Jurupari, Exu e o dr. Edilson no carnaval
Portanto, essa representação indígena contradiz os missionários que desde o período colonial converteram Jurupari no demônio e difundiram tal imagem através da catequese. Os frades franciscanos do Vaupés, frei Coppi e Matheus, chegaram a fechar mulheres numa capela, em 1883, e cuspiram na máscara de Jurupari para condenar o que chamavam de “falsa religião”. Os índios expulsaram os dois frades que levaram a máscara para a Itália, hoje em exibição no Museu Etnográfico Pigorini, em Roma.
P.S. 2 – Informantes e colaboradores da tese: Francisco Cirineu Martins (Baniwa), Melvino Fontes Olímpio (Baniwa) e Zilma Henrique (Baré), além dos “velhos troncos” cujas entrevistas foram gravadas: Maria do Carmo Martins, Francisco Fontes, Germano Malaquias e já falecidos, mas que permanecem vivos nesta tese: dona Josefa Baré e seu Pedro.
Andrea Palladino: Ermanno Stradelli, il figlio del serpente incantato. Documentário (52 min). Produção Executiva Astrid Lima. Società Geografica italiana. 2006.
Éder Santos, Evandro Pereira e Carlos Fournier ‘Tatá Bòkùlé’
A par dos discursos de parte da mídia local que exaltam a imagem do homem branco, cis hétero, do colono desbravador, do herói garimpeiro ou dos cowboys do agrobusiness, tem-se, por outro lado, a construção negativa e generalizada da imagem de grupos sociais como: migrantes venezuelanos, o nordestino de baixa renda, as mulheres, a comunidade LGBTQIA +, negros, povos de terreiro e indígenas. No campo econômico, o fenômeno é vinculado à questão de classe social, já que os primeiros detêm algum meio de produção e podem até patrocinar setores da imprensa, portanto, fazem opinião pública. Mas é, ao mesmo tempo, uma questão de formação histórica de nossa sociedade e, evidentemente, de educação.
O anacronismo histórico reflete-se no campo da política, por exemplo, quando se observa a reduzida participação dos grupos que fazem parte das ‘maiorias minorizadas’ no campo da disputa partidária-democrática. Essa representatividade vem melhorando, pois os grupos indígenas e afrodescendentes têm se organizado para disputar as eleições nos últimos anos, na defender de seus interesses, sobretudo, em tempo de ameaças aos territórios ancestrais. No campo da cultura local observa-se um movimento de enfrentamento crescente. A partir da ideia de democracia que tem por objetivo a soberania dos interesses públicos, ou seja, ocorre quanto o poder político é entregue para o exercício popular, inúmeros coletivos, associações, federações e entidades culturais entendem que podem fazer resistência frente ao desmonte da cultura em todas as esferas da administração pública.
Em Roraima, o geo-etnocentrismo aponta suas armas para a população afro-ameríndia, fenômeno verificado na dimensão simbólica. A estratégia dos donos do poder, desde sempre, é manter vivos e em destaque os monumentos à barbárie. A Praça do Centro Cívico em Boa Vista é o espaço escolhido para o desprezo social pelas questões que deveriam ser centrais no debate cultural. O monumento ao Garimpeiro e o Palácio da Cultura são expressões do simbolismo, visibilidade e acessibilidade, categorias geográficas que fazem estes objetos extrapolarem a estética arquitetônica e, espacialmente, conduzirem os visitantes a acreditarem que Roraima é a terra prometida do garimpo, não importando se é legal ou ilegal, como o praticado pelos invasores nas terras indígenas.
Entretanto, é no Palácio da Cultura de Roraima que se expressa uma das maiores contradições históricas culturais do estado. O Decreto Estadual nº 5.975-E, de 27/09/2004 concede o nome da jornalista e romancista, Nenê Macaggi, ao prédio que abriga atualmente a Secretaria Estadual de Cultura e a Biblioteca Pública. Macaggi é autora de várias obras, sendo o romance ‘A Mulher do Garimpo’, escrito na década de 70, considerado o marco inicial da produção literária em Roraima. O Decreto nº 6.991-E, de 27/03/2006, criou o Dia do Escritor Roraimense, instituído no dia 24 de abril, data de nascimento da escritora. O texto da Lei diz: “Considerando que a vida e o talento fizeram de Nenê Macaggi, a ‘Grande Dama de Roraima nas Letras’[…]”. É preciso considerar que os monumentos ou obras públicas são possuidores de sentido político, potencializando significados em torno de valores e práticas. Então, questiona-se: qual a virtude encontrada no livro seminal de Macaggi para ser tão venerado pelas elites econômicas do estado de Roraima? Para os defensores da obra, o mérito de Macaggi diz respeito ao ‘conjunto de sua obra’, fato que comunica uma estratégia de fuga do debate, uma vez que tal argumento obscurece os absurdos escritos em ‘A Mulher do Garimpo’. É possível que o problema esteja na falta de compreensão do contexto histórico da obra e na falta de leitura do dito ‘livro inaugural da literatura de Roraima’. Silvia Marques de Almada, em seu livro intitulado “A questão do regionalismo em A Mulher do Garimpo” (EdUFRR, 2017) nos oferece uma luz: “O discurso realizado em A Mulher do Garimpo faz propaganda da região para aqueles que não a conhecem – usando dos mesmos argumentos que desde a era Vargas até a da ditadura militar proliferaram” (p.125). Macaggi era agente do Estado, portanto, sintetiza o discurso oficial. A tese de Mirella Miranda de Brito Silva, defendida na UERJ, sob título: “Da margem à periferia: a centralidade de aspectos da identidade amazônica na literatura de/em Roraima” (2016), confirma a argumentação anterior, demostrando também a tentativa de desconstrução do que foi escrito: “Com lentidão não raro exasperante, o percurso da escritora em seus romances desconstrói, no nível do discurso e da ação narrativa, algumas ideias ratificadas como verdades absolutas no primeiro romance […], sobretudo a que define o lugar do índio no mundo contemporâneo (p. 07). Na prática do racismo diário, parte da sociedade brasileira venera as ideias de Macaggi, pois seus arquétipos imaginários permanecem como verdades absolutas.
Para além do aspecto descritivo do ambiente, em ‘A Mulher do Garimpo’, os afro-indígenas são chamados de sujos, feios, baixos, grossos, preguiçosos, fedorentos, que trocam facilmente suas famílias por espingardas ou por um saco de sal, que vendem crianças, que não tem responsabilidade, não tem noção de dignidade, de honra, de amor fraternal, filial ou paternal [ver págs. 147-160, edição de 2012]. Um recado dado para as novas gerações indígenas e não indígenas que imaginam que o racismo acabou no país. O argumento da ‘obra inaugural da literatura roraimense’ é proveniente do pensamento colonial e escravocrata que reinou absoluto no Brasil, um país de práticas necropolíticas. Quando a autora procura descrever as experiências da personagem principal pelo Rio de Janeiro, explodem estereótipos em relação aos povos afrodescendentes. O périplo da infeliz descrição de um culto afro, é um show de adjetivos que usa a régua judaica-cristã para chamar os praticantes de feiticeiros e macumbeiros. A par disso, a ignorância da autora consegue chegar ao nível de associar Exu ao diabo e a prática de um dos personagens a pactos com Satã. Para ela, a invocação a ogum é ‘um segredo terrível’, a dança dos praticantes é ‘macabra’’, o batuque sagrado é uma ‘toada lúgubre, lamentosa e bárbara’ [págs. 40-42]. Dessa forma, diante desse festival de racialismo, para muitos fica assim, infelizmente, ‘inaugurada a literatura de Roraima’. Possivelmente, sem dominar a leitura do livro, em 1980 a Câmara Municipal de Boa Vista, concedeu o Título de Cidadã Boa-Vistense à escritora, por meio do Decreto Legislativo nº 090/80, de 26/08/1980. Com espaços políticos ocupados pelo pensamento colonial, as homenagens à escritora (e ex-delegada do Serviço de Proteção ao Índio) não param. Como dito, o Dia do Escritor Roraimense é sua renovação anual – a celebração da Mulher do Garimpo em grande estilo. Para os povos afro-ameríndios resta a mobilização, contando também com a capacidade de indignação da sociedade envolvente. Por isso, o historiador Bessa Freire, coordenador do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da UERJ foi cirúrgico ao dizer em um de seus artigos que Macaggi é nosso Borba Gato de saias. “O bandeirante Borba Gato usou a espingarda para matar índios. Nenê Macaggi, a palavra” (https://racismoambiental.net.br/2021/08/29/a-borba-gata-de-roraima-e-o-marco-temporal-por-jose-ribamar-bessa-freire/)
Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.
Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.
Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.
Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.
Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.
Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.
Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.
Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.
Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.
Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.
Zezé Weiss
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