O Lenhador
Um lenhadô derribava
as árve, sem percizão,
e sêmpe a vó li dizia:
“Meu fiô: tem dó das árve,
que as árve tem coração!”
O lenhadô, n’um muchôcho,
e rindo, cumo um sarváge,
dizia que os seus consêio
não passava de bobage.
As vez, meu branco, o marvado,
acordando munto cedo,
pegava no seu machado,
e levava o dia intêro,
iscangaiando o arvoredo.
E a vó, supricando im vão,
sêmpe, sêmpe li dizia:
“Meu fio: tem dó das árve,
que as árve tem coração!”
N’uma minhã, o mardito,
inda mais bruto que os bruto,
sem fazê caso dos grito
da sua vó, que já tinha
mais de noventa Janêro,
botou no chão um ingazêro,
carregadinho de fructo.
D’outra feita, o arrenegado
fez pió, munto pió!
Disgaiou a laranjêra
da pobrezinha da vó,
uma véia laranjêra,
donde ela tirou as frô
prá levá no seu vistido,
quando, virge, si casou
cum o véio, que tanto amou,
cum o difunto… o falicido!!!
E a vó, supricando im vão,
sêmpe , sêmpe li dizia:
“Meu fio: tem dó das árve,
que as árve tem coração!”
Do lado do capinzá,
adonde pastava o gado,
táva um grande e véio ipê,
que o avô tinha prantado.
Despois de levá na roça
C’uma inxada a iscavacá,
debaxo d’aquela sombra,
nas hora quente do dia,
vinha o veio discansá.
Se era noite de luá,
ali, num banco de pedra,
c’uma viola cunversando,
o véio, já caducando,
rasgava o peito a cantá.
Apois, meu branco, o tinhoso,
o bruto, o máo, o tirano,
a féra disnaturada,
um dia jogou no chão
aquela árve sagrada,
que tinha mais de cem ano!
Mas porém, quando o tinhoso
isgaiava o grande ipê,
viu uns burbuio de sangue
do tronco véio iscorrê!
Sacudiu fóra o machado,
e deu de perna a valê!
E foi correndo!… correndo!!
Cada tronco que ia vendo
das árve que ele torou,
era um braço alevantado
d’um hôme, meio interrado,
a gritá: “Vai-te, marvado!…
Assassino !… Matadô!
Foi Deus quem te castigou!”
E foi correndo!… correndo!!
Cada vez curria mais!
Mas porém, quando, já longe,
uma vez ôiou prá-traz,
vendo ipê alevantado,
cumo um hôme insanguentado,
cum os braço todo torado…
cada vez curria mais!
Na barranca do caminho,
abandonado, um ranchinho,
entre os mato entonce viu!
Qué vê se isbarra e discansa
e o ranchinho, prú vingança,
im riba d’ele caiu!
E foi correndo e gritando!
E as árve que ia topando,
e que má pudia vê,
cumo se fosse arrancada
cum toda a raiz da terra,
n’uma grande adisparada
ia atraz d’ele a corrê!!
Na boca da incruziada
vendo uma gruta fechada
de verde capuangá,
o hôme introu pulos mato,
que logo que viu o ingrato,
de mato manso e macio,
ficou sendo um ispinhá!
E foi outra vez correndo,
cansado, pulos caminho!…
Toda a pranta que incontrava,
o capim que ele pizava
táva crivado de íspinho!!!
Curria… e não aparava!!!
Ia correndo, sem tino,
cumo o marvado, o assassino,
que um inocente matou!
Mas porém, na sua frente,
o que ele viu, de repente,
que, de repente, impacou?!
Era um rio que passava,
ali, n’aquele lugá!!
O rio tinha uma ponte,
que nós chamemo — pinguéla…
O hôme foi travessá!
Poz o pé… Ia passando…
E a ponte rangeu, quebrando,
e toca o bicho a nadá!!!
O bruto tava afogando,
mas porém, sêmpe gritando:
“Soccorro, meu Deus, socorro!
Socorro, que eu vou morrê!!
eu juro a Deus, supricando,
nunca mais na minha vida
uma só árve ofendê!!!”
Entonce, um verde ingazêro
que táva im riba das água,
isticou um braço verde,
dando ao hôme a sarvação!
O hôme garrou no gaio,
no gaio cum os dente aférra,
foi assubindo… assubindo…
e quando firmou im terra,
chorava, cumo um jobão!
Bêjando o gaio e chorando,
dizia: “Munto obrigado!
Deus te faça, abençoado,
todo o ano tê verdô!
Vou rebentá meu machado!
Quero isquecê meu passado!
Não serei mais lenhadô!”
Despois d’esta jura santa,
prá tê de todas as pranta
a graça, o perdão intêro
dos crime de hôme ruim,
foi se fazê jardinêro,
e não fazia outra coisa
sinão tratá do jardim.
À vó, que já carregava
mais de noventa janêro,
dizia que neste mundo
nunca viu um jardinêro,
que fosse tão bom ansim!
Drumia todas as noite,
dêxando a jinela aberta,
prá iscutá todo o rumô,
e ás vez, inté artas hora,
ficava, ali na jinela,
uvindo o sonho das frô!
De minhã, de minhã ceda,
lá ia sabê das rosa,
dos cravo das sêmpe-viva,
das manguinolia chêrosa,
se tinha drumido bem!
Tinha cuidado cum as rosa
que munta vó carinhosa
cum os seus netinho não tem!
Dizia a uma frô: “Bom dia!
Cumo tá hoje vremêia!…”
Dizia a outra: “Coitada!
Perdeu seu mé!… Foi róbada!
Já sei quem foi!… Foi a abêia!”
Despois, cum pena das rosa,
que parece que chorava,
batia leve no gaio,
e as rosa disavexava
daqueles pingo de orvaio!
Ia apanhando do chão,
as frô que no chão caía!
Despois, cum as costa da mão,
alimpando os pingo d’água
que vinha do coração,
batia im riba do peito,
cumo quem fas cunfissão.
Quando no sino da ingrêja
tocava as Ave-Maria,
nos cantêro, ajueiado,
pidia a Deus pulas arma
das frô, que naquele dia
no jardim tinha interrado!
E agora, quando passava
junto das árve, cantando,
cheio d’água carregando
o seu véio regadô,
as árve, filiz, contente,
que o lenhadô perduava,
no jardinêro atirava
as suas parma de frô!
Fonte: Alma Acreana
CEARENSE, Catulo da Paixão in revista A Noite Ilustrada, edição especial Homenagem a Catulo da Paixão Cearense, 19-7-1946, p.10 e 34
NOTA: — Deste mesmo poema existe uma outra versão, mais extensa e em linguagem erudita, versão essa que foi incluída no volume intitulado “Poemas bravios” e, posteriormente, em “Fábulas e alegorias”.
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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.
Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.
Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.
Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.
Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.
Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.
Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.
Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.
Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.
Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.
Zezé Weiss
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