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Rose, o armário, e esses homens que nos odeiam…

Rose, o armário, e esses homens que nos odeiam…

  Vilena Soares

“Esses homens que nos odeiam, são filhos dessa corja televisiva protofanática religiosa que diz amar o povo mas deseduca, desintegra e impõe comportamentos fatais capazes de naturalizar as piores violências.”

“O problema não está no gênero musical, no quadro especial, na matéria fútil de domingo, mas na moral que enseja todas essas pautas, uma moral preconceituosa, de um conservadorismo hipócrita em cujo epicentro reside apenas a verdade de que existem sim dois pesos e duas medidas para o que pode e o que não pode ser estabelecido como signo e, portanto, costume para a vida sexual, reprodutiva, afetiva da população.

Rose foi o armário de Gugu durante o tempo em que isso foi interessante, agora, como o objeto qualquer que é um armário sem casacos, sapatos ou uma bicha dentro, ela é chamada de mau caráter. A sociedade telespectadora, habituada a essa lógica da “boa família”, patriarcal, racista e aprisionada no capital, aplaude e pede bis, aplaude e deseja que a moça seja atirada em uma fogueira de traidoras.
Aplaude e pede bis ao escárnio contra quem não se enquadra, ainda que ela mesma, essa sociedade telespectadora, não tenha condições estruturais de ser a “boa família” branca, rica e cisheterossexual.”
Este comentário de Vilena Soares foi publicado em resposta à matéria de Paloma Franca Amorim – “Rose,  o armário”,  publicado no Ópera Mundi e amplamente divulgado nas redes sociais:
Triste é ver tantos intelectuais discutindo indústria cultural sem tocar na lama que é a formação na cabeça, na carne e no osso propiciada pelo dito ‘lixo cultural’.

Tive curiosidade sobre o caso do testamento do Gugu Liberato, passou no Fantástico esse final de semana uma matéria sobre a disputa entre a mulher dele, Rose, e a família. Os advogados e a mãe de Gugu dizem que nunca houve um relacionamento de verdade entre os dois e por causa disso ela não teria direito à fortuna do apresentador.
Durante os anos 1990 e 2000 não era isso que eu ouvia, como boa filha da classe média remediada brasileira, paraense mais especificamente, o que eu lembro é da inesgotável tentativa do Gugu em afirmar-se “um homem de família”, pai e provedor.
Na adolescência, quando eu mesma comecei a perceber minha sexualidade, notei que tudo soava como uma grande cortina de fumaça para ocultar um fato razoavelmente escancarado: talvez o Gugu fosse gay, e ainda que não fosse gay, era importante que ninguém pensasse isso dele.
Hoje minhas suspeitas juvenis se concretizam em um aprofundamento sobre a própria indústria que construiu Gugu Liberato: a audiência de seus programas não poderia aceitar um líder de pontuação, um grande comunicador, homossexual naquele momento histórico. Isso poderia significar não o fim de um mito, mas o fim do lucro que os mitos televisivos e cinematográficos geram para si e para os meios de comunicação em que trabalham.
Hoje, também por causa de dinheiro, a família insiste na tese contrária: Gugu e Rose nunca foram um casal. Eram apenas amigos e por isso ela não passa de uma oportunista, traidora da estabilidade familiar brasileira.
Ora, me parece oportunista que em uma década seja importante negar o fantasma da homo/bissexualidade do apresentador e depois seja fundamental que esse fantasma retorne, transformado, como razão primeira para anular os direitos de uma mulher que pariu, criou e desenvolveu a vida em função de três filhos e de uma imagem idílica e fantasiosa de matrimônio.
Mesmo depois da morte, Gugu Liberato continua estabelecendo as balizas da forma de pensar da sociedade brasileira, e elas não fogem à cruel regra de uma moral corrompida e que opera de acordo com os interesses do Capital.
Eu sou uma mulher negra, amazônida, lésbica de trinta e três anos. Já fui insultada, já fui agredida verbalmente, fisicamente, psicologicamente, já vivi relações abusivas com mulheres nas quais a posição de abusadora e de abusada se alternavam numa dinâmica adoecida e estranhamente naturalizada.
Hoje namoro também uma mulher negra e no pouco tempo que estamos juntas o acúmulo de violências e agressões simbólicas e físicas que vivemos como um casal parece ultrapassar décadas. O racismo, o machismo, a homofobia, a xenofobia, parecem se integrar em um quebra-cabeça mórbido toda vez que decidimos colocar os pés pra fora de casa, nos espaços públicos, sem deixar de ser quem somos, isso é, sem anular nossos eventuais desejos por demonstrações de carinho e afeto.
De alguma maneira, essa sensação ruim que às vezes me acompanha em todos os momentos em que sou lembrada de que minha condição no mundo é limitada e definida pelo outro e não por mim mesma, eu penso na indústria cultural. Eu penso no material que decidi estudar e com o qual trabalho sendo professora de estética e história do teatro.
Penso que o homem que tenta nos assustar de noite, porque eu e minha mulher estamos de mãos dadas na rua, aprendeu esse comportamento, recebeu bombas e bombas de referências doentias sobre como nossa presença é algo terrível e grotesco.
Ainda que este homem esteja completamente alcoolizado, ainda que tenha passado a mão em dezenas de meninas na festa onde estava, ainda que tenha tentado estuprar alguma amiga bêbada desacordada sobre o sofá. Para ele, apesar de suas monstruosidades, o monstro somos nós.
E devemos ser aniquiladas porque em um mundo binário como o nosso, não há espaço para a diversidade dos afetos e do desejo, afinal, essa diversidade é a própria liberdade e esse homem está preso, insistindo também, a todo custo, em nos prender do mesmo modo.
Esse homem e aquele outro que acha que pode nos assediar de madrugada, constituindo um outro plano de aniquilamento – o de que somos namoradas unicamente para agradar o seu fetiche sexual -, são a face de uma mesma moeda instaurada por séculos de opressão e colonialismo e por décadas de difusão massificada dessa forma de pensar e agir na vida social.
Esses homens que nos odeiam, são os filhos do Gugu Liberato, os filhos da família que Gugu Liberato esboçou como modelo geral pela televisão, ainda que ele não fosse de verdade o grande macho heterossexual doido por mulheres. Esses homens que nos odeiam, são filhos dessa corja televisiva protofanática religiosa que diz amar o povo mas deseduca, desintegra e impõe comportamentos fatais capazes de naturalizar as piores violências.

Rose foi o armário de Gugu durante o tempo em que isso foi interessante, agora, como o objeto qualquer que é um armário sem casacos, sapatos ou uma bicha dentro, ela é chamada de mau caráter. A sociedade telespectadora, habituada a essa lógica da “boa família”, patriarcal, racista e aprisionada no capital, aplaude e pede bis, aplaude e deseja que a moça seja atirada em uma fogueira de traidoras. Aplaude e pede bis ao escárnio contra quem não se enquadra, ainda que ela mesma, essa sociedade telespectadora, não tenha condições estruturais de ser a “boa família” branca, rica e cisheterossexual.
Me interessa, sim, falar de Gugu Liberato, sua morte e sua vida, por razões políticas, por razões pessoais. A minha vida depende de como o povo me e se percebe como sujeito e grupo sociológico. Triste é ver tantos intelectuais discutindo indústria cultural sem tocar na lama que é a formação na cabeça, na carne e no osso propiciada pelo dito “lixo cultural”. Pois é, o “lixo cultural” faz a alegria de milhares de brasileiros, ignorá-lo, não sabê-lo, não conhecê-lo, fechar-se na bolha dos bons filmes nacionais sobre resistência política não é a solução, é parte do problema, é parte da doença.
Talvez não seja o caso de dizer “desliga essa televisão e vá ler um livro” e sim o contrário: “desliga desse livro e vá LER uma televisão”, caro iluminado.

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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

 

 

 
 

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