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A Fome Dilacera (E tritura a dignidade)

A Fome Dilacera (E tritura a dignidade)

Marcelo Abreu

Dos meus 37 anos de Brasília, há 18 vivo aqui neste bairro classificado como de classe média alta. Um tanto de gente de nariz em pé. Muita pose. E só pose. Mas um tanto de gente bacana tb. A “humanidade” é assim. Em qualquer parte do mundo.
 
Nos últimos 3 anos, tenho visto coisas devastadores na porta do mercado que frequento, perto do meu apartamento. Gente, muita gente mesmo, pedindo COMIDA. Uma vez, isso um pouco antes da pandemia, fui surpreendido por uma mulher me pedindo, dentro do mercado, um pacote de arroz. Comprei o arroz e outras coisas pra ela. Ela chorou. E o número de gente foi aumentando.
 
Tem, tb, muita gente aproveitadora. Alguns conheço de longe. Já sei até os passos. Todo dia estão lá.
Mas agora eles ficam na porta do mercado. Seguram cartazes. São cenas deploráveis.
 
Hoje, o rapaz da foto carregava esse cartaz. Observei que alguns liam e faziam gestos positivos. Parei e vi algumas pessoas saindo com alguma coisa pra ele, geralmente uma ou duas sacolas. Entregavam, ele agradecia e iam embora.
 
Mas ninguém quis saber a história dele. Eu fui até o rapaz. Ele me disse que se chama Jonathan, mora em Águas Lindas de Goiás, 50km do nobre Sudoeste. É auxiliar de pedreiro. Ganha, quando consegue obra, 50 reais/dia.
Me disse que é casado, tem uma filha de 1 ano e meio. E que começou a pedir na rua porque a família tem passado fome. “Eu até suporto, mas ver minha filha chorar de fome me enlouquece.” A mulher, segundo ele, é faxineira. Quando consegue uma casa, recebe 120 pelo dia.
 
Aí, eu vejo gente dizer que este país, que há muito mergulhou num poço sem fundo e na sua mais terrível treva, melhorou. Em quê? Em que área? Em que setor? Eu quero números reais.
 
E a corrupção? Nunca acabou. Alguns fingem não ver. Só enxergam o que lhes convém. E, antes que me perguntem se sou PTista, eu me apresso em responder, embora não tenha obrigação de explicar nada.
 
Não, não sou PTista e nunca fui. Não preciso de partido ou sigla para ENXERGAR o outro e sentir o tamanho da sua dor. Eu sempre enxerguei o outro. E sempre quis ouvir a história que tinha (e tem) pra me contar.
 
Depois de ouvir a história do moço, entrei no mercado e comprei algumas coisas para que, pelo menos por alguns dias, a fome não os dilacere tanto.
 
Cada um elege o seu “MITO” à sua altura e semelhança. Cada vez mais, eu tenho certeza disso. Definitivamente.
Este país ruiu.
 
Pode ser uma imagem de 2 pessoas e ao ar livre
 
Marcelo Abreu – Cronista da Vida Humana. 

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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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