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Esperança é …

Esperança é a antecipação da borboleta nas malhas da lagarta  

Tenho passado esses últimos dias de 2016 pondo para frente um projeto que esteve parado por um tempo em minha casa, e que comecei devido a algumas situações de crises que vivi nas últimas semanas.

Por Raial Orotu Puri

Eu andara recolhendo duas peças descartadas para aproveitar em minha casa; dois ‘carretéis’ de fio, para transformar em mesas. Mas, dadas as correrias constantes da vida, o tempo foi passando e meus pretensos projetos de movelaria foram ficando sem que eu fizesse quaisquer das intervenções pretendidas.

Chegou, no entanto, um período em que senti que esse projeto era inadiável e então comecei a fazer a intervenção pretendida. Isto se deu em um momento em que precisei me afastar um pouco do meio virtual, e principalmente da escrita.

Isto é algo um tanto peculiar, cabe comentar: por uma série de coisas, desde há muito tempo, eu me acostumei a me expressar melhor e mais livremente através do texto escrito, me sendo muito penoso o exercício do falar, sobretudo em público.

Não sou, e não creio que um dia chegue a ser dotada da “ambidestria” de pessoas como meu amigo Jairo Lima, capaz de conduzir bem a melodia das palavras em ambos os ambientes… E assim, eu sou a que escreve.

E sendo a que “escreve”, isto me foi muito demandado ao correr desse ano. Em uma série de ocasiões, assumi o papel de relatoria em eventos de organizações associativas indígenas, fazendo a relatoria das mesmas, ou, nas palavras poéticas, generosas e sempre superlativas do meu querido amigo o ‘Deputado’ Maná Kaxinawa, sendo “a memória dos Huni Kui, guardando aquilo que será lembrados de geração em geração, e nunca acaba”.

E foi também a partir da quadra final de 2016, como resultado de muita conversa escrita, e de outros tantos compartilhamentos que fui alçada do papel de expectadora – sem jamais deixar de ser fã! – ao de comparte deste tão belo puxadinho…

Presente recebido com muito susto, a ciência do peso de responsabilidade, imensa honra, e uma grande alegria, pois não tenho dúvidas em dizer que a participação no Blog Crônicas Indigenistas (cronicasindigenistas.blogspot.com.br), bem como o transporte destes textos também para a Revista Xapuri (xapuri.info) , certamente trouxeram um hiato de beleza que ajudou a dissipar a bruma e permitir a caminhada pelos dias desse ano.

Foi também 2016 que eu, filha de um povo eminentemente nômade, me propus a escrever meu destino em paragens tão distantes de meu local de nascimento. E nesta escrita, assumi de vez minha nova pele, recebi nela novas marcas, algumas das quais dolorosas. Nada nesse texto foi simples, mas nem por isso, deixou de ser feito de beleza…

2016 está por terminar em poucos dias, e passei este singular ano escrevendo-o, e o fiz mesmo nos momentos em que as palavras faltaram. Silêncio também foi preciso. Porque as vezes, muitas vezes, não existe um vocábulo capaz de transmitir o que se sente. E há sempre o indizível.

E chegou, como eu dizia, um momento em que senti certo desejo de me afastar de tantos textos, de silenciar e me dedicar a uma atividade outra atividade para mim muito prazerosa, a da pintura, ou mais precisamente o de recriar alguma coisa nova a partir de velhos materiais.

Gosto deste exercício, do processo de transformação que está imbricado no processo de renovar algo a partir de um trabalho de lixas, tintas e criatividade. Acredito que isso traz imbuído algum tipo de filosofia de vida: ao invés de simplesmente jogar fora o que aparentemente está velho, talvez valha a pena ver se ela não pode ser transformada de alguma maneira.

É importante, no entanto, não transformar esse exercício em distúrbio acumulador. Se faz necessário saber que nem tudo é capaz de ser renovado, e existem coisas que realmente devem ser jogadas fora para dar lugar e espaço à novidade. A habilidade está em diferenciar uma coisa da outra.

Penso nisso como forma de expressar um sentimento a propósito do ano que está por terminar, e aquele que virá… Os seres tão extraordinários que são as borboletas têm muito a ensinar aos humanos: as lagartas que outrora foram, ainda que em uma forma bem menos elegantes, já anunciam em suas cores e malhas as majestosas asas que estão por vir, assim como também são replicadas na fase intermediária de crisálida.

E até mesmo o fato dos perigos de queimadura que se fazem presentes nas muitas espécies podem ser entendidos como uma proteção dada pela natureza para que a existência efêmera e diáfana seja possível. Como já disse uma Rosa muito famosa, todo o processo precisa ser suportado.

Escrevo agora este texto com as mãos sujas da tinta que usei em meu trabalho. E isto também me fala de marcas. De guardar consigo sinais de um processo de transformação que se executa, seja ele sobre si mesmo, ou uma ação realizada tendo por alvo algo exterior, no qual podemos interferir.

Objetos jogados fora que podem ser convertidos em objetos novos para uma casa vazia não deixam de ser uma boa analogia sobre o fato de que muitas vezes a realidade exige ação, ao invés da simples espera incerta por algo que pode muito bem acabar não vindo…

E cá estamos, na passagem de um ano a outro. Como já disse a querida amiga Dedê Maia, este é um ano que não deve ser esquecido. Porque nenhum ano o deve ser. Importa lembrar, guardá-lo de alguma maneira, na memória, em textos com tintas, ou sangue; há o que se registrou em papel, e há o que ficou inscrito na própria carne.

Este ano foi assim para mim, para muitos. Um ano em que assistimos, alguns estupefatos, outros inertes, outros coniventes a tantos fatos que marcaram de forma indelével a nossa história. E bem sabemos – todos, assim espero – que ninguém chegou até este o fim de 2016 impunemente.

 

Falo aqui sobre o ‘contexto’ indígena. O ano de 2016 foi um ano brutal. Não que necessariamente tenha trazido algo de realmente novo em seu enredo, pois, como eu já disse em algum texto perdido nas timelines da vida, 516 anos de experiência não permitem dúvidas a respeito de quem é o inimigo.

E inocência é um luxo que nunca foi permitido para indígenas, negros e pobres. A despeito de tudo isso, estes 365 dias trouxeram em si um bom conjunto de surpresas sobre o nível de descaramento com que certas máscaras foram tiradas, deixando às claras os rostos e as intenções funestas que escondiam. Penso que isso não é necessariamente o lado ruim, já que conhecimento é poder.

O lado realmente ruim é saber que o ano que está por vir se anuncia como irmão gêmeo deste, e talvez seja o malvado. Já no apagar das luzes de 2016, tivemos a notícia da Aprovação da PEC 55, e nem bem digerimos a notícia, já temos de nos preocupar com a nova ameaça atroz contida no projeto de Decreto que pretende alterar as regras da demarcação das Terras Indígenas, e que na prática inviabiliza as demarcações.

Do mesmo modo, a criminalização de lideranças indígenas recrudesceu, ataques, assassinatos, invasões contra os povos originários e seus territórios ocorreram nas várias regiões do país, assim como a violência contra os Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul continua diária e ausente de quaisquer pudores, e até já ouvimos os primeiros gritos de uma aberração que se julgava assassinada: as hidrelétricas do Tapajós. Isso só para citar as situações ‘principais’…

E, é claro, não se pode esquecer que o grande Glaurung não morreu e não tem pálpebras que fechem seus olhos em seu sono sempre vigilante, já que a PEC 215 ainda está lá, e algum dia retornar à superfície, quando chegar um momento oportuno.

E que momento mais propício do que este, onde o Estado de Direito é atacado e a Constituição é alvo de tanta consideração quanto qualquer pedaço de papel higiênico sujo?

Então… dizem que as mensagens de final de ano, entrada de ano devem ser cotejadas de esperança. Pois é, o problema é que eu não sou das pessoas mais otimistas dessa terra! Mas creio que, sendo um texto meu, ele necessita parecer comigo.

E eu, tão contraditória que sou, ainda agora falava de borboletas… Gosto muito desses seres delicados, inclusive pelo fato de serem um dos símbolos da Senhora dos Ventos. Dona dos raios e da tempestade, mãe e guerreira.

Essa Deusa é essa ambivalência que guarda as delicadezas de borboletas e a aspereza dos pelos do búfalo, e é, principalmente, a corporificação da transformação, que abarca também a pesada e rastejante vida da lagarta, e a espera da crisálida.

É brisa e furacão, força viva e pulsante, e também conhecedora dos caminhos da morte. E é esse poder transformador, a potência da guerreira-mãe Iansã, que acredito ser necessária para enfrentar o que está por vir.

Ainda outro dia, eu elogiava o texto do Jairo Lima, dizendo que os textos dele me transmitem o tipo de esperança que acho possível: não um otimismo ingênuo, mas a esperança de saber-se vivo, e, por isso, responsável por seguir adiante.

Essa esperança é a antecipação da borboleta nas malhas da lagarta, e a expectativa do broto por vir ainda da cripta da semente. E, por isso, se pode até ousar dizer em certo sentido que ‘o melhor ainda está por vir’, ou, usando uma metáfora bonita, mas algo conspurcada pelo uso, depois da meia noite, só resta amanhecer!

É preciso saber-se vivo, e é preciso pelo que vale a pena seguir lutando. 2016 foi um ano em que muitos Grandes partiram… Heitor Karai Awá-Ruxivá, Enir Terena, Tui Huni Kui, Yube Antônio Barbosa, Maurício Katukina, Krohokrenhum Gavião Parkatêjê, e tantos outros…

Até a Grande Samaúma foi abatida! E, ainda hoje, soubemos do encantamento de Tata Txanu Natasheni Yawanawa. Partiram para a Aldeia Celeste, se entretecendo no céu de estrelas sobre nossas cabeças. Não desapareceram, e devem ser lembrados. Por eles, também devemos estar vivos, e por isso a vida que pulsa em nós deve valer a pena em cada suspiro.

E, trazendo à memória o que foi, minha mensagem para 2017 é muito mais de expectativa do que de otimismo. Expectativa, aqui deve ser lida também como atenção e prontidão ao tudo o que pode ser esse ano.

E que ele seja vivido no tom e na emoção adequada: que seja possível sentir a alegria dos momentos felizes, e que também se chore pelo que merece ser chorado. E, principalmente, que se enfrente a tudo aquilo que convide ao enfrentamento. Que possa ser vivido, com tudo de bom e de ruim que ele contenha, e bebido até a última gota, e que de preferência, seja de uma taça erguida em brinde!

Um brinde à resistência, é claro!

“Nada no mundo consegue tomar o lugar da persistência.

O talento não consegue

nada é mais comum que homens fracassados com talento.

A genialidade não consegue

gênios não recompensados é quase um provérbio.

A educação não consegue

o mundo é cheio de errantes educados.

Somente persistência e determinação são onipotentes.”

(Calvin Coolidge)

 

Raial Orotu Puri, é indígena do povo Puri. Graduada em Direito pela UNIDESC e doutoranda em antropologia pela UFPR. Atualmente está radicada em Rio branco-Acre, onde atua como Chefe de Divisão no IPHAN/AC. Raial também contribui como assessora jurídica da Federação do Povo Huni Kui do Acre (FEPHAC).

As imagens desta matéria foram cuidadosamente selecionadas pelo indigenista acreano Jairo Lima e são da autoria de: 1)  Anouk Lacasse; 2) Carybe; 3)  Vanessa Lima; 4) Tiago Hakiy; 5) Ed Ribeiro. A foto de capa é de Renata Lúcia.


Block

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

 

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