plano Diretor de Goiânia participativo (“Plano Dirigido”) e da Agenda de 2030, por meio da aplicação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.   


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

 

 

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