Diego Ricoy/Brasil247
Certamente você deve se lembrar do cuspe que o ex-deputado Jean Wyllys deu em Bolsonaro em 2016. Mas qual a sua relação com o tapa que o ator Will Smith deu no rosto de seu colega de profissão, Chris Rock?
Já as de Wyllys e de Smith são atos de rebeldia contra opressões e silenciamentos históricos, reações a discursos dominantes que impulsionam violências cotidianas contra minorias oprimidas. São, na verdade, reações às violências simbólicas.
Segundo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, grupos dominantes produzem uma cultura também dominante, composta de sistemas simbólicos que são impostos de forma arbitrária a toda a sociedade. Assim, padrões de comportamentos sociais são definidos por essa “cultura legítima”. Eles acabam se tornando quase que uma segunda pele do indivíduo, dificultando a percepção de violências por conta da naturalização de nossos comportamentos e condutas morais.
É por isso que muitas vezes a dor do outro acaba sendo reduzida ao que se tornou costume chamar de “mimimi”, já que ela não é visível a olho nu. Neste sentido, sob o pretexto da defesa da liberdade de expressão, muitos grupos e indivíduos promovem agressões a minorias sociais por meio de ações que Bourdieu considera como “violências simbólicas”: a imposições de valores culturais que reproduzem opressões em forma de piadas, discursos politicamente incorretos etc. É a dominação cultural e a eficácia das ideias dominantes, portanto, que legitima essas ações violentas.
Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.
Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.
Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.
Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.
Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.
Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.
Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.
Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.
Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.
Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.
Zezé Weiss
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