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Nossa Senhora das Grotas e o imaginário humano do Vale do São Francisco

Nossa Senhora das Grotas e o imaginário humano do Vale do São Francisco

O mito da cachorra helena; a mulher de duas cores; o surubim encantado; o cavalo do rio; o nego d’água; Pedro Bunda; o bispo que roubava almas; a noiva do diabo, são algumas das histórias épicas que povoam o imaginário do homem do vale do São Francisco.

Por Altair Sales Barbosa

Por entre as correntezas, secas e enchentes que recheiam este vastíssimo campo de sabedoria, criatividade, e criações locais, pode-se perfeitamente entrelaçar a riquíssima história de Nossa Senhora das Grotas, que na realidade está amarrada a outros contos poéticos de tão grande riqueza, que leva o leitor ou ouvinte a refletir sobre vários aspectos da própria existência humana.

Nossa Senhora das Grotas, padroeira de Juazeiro, na Bahia, cidade separada de Petrolina em Pernambuco pelo rio São Francisco, que ostenta no centro uma ilha de rochas resistentes denominada Ilha do Fogo.

Segundo se conta, no século XVIII, quando ainda o São Francisco era portentoso, um índio perambulando em sua canoa encontrou, em uma das inúmeras grotas do rio, uma imagem esculpida em madeira e ricamente adornada.

O índio, meio confuso com aquela descoberta, mostrou a imagem a um vaqueiro que, também confuso, resolveu levá-la até um padre Franciscano que estava em missão na região.

Este então, tomando a imagem às mãos, a ergueu dizendo: é a mãe de Nosso Senhor, que veio até nós para salvar nosso povo e os povoados de Juazeiro e Petrolina das enchentes oriundas das maretas raivosas, provocadas pela fúria da grande serpente. Logo o povo, que vivia apavorado com as grandes maretas, batizou aquela imagem com o nome de Nossa Senhora das Grotas.

Contam os antigos que seus antepassados diziam, antes da descoberta da santa, que existia para os lados daquelas bandas uma moça muito bonita e muito vaidosa. Um dia ela chegou até à margem do grande rio e ficou durante dias, cultivando seu narcisismo, enamorando- se de seu reflexo nas águas do rio, sem arredar o pé do lugar.

Uma bela noite, o céu estava limpo e cheio de estrelas, qual vagalumes cintilantes nas matas. Em seguida apareceu um clarão trazido pelo halo da lua cheia, que enfeitiçou aquela formosura vaidosa e a transformou numa grande serpente.

Toda noite de lua cheia a serpente aparecia provocando um clarão tão grande que podia ser visto de Petrolina a Juazeiro. Junto com o clarão apareciam imensas maretas, o rio ficava revolto e os pescadores eram atirados na água. As maretas eram tão grandes que invadiam as ruas dos dois povoados, jogando por terra as casas mais fracas.

Com a descoberta da imagem, o povo que logo a denominou de Nossa Senhora das Grotas, foi em romaria até o altar improvisado pelo frei franciscano, numa humilde capela, onde a santa estava, e pediu a ela em ladainha, para acalmar o furor da Serpente de Fogo.

Logo o pedido daquele povo de Juazeiro foi atendido. Fato que contribui para uma crescente fé. E, de um ano para ano, a romaria aumentava. O dia 8 de setembro é devotado a ela na região. Segundo dizem, este foi o dia em que o índio da tribo dos Tamaquim a encontrou entre as grotas.

Segundo se narra, a santa prendeu a Serpente de Fogo numa rocha da base da ilha que fica no meio do rio entre Juazeiro, na Bahia, e Petrolina, em Pernambuco. Para isso, usou três fios de cabelo santos, para aprisionar a serpente. Mas condicionou esse ato ao bom comportamento do povo; caso isso não acontecesse, a serpente seria liberada.

O tempo passou, assim como passam as águas da cheia do São Francisco. Juazeiro virou uma metrópole, hoje, virou diocese, tem até uma catedral para abrigar Nossa Senhora das Grotas. As águas do são Francisco minguaram, não tem mais surubins gigantes, nem dourados vorazes, os pescadores desapareceram.

Os índios Tamaquim não mais existem enquanto etnia.

Um ou outro pescador que se arrisca a encontrar algum peixe fala que de vez em quando avista uma fraca luz vindo do fundo da Ilha do Fogo.

Não sabemos se é verdade, mas, conforme conta a história, dois fios de cabelo da santa que sustentavam a serpente já se romperam. Assim, vivemos na esperança de que o fio de cabelo restante consiga conter a fúria da serpente.

Mas a esperança extrapola em muito esse desejo. Embora acreditemos muito difícil, uma força interior ainda nos motiva a ter esperança na mudança de comportamento dos homens, que pelo menos se enxerguem como parte integrante do meio ambiente, dos ecossistemas, e não se percam nos conceitos falaciosos de reservas de biosfera, que só têm privilegiado uma esfera do todo.

Se porventura essa mentalidade não mudar,

então só nos resta lembrar do poema-canção de Jatobá.

Pois será tarde demais.

Cipó caboclo tá subindo na virola,

Chegou a hora do pinheiro balançar,

Sentir o cheiro do mato, da imburana,

Descansar, morrer de sono na sombra da barriguda;

De nada vale tanto esforço do meu canto,

Pra nosso espanto tanta mata haja vão matar,

Tal Mata Atlântica e a próxima Amazônica,

Arvoredos seculares impossível replantar;

Que triste sina teve o cedro nosso primo,

Desde menino que eu nem gosto de falar,

Depois de tanto sofrimento seu destino,

Virou tamborete, mesa, cadeira, balcão de bar;

Quem por acaso ouviu falar da sucupira,

Parece até mentira que o jacarandá

Antes de virar poltrona, porta, armário,

Mora no dicionário, vida-eterna, milenar;

Quem hoje é vivo corre perigo

E os inimigos do verde, da sombra o ar,

Que se respira,

E a clorofila das matas virgens

Destruídas vão lembrar

Que quando chegar a hora

É certo que não demora,

Não chame Nossa Senhora

Só quem pode nos salvar;

É caviúna, cerejeira, baraúna,

Imbuia, pau-d’arco, solva,

Juazeiro, jatobá…

Gonçalo-alves, paraíba, itaúba,

Louro, ipê, paracaúba,

Peroba, massaranduba;

Carvalho, mogno, canela, imbuzeiro,

Catuaba, janaúba, aroeira, araribá;

Pau-ferro, angico, amargoso, gameleira,

Andiroba, copaíba, pau-brasil, jequitibá.

Quem hoje é vivo, corre perigo……

Altair Sales Barbosa
Dr. em Antropologia e Geociências
Smithsonian Institution de Washington D.C.
USA – Pesquisador do CNPq – Membro Titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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