Elegia para Moïse
Seu nome era Moïse, mas poderia ser Antônio, Francisco ou José
Em busca de melhores condições de vida, Moïse Mugenyi Kabagambe deixou o Congo e veio para o Brasil. Não sabia ele, infelizmente, que por aqui as pessoas pretas são mortas dia e noite sem que nada aconteça aos assassinos, não importando se a vítima é uma vereadora, uma criança, um trabalhador braçal ou um consumidor em um supermercado. Abandonai todas as esperanças, o Brasil é aqui!
No país que não é racista, mas “abençoado por Deus e bonito por natureza”, crianças negras “caem” de prédios, homens e mulheres, todos pretos, são cotidianamente humilhados, torturados e mortos. A escravização de seres humanos, que dilacerou este país por mais de três séculos continua a avançar tal qual uma metástase no corpo enfraquecido de uma sociedade terminal.
Moïse Kabagambe foi trucidado a pauladas ao cobrar um pagamento de duzentos reais. Os bárbaros que tiraram a vida do jovem congolês sabem que contam com um apoio que nós, meros mortais, não sabemos bem qual seja. Eles, no entanto, o sabem muito bem, pois são partes de uma engrenagem corrupta e criminosa que avilta o Estado democrático de Direito sem que a eles sejam imputadas as mais leves sanções.
O que também remonta à “escolha difícil” continuamente disseminada aos quatro ventos pelos editoriais irresponsáveis e artigos criminosos (alguns os chamam de “plurais”) publicados diariamente na mídia corporativa. As digitais de todos aqueles que deram seu “joinha positivo” para mergulhar o Brasil no caos em que está, estão nos pedaços de madeira e no taco de beisebol usados para matar Moïse Mugenyi Kabagambe.
Este artigo é de responsabilidade do colunista. Capa: Reprodução Internet.
Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.
Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.
Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.
Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.
Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.
Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.
Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.
Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.
Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.
Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.
Zezé Weiss
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