Pesquisar
Close this search box.
Malês: A revolta de um povo preto que sacudiu Salvador

Malês: A revolta de um povo preto que sacudiu Salvador

Malês: A revolta de um povo preto que sacudiu Salvador.

A revolução que sacudiu Salvador na madrugada do último dia do mês sagrado do Ramadan de 1835, dirigida por negros escravizados de origem Haussá, Fulani, Yorubá, Aio Quija e Nagô, chamados de Malês, devido ao fato de que, em ioruba, muçulmano é Imalê e que ficou conhecida na historiografia brasileira como a Revolta dos Malês.

Por Sayid Marcos Tenório/Pátria Latina

O Islam como inspiração revolucionária

Embora não representassem a hegemonia religiosa das pessoas africanas escravizadas, os Malês tinham um peso significativo por serem uma população que sabia ler, escrever e eram dotados de uma cultura bem mais larga do que muitos senhores de escravos.

Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, afirma que o Islam se ramificou como uma religião poderosa no Brasil colonial e floresceu no escuro das senzalas, aonde os mestres pregadores que vieram da África ensinavam a ler os livros do Alcorão escritos em árabe, onde as senzalas funcionavam como “escolas e casas de oração maometanas” e com salas de oração eram forradas por peles de carneiro enfileiradas e alinhadas em direção à Meca.

As razões das diversas revoltas ocorridas no século XIX foram a insatisfação com a escravidão, o regime de humilhação, torturas e assassinatos e a discriminação racial praticada contra eles, e o ódio e a intolerância religiosa praticada pela Igreja Católica contra africanos de várias tradições religiosas, que os forçava a se converter ao catolicismo. Para os Malês, a inspiração não poderia ser outra, a não ser a corânica, que ensina aos muçulmanos não se deixarem ser subjugados e submetidos a ninguém, bem como permite o exercício do legítimo direito de defesa.

A revolta foi preparada e planejada para a eliminação do regime local português e as injustiças praticadas contra os negros, a emancipação dos escravizados e a liberdade para exercer os rituais religiosos, já que as pessoas escravizadas viviam à margem da lei, já que a Constituição brasileira de 1824 estabelecia no art. 5º que o catolicismo era a religião do Estado, a única com direito a celebrar cerimônias públicas e construir e manter templos, enquanto as religiões africanas eram perseguidas e tratadas como caso de polícia.

Um elemento de rebeldia e que provocava tensão entre os revoltosos e o poder naquele contexto histórico, era o fato de os africanos professarem várias religiões, entre elas a fé islâmica, de maneira convicta, e aquilo provocava um confronto com o poder escravocrata católico repressor. “Por não ser uma religião de raiz étnica, mas de caráter universal, o Islam tinha também o potencial de unir africanos de várias origens, retirando dos escravistas a vantagem política da divisão com aqueles” (Reis, 2003 p. 248).

Romper os grilhões na última noite do Ramadan

O sociólogo e escritor Clovis Moura, no seu livro Rebeliões da Senzala (2014), escreve que as relações de trabalho opressivas e totalmente baseada no trabalho escravo, determinavam todo o conjunto da sociedade baiana naquela época, tendo os escravos um peso substancial na população daquela província, onde para uma população de 858.000 habitantes em 1824, existiam 524.000 pessoas escravizadas, além dos índios que viviam num regime de semiescravidão e dos alforriados, que tinham uma vida quase idêntica à das pessoas escravizadas, tanto nas condições de trabalho, como na condição de vida na sociedade baiana.

Reuniões passaram a ser realizadas nas casas dos escravos libertos, nas senzalas, nas mesquitas e terreiros para planejar e mobilizar os rebeldes onde, no caso dos Malês, se misturavam as orações islâmicas, as aulas de religião e de escrita e recitação dos versos do Alcorão, e de onde o imam Mala Mubakar fez o chamado ao Jihad (resistência), escrito na forma de um documento em árabe em que pedia aos muçulmanos e às demais pessoas escravizadas que se preparassem para a revolta. Foram essas reuniões e ideias que levaram aos acontecimentos revolucionários do domingo 25 de janeiro de 1835.

As reuniões e encontros eram realizadas com a presença basicamente dos negros islâmicos, embora os Malês se esforçassem em convidar escravos libertos de diferentes grupos étnicos e religiosos para o levante. Nem todos os africanos muçulmanos existentes na Bahia naquela ocasião, tomaram parte na revolta.

Uma particularidade na preparação da rebelião, é a de que os escravos não se descuidaram da questão do financiamento de seu movimento. Por sugestão de Luís Sanin, um intelectual e estudioso do Alcorão e o mais alfabetizado entre os líderes Malês, os revolucionários criaram um fundo proveniente do sistema de ganho (murgu) para compra de roupas islâmicas destinadas as rezas (salats), datas festivas do calendário religioso islâmico, compra de alforria de muçulmanos cativos e para as despesas dos preparativos e para a ação revoltosa. Depois da prisão dos líderes, a polícia encontrou em suas casas, além de papéis escritos em árabe, a quantia de setenta e nove mil e quatrocentos e oitenta réis. (Moura, 1988, p. 178).

No entanto, o plano não foi rigorosamente aplicado, talvez em decorrência dos rumos que tomaram os acontecimentos e a antecipação do início da revolta, em face da delação da negra nagô emancipada Guilhermina Roza de Souza, companheira um dos líderes do movimento, o nagô Domingos Fortunato, e do ataque surpresa das forças policiais ao local onde estavam reunidos para compartilharem o ifhtar, a refeição comunitária ingerida após o por do sol com a qual se quebra o jejum diário durante o mês do Ramadan, momento em que as tropas governamentais cercaram a casa de Manuel Calafate, na Ladeira da Praça, na madrugada de 24 para 25 de janeiro.

Ali se encontravam cerca de 60 homens armados com espadas, lanças, pistolas e espingardas, que reagiram ao cerco policial e começaram a atirar. Pegos de surpresa, os rebeldes se dividiram e se espalharam pela cidade. Muitos deles se vestiam com roupas típicas islâmicas, uma espécie de abadá branco, que as autoridades policiais definiram como “vestimenta de guerra”, além do takia, o gorro islâmico, semelhante ao turbante usado no candomblé e na umbanda.

Após o confronto inicial, os revolucionários saíram pelas ruas, becos e vielas de Salvador, batendo nas janelas das casas e convocando os escravizados e os libertos a se unirem à revolução. Atacaram o palácio do Presidente da província, invadiram quartéis, enfrentaram tropas e fragatas de guerra ancoradas no porto de salvador. Boa parte do grupo marchou para a Ajuda, em direção à Câmara Municipal, com a intenção de arrombar a cadeia e libertar os líderes que haviam sido presos, principalmente Pacífico Licutã.

Deu-se uma verdadeira carnificina, pois era evidente a superioridade dos armamentos das forças oficiais, pois enquanto os Malês estavam armados com lanças, espadas, porretes e algumas poucas pistolas e espingardas, os policiais portavam pistolas, baionetas e farta munição. Os revoltosos foram encurralados no Quartel da Cavalaria, localizado em Água de Meninos onde se deu a batalha final e antes do nascer do sol daquele domingo de 25 de janeiro, 73 rebeldes tinham tombado e seus corpos foram jogados em uma cova comum no cemitério de Salvador. Mais de 500 foram presos. No confronto morreram 14 soldados das forças oficiais e um indefinido número de feridos. Houve também civis que foram atingidos mortalmente, mas não há registro oficial do número total e dos nomes dos mortos. Estava sufocada a grande revolta dos escravos, uma ação revolucionária de grande heroísmo de negros e negras contra a escravidão e os maus tratos.

Dos 286 acusados – 260 homens e 26 mulheres, 194 eram nagôs, 25 haussás, 9 jejês, 7 minas, 6 tapas e 18 cujas nações não constavam nos interrogatórios. Os demais eram de diversas nações próximas dos países iorubas. Somente 7 entre eles eram originários do sul da África e 3 eram mestiços (mulatos, na designação racista dos brancos). Grande parte dos revolucionários eram africanos emancipados, entre eles 126 estavam entre os acusados, frente a 160 escravos, mas todos de um valor moral muitas vezes superiores aos dos seus acusadores.

Uma grande lição de garra e luta pela liberdade

Após os confrontos, deu-se início a uma verdadeira caçada aos revoltosos. O chefe da Polícia baiana, Francisco Gonçalves Martins, baixou uma Portaria que autorizava uma devassa completa em todas as casas pertencentes a negros africanos. A mesma ordem autorizava a que qualquer cidadão dar voz de prisão a pessoas escravizados muçulmanos ou não, que estivessem reunidos em número de quatro ou mais. Os escravos só podiam circular pelas ruas de Salvador com ordem escrita dos seus senhores, detalhando para onde iam e o que fariam. Além disso, os senhores de escravos foram obrigados, sob pena de elevadas multas, a forçar a conversão de seus escravos ao catolicismo.

Quantos aos líderes da revolta, Manuel Calafate, ao que tudo indica nada sofreu. O mestre Luís Sanin, foi condenado à morte, mas teve sua pena atenuada para seiscentos açoites. Pacífico Licutã, que se encontrava preso quando a revolta estourou e dela não tomou participação, mesmo assim foi condenado a mil chicotadas. José Congo, mil chicotadas. Antônio, escravo Haussá, foi condenado a quinhentas chicotadas. Sabino, seiscentas chicotadas. Agostinho, quinhentas chicotadas. Higino recebeu a pena de quatrocentas chicotadas. Tomp, a quinhentas chicotadas.

O nagô Luiz, que confeccionava as túnicas iguais as usadas pelos revoltosos, foi condenado e castigado com duzentas chicotadas; e Tomás, o malê que ensinava os escravizados a escrever e ler os versos do Alcorão, foi condenado a trezentas chicotadas em praça pública, de forma pública e cruel. Agostinha, nagô emancipada e Thereza, tapa também emancipada, foram condenadas cada uma a vinte e quatro meses de prisão e trabalhos forçados, sob a acusação de serem amigas de Belchior e Gaspar.

Naquela época, os negros muçulmanos já eram uma forte referência para a comunidade negra de Salvador. Os escravizados libertos recorriam às diversas religiões em busca de conforto espiritual e esperança, e para por dignidade em suas vidas. No caso dos Malês, os textos e a pregação corânica davam esperança e inspiração para a resistência das mulheres e homens discriminados, exilados, perseguidos e escravizados através da sua mensagem libertadora, e porque era uma religião atraente para os subalternos sociais, devido à sua mensagem fortemente crítica das injustiças sofridas pelos seus seguidores.

Clóvis Moura escreveu que a revolta dos escravos baianos de 1835, não foi uma eclosão violenta e espetacular surgida espontaneamente ou de um incidente qualquer e sem plano preestabelecido, “mas uma revolta planejada nos seus detalhes, precedida de todo um período organizativo – fase obscura de aliciamento e preparação – sem a qual não se poderá compreender as proporções que alcançou em uma das principais províncias do Império”. (Moura, 1988, p. 174)

Para se dimensionar a importância do episódio, a Revolta dos Malês mobilizou entre 600 e 1000 homens, o que equivale a aproximadamente 50 mil pessoas, comparando-se proporcionalmente com a população da cidade de Salvador nos dias de hoje, uma revolução que não foi uma simples insubordinação de escravizados, mas uma ação de homens e mulheres bravas, de muito valor e admirável coragem e lealdade com os seus princípios islâmicos de luta por liberdade e justiça.

A grande revolta de 1835 aconteceu num período histórico marcado por uma série de transformações na estrutura política, econômica e social do Brasil, ao mesmo tempo que se soma a outras revoltas populares que tinham como objetivo derrubar o poder escravocrata e imperial existente no país e estabelecer a República, como a dos Farrapos (RS, 1835-1845), Cabanagem (PA, 1835 e 1840), Sabinada (BA, 1837-1838) e Balaiada (MA, 1838).

A Revolta dos Malês foi um importante movimento anti-escravidão, que deu uma grande lição de garra e luta pela liberdade que engrandece a história das lutas sociais no Brasil, com seus feitos praticamente omitidos pela historiografia oficial, como de resto as diversas lutas e revoltas contra a escravidão, sem que tenham o merecido registro nos livros de história e no currículo das escolas brasileiras. A revolta de 1835 se soma a movimentos decisivos, entre eles, as associações, clubes e grêmios abolicionistas para a libertação dos escravizados e a eliminação do tráfico de pessoas escravizadas, e de conquistas como a Lei do Ventre Livre e a “Lei Áurea”, assinada pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888.

REFERÊNCIAS:

CALMON, Pedro. Malês: a insurreição das senzalas. Assembleia Legislativa da Bahia. Salvador: Academia de Letras da Bahia, 2002.

FREITAS, Décio. A revolução dos malês – Insurreições escravas. Porto Alegre: Editora Movimento, 1985.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. São Paulo: Global, 2006.

LOPES, Nei. Bantos, malês e identidade negra. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 1988.

MONTEIRO, Antônio. Notas sobre os negros malês de Bahia. Salvador: Ianamá, 1987.

MOURA, Clovis. Rebeliões da Senzala; quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Anita Garibaldi cooedição com a Fundação Maurício Grabois, 2014.

NINA RODRIGUES, Raymundo. Os africanos no Brasil. São Paulo: Madras, 2008.

OLIVEIRA, Maria Inês C. de. Quem eram os ‘negros da Guiné’? A origem dos africanos na Bahia. Afro-Ásia, nº 19-20. 1997.

REIS, João José; Rebelião Escrava no Brasil: a História do Levante dos Malês em 1835. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

RIBEIRO, Lidice Meyer Pinto. Negros islâmicos no Brasil escravocrata. Revista USP, nº 91, setembro/novembro 2011.SALINAS, Samuel Sérgio. Islam: esse desconhecido – séculos VII-XIII. São Paulo: Anita Garibaldi, 2009.

SCHINDLER, Rex. O massacre dos malês. Salvador: R.B Agência de Notícias e Publicidade, 2006.

VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo – Do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos. São Paulo : Corrupio, 1987.

Fonte: Pátria Latina Capa: Reprodução

Block

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

0 0 votos
Avaliação do artigo
Se inscrever
Notificar de
guest
0 Comentários
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários

Parcerias

Ads2_parceiros_CNTE
Ads2_parceiros_Bancários
Ads2_parceiros_Sertão_Cerratense
Ads2_parceiros_Brasil_Popular
Ads2_parceiros_Entorno_Sul
Ads2_parceiros_Sinpro
Ads2_parceiros_Fenae
Ads2_parceiros_Inst.Altair
Ads2_parceiros_Fetec
previous arrowprevious arrow
next arrownext arrow

REVISTA

REVISTA 113
REVISTA 112
REVISTA 111
REVISTA 110
REVISTA 109
REVISTA 108
REVISTA 107
previous arrowprevious arrow
next arrownext arrow

CONTATO

logo xapuri

posts recentes