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O HORROR, O HORROR, O HORROR!

O HORROR, O HORROR, O HORROR!
 
 
É no Congo que se desenvolve a trama do romance “The Heart of Darkness” (“O Coração das Trevas”, 1899), de Joseph Conrad (1857-1924), no qual aparece a exclamação tantas vezes citada: “O horror, o horror, o horror!”.
 
Entre 1885 e 1908, o que é hoje a República Democrática do Congo (RDC) foi propriedade pessoal do rei Leopoldo II da Bélgica (1835-1909). Durante esse período, e para explorar ao máximo as enormes riquezas do país, especialmente o marfim e a borracha, os belgas (e outros europeus) cometeram atrocidades que deixariam com inveja muitos carrascos nazistas: trabalhos forçados, tortura, amputação de membros de crianças, mulheres e homens que não alcançassem as impossíveis cotas estabelecidas pelos exploradores, envenenamento, assassinatos em massa.
 
As cifras variam, mas os cálculos de historiadores atuais giram em torno dos 10.000.000 de pessoas mortas naquele período. O horror! O horror! O horror! Em 1960, a RDC se tornou independente, mas a manipulação da política local pelos belgas não se interrompeu: o primeiro chefe de governo do país, Patrice Lumumba (1925-1961), de ideias progressistas e nacionalistas, foi deposto e assassinado sob supervisão belga e com o patrocínio dos Estados Unidos.
 
O controle do país foi parar nas mãos de Mobutu Sese Seko (1930-1997), que mudou o nome do país para Zaire e implantou uma ditadura que durou de 1965 a 1997, durante a qual acumulou uma fortuna de dezenas de bilhões de dólares (devidamente depositados na “neutra” Suíça).
 
A RDC abriga imensas reservas minerais: tem a maior reserva mundial de cobalto, além de grandes jazidas de cobre e diamantes. A exploração dessas riquezas tem sido, desde sempre, a causa principal do horror, horror, horror de que a população congolesa é vítima há séculos (foi do Congo que vieram muitos milhares das pessoas escravizadas que os portugueses trouxeram para o Brasil).
 
Um país riquíssimo, mas que ocupa a posição 175 de 189 no índice de desenvolvimento humano. Diversos conflitos ocorridos desde 1997 já provocaram a morte de mais de 5.000.000 de pessoas, numa guerra em que o estupro das mulheres tem sido uma das principais armas empregadas.
 
Na RDC existe um exército de crianças-soldados, algo como 30.000. Nossos telefones celulares e outros aparelhos ultramodernos têm componentes que são frutos diretos dessa imensa tragédia humanitária, um holocausto ininterrupto, sobre o qual Hollywood até o momento não produziu nenhum filme, já que nenhum congolês é dono de estúdio e a exploração dos minerais é de primordial interesse das maiores empresas do mundo, que produzem alta tecnologia ao custo de vidas humanas.
 
Se tem sido possível falar de “diamantes de sangue” quando as pedras preciosas são extraídas de países em guerra (Angola, Serra Leoa, Libéria etc.), também é possível falar dos “chips de sangue”, produzidos pela máquina de guerra congolesa, posta em marcha pelo capitalismo globalizado (50% das exportações de minério da RDC vão para a China). Leia-se o livro “Les minerais de sang: les esclaves du monde moderne” (“Os minerais de sangue: os escravos do mundo moderno, 2014) de Christopher Boltanski, um relato sobre a exploração da cassiterita, indispensável para a produção de telefones, rádios, televisores etc.
 
É desse cenário de horror que centenas de milhares de pessoas como Moïse Mungenyi Kabamgabe e sua família têm fugido.
 
Mas como encontrar abrigo num país igualmente trágico, marcado por séculos de atrocidades e genocídios, uma sociedade entranhadamente racista, em que 77% das pessoas assassinadas em 2021 são negras, assim como 67% das mulheres mortas também são negras?
 
O quinto país em número de feminicídios, o primeiro em número de assassinatos de homossexuais e pessoas trans?
 
Num país desgovernado pelo que pode haver de mais abjeto, corrupto, desprezível, ignorante e brutal na espécie humana?
 
Que tipo de refúgio pode oferecer o Brasil, especialmente a Barra da Tijuca, a pessoas negras que tentam escapar da guerra e da violência? O horror, o horror, o horror!
 
Marcos Bagno é professor, escritor em militante da Resistência. Capa: Duda Meirelles/Revista Xapuri. 
 
Moïse faz sinal de joinha com a mão

Crédito: Família Moïse. o jovem Moïse pertencia à etnia Hema e chegou ao Brasil em 2011 fugindo de conflitos em seu país.  (Via Brasil de Fato). 


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

 
 
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