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“Fui um poeta marginal na ditadura”

“Fui um poeta marginal na ditadura”
Eduardo Alves da Costa, autor de um poema atribuído a Maiakovisky, relembra parte do que a direita procura apagar: a resistência cultural nos anos de chumbo, as polêmicas estéticas, a articulação entre os artistas perseguidos
Nos primeiros anos da ditadura militar, antes que o AI-5 endurecesse mais a vida política, manifestações sindicais e estudantis eram frequentes nas ruas do país. Quase sempre alguém pedia licença para declamar um poema que se tornou símbolo de luta contra a opressão:
Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Os versos, simples e diretos, ficaram conhecidos em todo o país. Era um libelo contra os generais que torturavam e matavam centenas de jovens que acreditavam em um país democrático. O poema – ou, ao menos, esse trecho – estampou páginas de jornais, folhetos, cartões-postais, pôsteres, camisetas e, mais recentemente, é enviado em correntes de e-mail ou compartilhado em redes sociais.
Quase sempre é atribuído ao poeta soviético Vladímir Maiakóvski (1893-1930), traduzido, supostamente, por algum militante comunista anônimo. Outras vezes, está creditado a Gabriel García Márquez, Bertolt Brecht ou Wilhelm Reich. O autor, no entanto, é um brasileiro, hoje com 83 anos, que viveu intensamente a vida cultural naqueles anos de chumbo. Um poeta marginal da Pauliceia. Um beatnik tupiniquim. Ievtuchenko da Boca do Lixo. Seu nome: Eduardo Alves da Costa, o homem que teve um poema “roubado” por Maiakóvski.

O negócio de poeta

Eduardo, então com 36 anos, sairia em breve do temido DOPS, o Departamento de Ordem Política e Social, e poderia, enfim, sentir no rosto a brisa do verão paulistano de 1972, depois de quase 20 dias preso e violentamente interrogado no famoso órgão repressor da rua Tutoia. Já havia recebido a vara de soltura – que estava embaixo do mata-borrão – e o delegado não desistia:
“Vai falar ou não, poeta?”
Ele não sabia de nada, embora fosse membro do Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Mas era difícil convencer aqueles oficiais da ditadura militar, que não largavam o osso. Enquanto se preparava para ir embora, chorou. Copiosamente. Pensava com tristeza nos amigos que fizera na cela – encarcerados, ilegalmente, há meses sob uma cruel rotina de torturas e interrogatórios, mas que, sabe-se lá porquê, ainda nutriam uma estranha esperança e bom humor.
“Vocês artistas são muito sensíveis!”, diagnosticou um investigador do DOPS. “Você é poeta, não é?”.
“Sou poeta”, respondeu firme Eduardo.
“Na minha opinião o negócio de poeta é dar o cu”, disparou o policial com talento para o aforismo.
“Eu tomei essa frase como uma declaração oficial do Estado”, conta, hoje, Alves. “Até escrevi um conto que se chama Negócio de Poeta que termina com um monumento em que os maiores poetas da humanidade – Dante, Milton, Shakespeare – estão com as calças abaixadas, de bunda de fora, e, ao fundo, um obelisco enorme: a grande piroca do Estado opressor”.
O jovem poeta morava, nessa época, em um hotelzinho na Boca do Lixo – “era barato e tinha uma comida ótima, morei diversas vezes lá” – quando, às dez da manhã, bateram em sua porta dois investigadores do DOPS. Estava preso por subversão. Ficou oito dias incomunicável em uma solitária e onze dias em em uma cela especial, já com a companhia de outros presos políticos. O motivo da prisão, conta, nem foi por sua atuação política, mas devido a um “grande equívoco”. Um “amigo de uma amiga” disse admirar seus poemas e querer conhecê-lo melhor para conversarem sobre literatura. Passou, então, seu endereço em um papelzinho para que esse simpático leitor o visitasse em um dias desses, lá na Boca do Lixo. Na manhã seguinte, esse cara foi preso ao fazer uma ação armada – com o endereço de Eduardo no bolso.
“Era uma tática: pegavam endereço e telefone de várias pessoas, uns 20 ou 30, e colocavam nos bolsos. Se a política prendia o indivíduo, não saberia por onde começar a procurar. Até investigar todos, outros camaradas já teriam tempo pra fugir”, explica ele.
Na cela compartilhada, Alves recorda dos companheiros de cela. Um deles, famoso arquiteto, vestindo um pijama listrado, fumava um charuto. Deu-lhes as boas vindas: “bem vindo à corte!”. Sobre o mocó, uma cantina italiana improvisada: macarronada distribuídas em marmitas trazidas pelas famílias dos presos. “Você é nosso convidado”, disse, em tom de piada, um dos presos. A cena era demasiadamente surrealista, me diz o poeta. Até que o arquiteto pediu: “alguém leia as regras da cela para ele”, trazendo-o de volta à realidade da repressão perpetrada pelos militares.
“As regras eram simples. Era proibido, por exemplo, peidar porque o ambiente ficava péssimo e também não podia bater punheta. Os caras tinham tomado porrada, mas estavam se divertindo lá dentro, parecia”, relembra.
Nos interrogatórios subsequentes, Eduardo conta que, curiosamente, nunca tomou sequer um tapa na cara – embora a ameaça de tortura e morte fosse constante. “Prepara o pau de arara pra esse filho da puta”, diziam sempre. Pediram, então, para ele escrever o que sabia sobre a ameaça comunista.
“Pô, escrever é comigo mesmo, pensei. Ai eu enchi linguiça. O delegado leu toda aquela enrolação, deu um murro na mesa e gritou: isso aqui não ser pra nada! Você acha que sou idiota?”, narra ele.
Alves preferiu não responder a pergunta – caso contrário, poderia não estar contando essa história hoje. Mas era verdade o que sabia: que nada sabia. E não era retórica socrática. Até que foi salvo por um amigo que contratou um advogado de grande eficiência.
“O advogado disse pro delegado: ele é do PCB, que condena a guerrilha armada porque acha que isso não vai dar em nada. Como ele pode ser guerrilheiro?”, conta ele.
O argumento do tal advogado funcionou. Mas fora advertido pelos policiais: “se você cair aqui de novo, seu filho da puta, não tem quem te tire, vai sair morto”.
Eduardo, então, preferiu não arriscar. Arrumou um emprego na Editora Abril para “escrever textos que ninguém lia”, ou seja, fascículos literários sobre grandes nomes da literatura mundial. Tentou, algum tempo depois, viver fora do Brasil, na Espanha, mas voltou seis meses depois. Escrevia sempre, mas já tinha se afastado daquele efervescente circuito de poesia marginal paulistano.
Fonte: Outras Palavras

 

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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

 
 

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