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A criança sobreviveu

A criança sobreviveu, o fotógrafo Kevin Carter não

A criança sobreviveu, o fotógrafo Kevin Carter,  que denunciou a fome na África, não

Dizer que Kevin Carter se suicidou em consequência da imagem de um menino desnutrido espreitado por um abutre-de-capuz é minimizar demais a miséria humana e a própria história de vida de um fotojornalista que denunciou a fome na África.

Por Morgana Gomes leiturasdahistoria

Em 1990, enquanto começava a transição do regime de apartheid para um governo democrático baseado no sufrágio universal, Kevin Carter, Ken Oosterbroek, Greg Marinovich e João Silva, além de outros fotojornalistas que assumiram o rótulo de Bang Bang Club, passaram a atuar nas áreas urbanas subdesenvolvidas e habitadas por não brancos, entre os quais negros, mulatos e indianos, todos da classe trabalhadora.

A partir daí, presenciou muita violência, principalmente entre as facções de grupos negros proibidos de atuar. Fotografou, inclusive, o conflito entre o Congresso Nacional Africano (ANC) e apoiantes do Partido da Liberdade Inkatha.

O pai de Kong Nyong com a foto captada por Carter em 1993. Foto: Alberto Rojas/L. Núñez Villaveirán

Em meio a tantas atrocidades, para minimizar a crise existencial que sempre angustiou sua alma, Carter que já vivia embriagado pela adrenalina liberada pelas situações de risco em que se colocava costumeiramente, ainda apelou para o álcool e, em seguida, para as drogas.

Nesse ínterim, em março de 1993, já com sinais nítidos de depressão, ele partiu para o Sudão, país onde pretendia fazer uma fotorreportagem com as tropas rebeldes. Porém, logo que o avião aterrissou, ele se deparou com centenas de famintos que buscavam um campo de alimentação da Organização das Nações Unidas (ONU), que ficava próximo à aldeia de Ayod (no atual Sudão do Sul). A visão aterrorizante se resumia a mortos-vivos que, quando ainda podiam, deixando para trás os filhos, tentavam correr em direção à aeronave em busca de alimentos.

Mesmo chocado com a situação, Carter fotografou alguns deles, mas deteve-se perto de uma criança desnutrida que aparentemente estava sozinha. Como que de repente atrás dela pousou um abutre. Pacientemente, ele esperou cerca de 20 minutos para a ave abrir as asas, mas como isso não aconteceu, ele se aproximou lentamente para não assustá-la e tirou várias fotos a 10 metros de distância para, então, espantar o pássaro.

Ken Oosterbroek, amigo de Carter, que foi morto por soldados da Força da Paz em 18 de abril | Foto: Reprodução/thebangbangclub.com
Não demorou muito para que a horrenda imagem de um montante de similares, entre as quais algumas bem mais chocantes, fosse imortalizada na capa de 26 de março do New York Times como “o símbolo da fome e do horror em África”.

Em seguida, ela ainda foi repassada para muitos outros jornais ao redor do mundo. A partir daí, em virtude de tal registro, o fotógrafo que indireta e inconscientemente assinou sua própria sentença de morte, em 1994, ainda ganhou o Prêmio Pulitzer de Fotografia Especial. Carter, então, passou a ser chamado por diversos editores de revistas em Nova Iorque que mostraram o desejo de conhecê-lo.

Finalmente, foi contratado pela prestigiada agência Sygma, da qual recebeu dois trabalhos para realizar. Mas em meio à comoção provocada pela foto sinistra, ferozes críticas também abalaram a autoconfiança do fotógrafo, que teve que enfrentar o dilema de ser visto como um profissional talentoso ou um ser humano frio, pois enquanto centenas de pessoas questionavam os veículos de comunicação sobre o destino da criança, até então ignorado, ele ainda foi cobrado injustamente, afinal muitos diziam que, em vez de fotografar, ele deveria ter salvado o pequeno ser.

Em paralelo, sua ética também foi colocada em jogo.

Isenção de culpa

Segundo o St. Petersburg Florida Times, o profissional que obteve o enquadramento perfeito, na verdade era um predador igual ao abutre da cena captada. Outros especialistas ainda afirmaram que Carter manipulou a imagem, pois ela foi feita de um ângulo que mostrava a criança sob o olhar ameaçador da ave que, provavelmente, encontrava-se a uma distância superior aos 20 metros.

Ninguém cogitou que o registro poderia ser facilmente obtido com uma teleobjetiva, nem que os fotógrafos espanhóis José Maria Arenzana e Luis Davilla, e até o português João da Silva, que estavam na mesma zona, também registraram situações semelhantes. Aparentemente, ignorar a denúncia do sul-africano e mostrá-lo como um monstro insensível, era uma forma de isentar a sociedade branca da culpa pelo que acontecia aos negros na África do Sul.

Em decorrência da angústia que aflorou, principalmente pela falta de respeito por seu trabalho, Carter falhou de forma patética com a agência. O primeiro afazer era simples, pois se tratava apenas da cobertura da visita de François Mitterrand, presidente da França, a seu país natal.

Embora tenha cumprido a tarefa, enviou as imagens tardiamente e quando elas chegaram a Sygma não as publicou, por considerar que não tinham a qualidade desejável. A segunda oportunidade foi um serviço em Moçambique, onde, depois de passar seis dias, perdeu todos os rolos de filme no aeroporto local – e nunca mais os encontrou.

Desde então, Carter começou a enfrentar vários problemas, inclusive financeiros, que não demoraram a se agravar, atordoando-o ainda mais. Em consequência, ele começou a falar com insistência em suicídio, sobretudo, após a morte do seu melhor amigo, Ken Oosterbroek, que foi baleado por soldados da Força da Paz, no município de Thocoza, aproximadamente a 25 km a leste de Johanesburgo, em 18 de abril de 1994, nove dias antes das eleições na África do Sul.

Faminto do Sudão em imagem do fotógrafo sul-africano | Foto: Kevin Carter/Sygma/Sygma via Getty Images

Block

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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