Recife Sempre, um poema de Paulo Freire
Cidade bonita
Cidade discreta
Difícil cidade
Cidade mulher.
Nunca te dás de uma vez.
Só aos pouquinhos te entregas
Hoje um olhar.
Amanhã um sorriso.
Cidade manhosa.
Cidade mulher.
Podias chamar-te Maria
Maria da Graça
Maria da Penha
Maria Betânia
Maria Dolores.
De Santiago te escrevo, Recife,
Para falar de ti a ti,
Para dizer-te que te quero
Profundamente, que te quero.
Cinco anos faz que te deixei –
Manhã cedo – tinha medo de olhar-te,
Tinha medo de ferir-te
Tinha medo de magoar-te.
Manhã cedo – palavras não dizia.
Como dizer palavra se partia?
Tinha medo de ouvir-me,
Tinha medo de olhar-me, Tinha medo de ferir-me,
Manhã cedo – as ruas atravessando
O aeroporto se aproximando,
O momento exato chegando,
Mil lembranças de ti me tomando
No meu silêncio necessário.
De Santiago te escrevo,
Para falar de ti a ti,
Para dizer-te de minha saudade, Recife,
Saudade mansa – paciente saudade,
Saudade bem-comportada.
Recife, sempre Recife, de ruas de
nomes tão doces,
Rua da União, que Manuel
Bandeira tinha “medo que
se chamasse rua Fulano
de tal” e que hoje eu temo
que venha a se chamar
Rua Coronel Fulano de Tal.
Rua das creoulas
Rua da aurora
Rua da amizade
Rua dos Sete Pecados.
Recife sempre.
Teus homens do povo
queimados do sol
gritando nas ruas, ritmadamente:
Chora menino pra comprar pitomba!
Eu tenho lã de barriguda pra “trabiceiro”!
Doce de banana e goiaba!
Faz tanto tempo!
Para nós, meninos da mesma rua,
aquele homem que andava apressado
quase correndo – gritando, gritando:
Doce e banana e goiaba!
Aquele homem era um brinquedo também.
Doce de banana e goiaba!
Em cada esquina, um de nós dizia:
Quero banana, doce de banana!
Sorrindo já com a resposta que viria.
Sem parar,
sem olhar para trás,
sem olhar para o lado,
apressado, quase correndo,
o homem-brinquedo assim respondia:
“Só tenho goiaba
– Grito banana porque é meu hábito”.
Doce de banana e goiaba!
Doce de banana e goiaba!
Continuava gritando,
andando apressado,
sem olhar para trás,
sem olhar para o lado,
o nosso homem-brinquedo.
Foi preciso que o tempo passasse,
que muitas chuvas chovessem,
que muito sol se pusesse,
que muitas marés subissem e baixassem,
que muitos meninos nascessem,
que muitos homens morressem,
que muitas madrugadas viessem,
que muitas árvores florescessem,
que muitas Marias amassem,
que muito campo secasse,
que muita dor existisse,
que muitos olhos tristonhos eu visse,
para que entendesse
que aquele homem-brinquedo
era o irmão esmagado
era o irmão explorado
era o irmão ofendido
o irmão oprimido
proibido de ser.
Recife, onde tive fome
Onde tive dor
Sem saber por que
Onde hoje ainda
Milhares de Paulos
Sem saber por que
Têm a mesma fome
Têm a mesma dor,
Raiva de ti não posso ter.
No ventre ainda, ajudando a mãe
a pedir esmolas
a receber migalhas.
Pior ainda:
a receber descaso de olhares frios.
Recife, raiva de ti não posso ter.
Recife onde um dia tarde
No ventre ainda, ajudando a mãe
a pedir esmolas
a receber migalhas
Pior ainda:
a receber descaso de olhares frios.
Recife, raiva de ti não posso ter.
Recife, cidade minha,
Já homem feito
Teus cárceres experimentei.
Neles, fui objeto
Fui coisa
Fui estranheza. Quarta feira. 4 horas da tarde.
O portão de ferro se abria.
Hoje é dia de visita.
Sem fila.
O relógio de minha casa também dizia
Um, dois, três, quatro,
Quatro, três, dois, um,
Mas sua cantiga era diferente.
Assim, cantando,
O tempo dos homens
Apenas marcava.
Recife, cidade minha,
Em ti vivi infância triste
Adolescência amarga em ti vivi.
Não me entendem
Se não te entendem
Minha gulodice de amor
Minhas esperanças de lutar
Minha confiança nos homens
Tudo isto se forjou em ti
Na infância triste
Na adolescência amarga
O que penso
O que digo
O que escrevo
O que faço
Tudo está marcado por ti.
Sou ainda o menino
Que teve fome
Que teve dor
Sem saber porque
só uma diferença existe
entre o menino de ontem
e o menino de hoje,
que ainda sou:
Sei agora por que tive fome
Sei agora por que tive dor.
Recife, cidade minha.
Se alguém me ama
Que a ti me ame
Se alguém me quer
Que a ti te queira.
Se alguém me busca
Que em ti me encontre
Nas tuas noites
Nos teus dias
Nas tuas ruas
Nos teus rios
No teu mar
No teu sol
Na tua gente
No teu calor
Nos teus morros
Nos teus córregos
Na tua inquietação
No teu silêncio
Na amorosidade de quem lutou
E de quem luta.
De quem se expôs
E de quem se expõe
De quem morreu
E de quem pode morrer
Buscando apenas
Cada vez mais
Que menos meninos
Tenham fome e
Tenham dor
Sem saber por que
Por isto disse:
Não me entendem
Se não te entendem.
O que penso,
O que digo,
O que escrevo,
O que faço,
Tudo está marcado por ti.
Recife, cidade minha,
Te quero muito, te quero muito
Santiago, fevereiro de 1969.
Paulo Freire”
Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.
Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.
Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.
Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.
Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.
Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.
Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.
Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.
Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.
Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.
Zezé Weiss
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