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Cerrado: Dor fantasma da biodiversidade brasileira

Cerrado: Dor fantasma da biodiversidade brasileira

Em pleno século XXI, encontra-se em suspenso o destino do Cerrado. Se as próximas décadas trarão sua ruína ou salvação, ainda não se pode dizer. Entretanto, embora sejam grandes as lacunas no nosso conhecimento, dispomos de informações suficientes para impedirmos uma degradação irreversível.

Por Altair Sales Barbosa

Mas o que se pode afirmar é que, enquanto o desejo de explorar o Cerrado tiver raízes estrangeiras, a possibilidade de criação de um programa racional de desenvolvimento será nula.

Por essas razões, a situação do Cerrado atualmente se assemelha ao fenômeno conhecido em neurologia como dor fantasma. As pessoas que são vítimas desse mal sofrem um duplo infortúnio. Elas, que perderam um membro, ou uma extremidade deste, sofrem dores às vezes muito intensas, como provenientes do membro que já não têm mais.

As discussões sobre o Cerrado se asseme­lham a tal situação, porque estamos sentindo as dores da perda de um ambiente que não existe mais, na plenitude de sua biodiversidade.

O professor Aziz Ab’Sáber classifica o Cerrado como um Domínio Morfoclimático e Fitogeo­gráfico. Entretanto, o mais correto é correlacionar os diversos fatores que compõem sua biocenose e defini-lo como um Sistema Biogeográfico.

Um sistema que abrange áreas planálticas, que constituem o Planalto Central Brasileiro, com altitude média de 650 metros, clima tropical subúmido, com duas estações, uma seca outra chuvosa, solos varia­dos e um quadro florístico e faunístico extremamente diversificado e interde­pendente.

O Cerrado exer­ceu papel fundamental na vida das po­pulações pré-históricas que iniciaram o povoamento das áreas interioranas do continente sul-americano. Nesse espaço, essas populações desenvolveram importantes proces­sos culturais que moldaram estilos de sociedades bem definidos, nos quais a economia de caça e coleta imprimiu modelos de organização espacial e social com características peculiares.

PROCESSOS CULTURAIS

Os processos culturais indígenas que se seguiram a esse modelo trouxeram pouca modificação à fisionomia socio­cultural e, embora ocorresse o adven­to da agricultura incipiente, exercida nas manchas de solo de boa fertilidade natural existentes no Cer­rado, a caça e a coleta, em particular a vegetal, ainda constituíam fatores decisivos na economia dessas socieda­des.

Sem considerar a área do Parque Nacional do Xingu que, mesmo tendo alguns elementos do Sistema do Cerrado,  pode ser considerado como parte integrante do Sistema Equatorial Amazônico, ou Trópico Úmi­do, e sem considerar também alguns povos que vivem em áreas disjuntas de Cerrado, como os Pareci e Nambikwara, a área contínua do Sistema do Cer­rado dos Chapadões Centrais do Bra­sil apresenta uma população indígena atual de aproximadamente 46.118 ha­bitantes, distribuída principalmente em terras do Maranhão, do Tocantins, de Goiás e Mato Grosso do Sul.

Essa popu­lação engloba 26 povos com característi­cas culturais diferenciadas, cuja situa­ção atual e fragmentação demográfica não refletem a importância que o es­paço geográfico do Cerrado teve na sua fixação durante longos períodos, nem refletem a verdadeira história da ocupação deste espaço por tal população.

A partir do século XVIII, o panora­ma regional começou a sofrer sensí­veis modificações, com o incremento da colonização, que se embrenhava pelo interior do país em busca de ouro, pe­dras preciosas e índios escravos.

Nesse contexto, e a partir dessa data, sur­giram os primeiros aglomerados urba­nos, e a exploração mais intensa dos recursos minerais, que começava a se incrementar, já provoca os primeiros sinais de degradação. Findo o ciclo da mineração, a economia do Cerrado per­maneceu economicamente dedicada à criação extensiva de gado e à agricul­tura de subsistência.

Alguns desses modelos econômicos sobrevivem até os dias atuais, de maneira precária, em espaços localiza­dos, e outros mode­los mais simples, baseados no extra­tivismo, ainda são adotados por populações caboclas, habitantes atuais de espaços definidos.

O isolamento que a região manteve em relação às áreas mais populosas e economicamente dinâmicas do Brasil, até meados da década de 1960, fez com que este quadro permanecesse basicamente inalterado, fato que a implantação de Brasília alterou consi­deravelmente, desestruturando os sis­temas sociais implantados e causando entropias de ordem biológica.

O potencial agrícola que o Cerra­do demonstrou, após o maciço financiamento de pesquisas pelo capital internacional, associado ao fato de ser uma das últimas reservas da Terra capaz de suportar, de modo imediato, a produção de grãos, a formação de pastagens e o desenvolvimento das técnicas modernas de cultivo, tem atraído recentemente grandes inves­timentos e criado modificações signi­ficativas, do ponto de vista da infra­estrutura de suporte.

O fato da não existência de uma política global para a agricultura tem provocado o êxodo rural e o crescimento desordenado dos núcleos urbanos. Todos esses fatores, em seu conjunto, têm provocado situ­ações nocivas ao meio ambiente natu­ral e social.

SISTEMA BIOGEOGRÁFICO DO CERRADO

O Sistema Bio­geográfico do Cerrado é limitado por uma série de complexas formas vege­tacionais intermediárias que adquirem contornos específicos em direção à ca­atinga e outras configurações, em di­reção à Floresta Amazônica úmida.

O Sistema Biogeográfico do Cerrado não pode ser tomado como uma unidade homogênea, pois ostenta em seu domínio uma série de ambientes diversificados entre si, pelo caráter fisionômico e pela composi­ção vegetal, solo, balanço hídrico, animal etc. Esses ambientes constituem os seus subsistemas. Sua compreensão é de fundamental im­portância para se entender o Sistema como um todo e o caráter da biodiver­sidade que ostenta.

O Sistema Bioge­ográfico do Cerrado é composto por seis subsis­temas interatuantes, caracterizados pela fisionomia e composição vegetal e animal, além de outros fatores que, de modo geral, apresentam a seguinte organização: Subsistema de Campo; Subsistema de Cerrado; Subsistema de Cerradão; Subsistema de Matas; Subsistema de Matas Ciliares; Subsistema de Veredas e Ambientes Alagadiços.

Subsistema de Campo: ocupa as partes mais elevadas do Sistema, apresenta morfologia plana, regionalmente denominada chapadões ou campinas.

Subsistema de Cerrado Stricto Sensu: constitui a paisagem dominante do Sistema. Ostenta um estrato gramíneo, assim como nos campos, mas se diferencia destes, pela ocorrência de árvores de pequeno porte e aspecto tortuoso, o que se explica pela teoria do escleromorfismo oligotrófico.

Subsistema de Cerradão: é, fisionomicamente, mais vigoroso que o Subsistema do Cerrado. As ár­vores atingem de 10 a 15 metros de altura e os solos demonstram maior fertilidade natural. Não há um estrato gramíneo forte como no Cerrado, e as árvores são mais encopadas.

Subsistema de Matas:  ocorre em manchas de solo de boa fertilidade natural que, às vezes, ad­quirem a configuração de ilhas, em meio a uma paisagem dominante de Cerra­do, sendo conhecidas por capões e podendo formar áreas extensas, compactas e homogêneas.

Subsistema de Matas Ciliares: ocorre nas cabeceiras dos pequenos córregos e rios, acompanhando-os pelas suas margens em estreitas faixas.

Subsistema de Veredas e Ambien­tes Alagadiços: as cabeceiras de alguns córregos e rios são, às vezes, caracterizadas por ambientes alagadiços, decorrentes do afloramento do lençol de água ou ain­da em virtude de características im­permeabilizantes do solo. Nesse local, ocorrem as veredas, que são paisagens nas quais predominam os coqueiros buriti e buritirana, que geralmente se distribuem acompa­nhando os cursos d’água até a parte média de alguns rios, formando uma paisagem muito bonita.

Essa diversidade de ambiente é um fator muito importante para a diversificação faunística, permitindo a ocor­rência de animais adaptados a am­bientes secos e, também, a ambientes úmidos.

Da mesma forma, propicia tanto a ocorrência de formas adap­tadas a áreas ensolaradas e abertas como favorece a ocorrência de formas ombrófilas. Esses fatores atribuem ao Sistema Biogeográfico do Cerrado um caráter sin­gular, distinguindo-o pela variedade de formas vegetais e animais.

O Cerrado situa-se em um local estratégico entre os diversos Sistemas Ambientais brasileiros, o que fa­cilita o intercâmbio florístico e faunís­tico.  A partir do centro do país, a sua área estende-se de um extremo ao outro, de Mato Grosso do Sul ao Piauí, em seu eixo maior; e limita-se, para oeste, com a Floresta Amazônica, para o leste e nordeste, com a vegeta­ção da Caatinga, sendo acompanhada ao sul e sudeste pela Floresta Atlânti­ca.

Essas ligações favoreceram o deli­neamento de corredores de migração importantes, tanto por via terrestre como aquática. Algumas espécies animais do Cerra­do são limitadas a determinados tipos de habitats. Os espaços são bem de­finidos, de acordo com a necessidade biológica de cada espécie. Esse con­dicionamento ao ambiente pode ser explicado pelo determinismo ambien­tal, imposto pela natureza por meio de recursos alimentícios, que condiciona­ram os animais especialistas a viverem em determinadas áreas, em função do hábito alimentar.

Um exemplo conhe­cido é o da espécie Myrmecophaga tridactyla (tamanduá-bandeira), que se alimenta basicamente de cupins terrestres e formigas, abundantes em campos abertos. Para o Cerrado, são apon­tadas 935 espécies de avifauna, distribuídas em diferentes habitats por todo o bioma. Quanto aos mamífe­ros, foram listadas 298 espécies, e 268 de répteis.

A maturação dos frutos e a rebrota das gramíneas, fonte principal de ali­mento de um grande contingente de fauna, não ocorrem de forma homo­gênea em todas as áreas do Cerrado.

A grande frutificação acontece duran­te os meses de novembro, dezembro e janeiro, época que coincide com o auge da estação chuvosa. A concentra­ção desses recursos diminui, acompa­nhando o fim do período chuvoso. En­tretanto, com exceção dos meses de maio e junho, considerados críticos no que se refere à oferta de alimentos, os demais meses que correspondem à época seca, mesmo em menor quanti­dade, apresentam alguns recursos, en­tre esses, flores, raízes, resinas e alguns frutos.

Os mamíferos do Cerrado podem ser observados durante todo o ano, principalmente os que vivem em áre­as abertas. Todavia, a maior concen­tração dessas espécies em seus nichos alimentares se dá nos meses de setem­bro, outubro, novembro, dezembro e janeiro. Essa época coincide com a rebrota das gramíneas, que, geralmen­te durante a estação seca, por ação natural ou antrópica, sofrem a ação do fogo.

Também é nessa época que ocorre a maturação dos frutos. Nesse mesmo período, acontece a revoada de inse­tos (mariposas e tanajuras), o que tor­na fartos os recursos para a fauna insetívora. Grande parte desses animais está se acasalando durante os meses cor­respondentes à estação seca. Isso significa que no período chuvoso estarão com filhotes. Essa dinâmica da natureza revela a estreita relação en­tre a flora e a fauna do Cerrado

Infelizmente, a cada ano que passa, aumenta a lista dos animais ameaça­dos de extinção total. A natureza do­tou esta região de certos mecanismos naturais que garantem a multiplicação e a propagação das espécies. Existe uma estreita interdependência entre a fauna e a flora.

O fator biodiversidade animal está diretamente relacionado à diversidade de ambientes. Estes, por sua vez, relacionam-se à variedade de espécies vegetais que se multiplicam sob a influência de fatores litológicos, edáficos e climáticos, de ordem regio­nal e local.

A falta de uma polí­tica séria e baseada em princípios de conhecimento do ambiente tem colocado em risco todo o patrimônio natural dessa região, marcada por processos intensos de ocupação de­sordenada dos espaços. A política de­senvolvimentista aplicada no Brasil, principalmente no Cerrado, que é considerado a última grande fronteira para a produção de grãos, tem levado muitas espécies da fauna à extinção e, consequentemente, alguns exemplares da flora, em função da sua interdepen­dência.

Muitos animais da Megafauna (fauna gigante) já foram extintos den­tro de um processo lento e natural, imposto pela evolução da natureza. Os animais modernos estão se extin­guindo ou estão em vias de extinção, dentro de uma dinâmica proporcionada pela ação humana. Muitas dessas espécies não alcançaram nem alcançarão o seu clímax evolutivo, pois a velocidade dos processos de degradação é muito grande.

CUMEEIRA DA AMÉRICA DO SUL

O Cerrado é a cumeeira da América do Sul, distri­buindo águas para as grandes bacias hidrográficas do continente. Isso ocor­re porque na área de abrangência do Cerrado se situam três grandes aquí­feros, responsáveis pela formação e alimentação dos grandes rios do con­tinente: o aquífero Guarani, associado ao arenito Botucatu e a outras forma­ções areníticas mais antigas, que é responsável pelas águas que alimen­tam a bacia do Paraná; e os aquíferos Bambuí e Urucuia.

O primeiro, associa­do às formações geológicas do Grupo Bambuí, e o segundo, associado à For­mação arenítica Urucuia, que em mui­tos locais está sobreposto ao Bambuí, há até o encontro dos dois aquíferos, apesar de existir entre ambos uma grande diferença de idade. Os aquífe­ros Bambuí e Urucuia são responsáveis pela formação e alimentação dos rios que integram a bacia do São Francisco, Tocantins, Araguaia e outras, situadas na abrangência do Cerrado.

Esses aquíferos vêm se formando durante milhões de anos e, de pouco tempo para cá, não estão sendo recar­regados como deveriam, para susten­tar os mananciais. Isso ocorre porque a recarga dos aquíferos se dá pelas suas bordas nas áreas planas, onde a água pluvial infiltra e é absorvida cerca de 70% pelo sistema radicular da vegeta­ção nativa, alimentando, num primeiro momento, o lençol freático e, lentamen­te, vai abastecendo e se armazenando nos lençóis mais subterrâneos.

Com a ocupação dos chapadões de forma intensa, que trouxe como con­sequência a retirada da cobertura ve­getal e sua substituição por vegetações temporárias de raiz subsuperficial, a água da chuva precipita, porém não in­filtra o suficiente para reabastecer os aquíferos. Com o passar dos tempos, eles vão diminuindo de nível, provo­cando, num primeiro momento, a mi­gração das nascentes, das partes mais altas para as mais baixas, e a diminui­ção do volume das águas, até chegar ao ponto do desaparecimento total do curso d’água. Convém ressaltar que este é um processo irreversível.

De todos os gran­des ambientes brasileiros, o Cerrado tem sido o que mais trans­formações vem sofrendo nos últimos anos. Não só mudanças das técnicas de produção, mas também profundas alterações culturais, que atingem o próprio sistema de vida das popu­lações, desestruturando os valores e, muitas vezes, provocando um vazio.

Os antigos núcleos urbanos, quase todos originados em torno de ativida­des mineradoras, principalmente os do início do século XVIII, veem-se, de re­pente, transformados em polos regio­nais de inovações e agenciadores de “mudanças radicais” nos sistemas de relações, com seus inúmeros serviços, quase todos voltados para atividades agroindustriais e com preocupações imediatistas.

As criações de Goiânia e posterior­mente de Brasília, paralelamente ao de­senvolvimento do sistema viário e ao processo de modernização da agricul­tura, vieram contribuir com certa ra­dicalização nas modificações dos fato­res até então estruturados, rompendo em estilhaços seus traços mais tradi­cionais. Com a implantação do estado do Tocantins e a construção de sua capital, Palmas, veio uma nova “onda” de modificações significativas que já tiveram seus processos iniciais. Associa-se a esse fator inúmeros outros polos urbanos emergentes, que surgem como suporte ao novo modelo econômico implantado.

Até bem pouco tempo, as áreas do Sistema Biogeográfico do Cerrado não eram muito valorizadas nem pro­curadas para implantação de grandes atividades agropastoris. As suas par­tes mais intensamente ocupadas eram restritas ao Subsistema de Matas, ou seja, áreas florestadas que existem dentro do Sistema e que estão sempre associadas a solos de boa fertilidade natural. Por isso essas áreas foram as primeiras a receberem o impacto de uma degradação maior. Eram conhecidas como terras de cultura.

As demais áreas que constituem as maiores superfícies do Sistema, antes do advento das novas tecnologias de manuseio das terras, não favoreciam de imediato uma ocupação intensiva com o desenvolvi­mento de práticas agrícolas desenvol­vidas.

Essas áreas, outrora ocupadas pelo criatório extensivo, tinham como suporte uma pastagem nativa, cujo teor alimentício estava condicionado à sazonalidade climática, o que obriga­va os rebanhos a migrações longas, e, durante a estação seca, estes eram conduzi­dos para as “veredas”, onde a umidade mantinha verdejante a pastagem mes­mo no auge da seca.

 Entretanto, essas áreas de veredas não ocupam grande extensão e, na época da estação chuvo­sa, em função de muitos fatores, não é propícia a ocupação por rebanhos. Na época chuvosa, o rebanho pode ser transportado para as áreas mais ele­vadas (campos e cerrado). Esse fator das migrações sazonárias é responsá­vel por um sistema pastoril que exige grandes extensões de terras, que po­deriam ser compradas, arrendadas ou simplesmente ocupadas na forma de posse ou “fechos”.

PAISAGEM TRANSFORMADA

Com a utilização do calcário para a correção da acidez do solo, a introdu­ção do arado e de sistemas mecânicos de desmatamento, além da facilidade de irrigação, houve transformação dessas áreas, anteriormente impróprias para atividades agrícolas, em terras pro­dutivas. Outrossim, a substituição das pastagens nativas por espécies estran­geiras modificou radicalmente o qua­dro pastoril.

Os impactos sobre o ambiente cau­sados por esse novo modelo de ocupa­ção são visíveis e podem ser caracteri­zados pelos itens seguintes:

  • Empobrecimento genético;
  • Empobrecimento dos ecossiste­mas;
  • Destruição da vegetação natural;
  • Propagação de ervas exóticas;
  • Extinção da fauna nativa;
  • Diminuição e poluição dos manan­ciais hídricos;
  • Compactação e erosão dos solos;
  • Contaminação química das águas e da biota;
  • Proliferação de doenças desco­nhecidas etc.

Esses fatores em conjunto geram inúmeros outros que, por sua vez, funcionam como agentes de atração populacional e modificações significa­tivas do ambiente. Como exemplo, te­mos a demanda de energia, que exige a formação de grandes reservatórios e usinas geradoras, criando inúmeras frentes de trabalho, diretas e indire­tas, o que acarreta entropias de gran­de alcance natural e social.

Assim é que, no início do século XXI, encontra-se em suspenso o destino do Cerrado. Se as próximas décadas tra­rão sua ruína ou salvação, ainda não se pode dizer.

Embora sejam grandes as lacunas no nosso conhecimento, dispomos de informações suficientes para impedir­mos uma degradação irreversível. O que se pode afirmar é que, enquanto o desejo de explorar o Cerrado tiver raízes estrangeiras, a possibilidade de criação de um programa racional de desenvolvimento será nula.

Por essas razões, a situação do Cerrado atualmente se assemelha ao fenômeno conhecido em neurologia como “dor fantasma”. As pessoas que são vítimas desse mal sofrem um duplo infortúnio. Elas perderam uma extre­midade ou parte dela. E sofrem dores às vezes muito intensas que sentem como provenientes do membro que já não têm mais.

As discussões sobre o Cerrado se assemelham a essa situação, porque estamos sentindo as dores da perda de um ambiente que não existe mais na plenitude de sua biodiversida­de.

Altair Sales Barbosa – Doutor em Antropologia / Arqueologia. Sócio Titular do Instituto Histórico e Geográfico do
Estado de Goiás. Pesquisador Convidado da UniEvangélica de Anápolis.


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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