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Nós que o abismo vemos

Nós que o abismo vemos

O abismo no qual este país foi transformado se alarga e se aprofunda feito metástase. Nós que o vemos, temos a nítida sensação de que ele também nos vê. Exauridos, fitamos suas entranhas e as observamos regurgitar as figuras mais decrépitas e abjetas, que só um organismo inumano poderia gerar

 
Nos filmes de aventura da década de 80 era comum que houvesse uma cena, na qual um desavisado personagem caia na areia movediça e era engolido por ela. Também era recorrente a presença de abismos, fossem eles na terra ou no mar.
Em produções mais recentes, optou-se por desastres naturais com vulcões explodindo, tsunamis e terremotos. Obras assim, seja na literatura ou no cinema, costumam receber denominações como “distópica” ou “apocalíptica”, entre outras. 

Muitos nunca imaginaram, no entanto, que um dia a ficção poderia “se tornar realidade”, uma vez que tragédias assim, acreditávamos, só seriam possíveis no mundo da imaginação. Contudo, as aterrorizantes cenas que víamos na salinha escura de um cinema perto de nós, hoje são a mais pura realidade, descontando-se, é claro, as areias movediças engolidoras de personagens chatos.
 
E assim, abundam obras especulativas, como O conto da aia (1985), de Margaret Atwood, por exemplo, e pós-apocalípticas, como A Estrada (2006), de Cormac McCarthy. O ser humano do século XX e do início do XXI mostra-se determinado, não nos faltam exemplos, a demonstrar por suas ações, que pode exercer sua crueldade sem que qualquer um desses conceitos mencionados seja capaz de explicar toda a brutalidade de uma espécie. E assim, seguimos na devastidão de nós mesmos.

No caso das cenas de terremotos, por exemplo, é angustiante ver a terra rachando e engolindo tudo o que encontra pela frente. Não muito longe desta imagem, é o que temos sentido como brasileiros. Parados ou em movimento, as rachaduras causadas pelo golpe de 2016 continuam avançando e se expandindo em todas as direções, deixando a impressão de que em algum momento seremos todos tragados por elas; pois há um cansaço generalizado, um torpor que dorme e acorda conosco, quase nos impedindo de correr, de lutar. No entanto, aprendemos com Glauber Rocha, que “mais forte são os poderes do povo”, enquanto Joan Baez nos diz: “No nos moveran”. 

As criaturas abissais que hoje infestam a nação, sempre estiveram por aí e sempre foram o que são. Das profundezas onde vivem, aplaudiram quando o navio, carregado de Césio 137, aportou no país no fatídico ano de 2016. Cegos pela luz, os “inocentes do abismo” logo se declararam inimigos do conhecimento, da cultura e da razão; coisas que os ferem de morte. Enredados na sua ignorância, as criaturas abissais não viram A última floresta. Não leram, mas odiaram “Copacabana”, de Chico Buarque, apenas por ser de Chico Buarque.

https://xapuri.info/projeto-lula-brasil/

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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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