Duas formas de autoritarismo
Considerações sobre Sergio Moro e a erosão democrática
Por Por Leonardo Avritzer/ Brasil 247
(Publicado no site A Terra é Redonda)
Para concretizar tal objetivo, a Lava Jato esteve disposta a realizar um amplo trabalho de publicidade completamente incompatível com a democracia e com o sistema de justiça criminal. Mais uma vez, o principal porta-voz dessa concepção é o próprio Sergio Moro em sua análise da Operação Mãos Limpas. Para ele, no mesmo texto de 2004, “A publicidade conferida às investigações teve o efeito salutar de alertar os investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados”.[2]
Há, ainda, um elemento obscurecido pelas duas colocações do ex-titular da 13ª vara: a capacidade do juiz e do Ministério Público de se articular de forma não pública para alcançar esses objetivos. Os dois objetivos confessos da Lava Jato se articulam com esse terceiro, qual seja, o de condenar pessoas dos partidos políticos identificados pela força-tarefa como indesejáveis politicamente. Foi assim que Deltan Dallagnol elaborou o seu famoso Powerpoint, no qual todos os problemas do sistema político brasileiro eram atribuídos ao ex-presidente Lula. Foi assim que Sergio Moro achou por bem divulgar a delação de Antônio Palocci não corroborada por qualquer prova, alguns dias antes da eleição de 2018, e foi assim que Deltan Dallagnol mais uma vez resolveu postar nas redes sociais uma série de posicionamentos contra a candidatura de Renan Calheiros para a presidência do Senado em 2019, o que lhe valeu uma advertência do Conselho Nacional do Ministério Público.
Hoje sabemos, graças ao trabalho de um hacker sem qualquer vinculação política, que todos esses atos foram politicamente orientados com vistas à reorganização do sistema político. O objetivo era tornar os partidos de esquerda e, especialmente, o PT, a fonte de toda a corrupção. Casos de corrupção ligados a outros partidos foram deixados de lado. Moro e Dallagnol atuaram conjuntamente para circunscrever os limites que o sistema de justiça colocava para suas ações explicitamente deixando de fora membros de alguns partidos, como mais uma vez as publicações das suas mensagens no aplicativo Telegram deixaram claro.
Mais do que isso, atuaram conjuntamente para diminuir direitos de defesa, para validar testemunhos inadmissíveis e, principalmente, para ignorar a fragilidade de provas que detinham. Sabemos que o próprio Deltan Dallagnol considerou a denúncia contra o ex-presidente Lula “capenga”.[3] Ainda assim, Lula foi condenado a mais de nove anos de prisão. Ou seja, a Lava Jato dissociou a prova do processo condenatório ao aceitar o conluio aberto entre o Ministério Público, o juiz e a mídia.
O interessante é que hoje sabemos que os principais líderes da Lava Jato cometeram diversos delitos e não foram punidos por eles. Sabemos quais foram esses crimes: o mais grave dentre eles foi a operação da Polícia Federal na Universidade Federal de Santa Catarina conduzida pela delegada Erika Marena que terminou com o suicídio do reitor. Hoje sabemos também que Marena forjou depoimentos e que Deltan Dallagnol achou que deveria protegê-la. Segundo o Conjur, “em 25 de janeiro de 2016, Dallagnol disse que o MPF deveria proteger Erika”. Depois de ter forjado depoimentos, Erika Marena foi nomeada por Sérgio Moro para um cargo de alto escalão no Ministério da Justiça, mostrando que tampouco o ex-juiz estava preocupado com abuso de autoridade ou falsidades em processos judiciais. Tratava-se com bem sabemos de proteger os seus amigos ou parceiros. Assim, notamos um duplo padrão processual na Lava Jato que é o que Moro e Dallagnol pretendem trazer para o sistema político.
Vimos – no ato de filiação ao Podemos – um Sergio Moro de voz grossa e modulada fingir que nada de ilegal havia ocorrido nas suas comunicações com Deltan Dallagnol, na falsificação depoimentos por Erika Marena, na admissão pelo juiz de provas que ele achava que precisava para realizar a condenação posterior, sem falar da tentativa do Ministério Público Federal do Paraná de se apropriar de uma parcela dos recursos pagos pela Odebrecht.
Todos esses problemas – que em qualquer tradição forte de Estado de direito são considerados crimes – foram trocados pela seguinte frase: “Os avanços no combate à corrupção perderam a força. Foram aprovadas medidas que dificultam o trabalho da polícia, de juízes e de procuradores. É um engano dizer que acabou a corrupção quando, na verdade, enfraqueceram as ferramentas para combatê-la. Quase todo dia ouvimos notícias de criminosos sendo soltos, normalmente com base em formalismos ou argumentos que simplesmente não conseguimos entender”. Ou seja, há uma tentativa de volta de Moro e Dallagnol com o objetivo de mais uma vez distorcer o Estado de direito no Brasil em benefício de um projeto político.
Este artigo não representa a opinião da Revista Xapuri e é de responsabilidade do colunista.
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