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Conceição Freitas - talento e doçur

Conceição Freitas – talento e doçura

Conceição Freitas – talento e doçura

Bem menininha, ainda em Manaus, onde aflorou pra esse mundo, no coração da Amazônia, ela sentia forte os ruídos de lá. Se a Mãe-D’água era cobra ou sereia, pouco importava.

Por Jaime Sautchuk

Os olhos puxadinhos de índios e asiáticos da ascendência materna, cabelinhos pixaim do pai baiano, talvez, o que mais enchia seus ouvidos era o botocotô dos barcos no encontro de águas e cores do Negro com o Solimões.

Os sons amazônicos são as mais remotas lembranças de Conceição Freitas, jornalista e escritora que por mais de duas décadas encantou leitores nas páginas do jornal Correio Braziliense, de onde desembarcou em fins de agosto passado. Sua coluna diária “Crônica da Cidade”, por anos a fio era o que de melhor havia naquele matutino da Capital Federal.

Ceiça, pros amigos, com seu texto doce e preciso, sabe mais do que ninguém contar histórias de coisas e pessoas ou observar detalhes meio sumidos na realidade. Ela própria, contudo, tem uma trajetória de vida repleta de casos e causos permeados de cuidados e bondades, o que faz dela uma pessoa muito querida de quem aprecia esses predicados.

Seu tempo de manauara foi bem curto, pois ainda no colo desceu o Amazonas e foi morar em Belém, no Pará, acompanhando a família. E os ruídos aumentaram de volume. Seu pai era corretor de imóveis, vendedor de terras e florestas a sulistas de todo naipe. Andarilho de ofício, ele usava também uma carteira de jornalista, com que desfrutava de prestígio e algumas regalias. Uma delas era viajar de graça em aviões de carreira, um privilégio que esses profissionais tinham em tempos idos.

A mãe era ribeirinha, nativa da terra, e havia sido criada por uma família de portugueses, bem abastada, que tocava negócios em Manaus. Foi, em verdade, uma espécie de dama de companhia da única filha do casal lusitano, até conhecer o forasteiro com quem se casou. Tiveram dois filhos, Ceiça e um irmão, que hoje leva uma vida de artista na Chapada dos Veadeiros, em Goiás.

O FARFALHAR DO JORNAL

Mesmo com situação cheia de altos e baixos, com dinheiro curto e instável, seu pai assegurou aos filhos educação de boa qualidade, nos melhores colégios da capital paraense. E, embora pouco letrado, ele fazia questão de leituras. Certa feita, quando ainda não tinha feito 10 anos de idade, ela ganhou do pai as “Mil e Uma Noites”, coleção de livros de contos populares indo-árabes.  Foi um encanto.

Além de levar livros pra casa, o pai assinava o jornal Província do Pará, diário que folheava ruidosamente ao se informar dos acontecimentos globais, em sua casa. A pequena Ceiça ficava ao seu lado, ouvindo o farfalhar e apreciando as figuras do jornal. Ela costuma dizer que nasceram ali, naquele cenário doméstico, seu apego ao jornalismo, seu gosto por leituras e a vontade de escrever. “Foi o barulho do papel jornal, folhas da árvore de onde brotei”, afirma.

Esse pendão se aprofundou com as novas andanças da família, que resolveu tomar rumo sul e se instalar na jovem e promissora Goiânia, em 1972. A própria viagem de carro pelos mais de 2 mil quilômetros da rodovia Belém-Brasília, ainda de terra, já era uma aula de Brasil. O poeirão em retas infindáveis, lugarejos perdidos nos ermos, mercadores de todo tipo, gente muito pobre e gananciosos fazendeiros, de tudo teve na viagem.

Em Goiânia, porém, o pai logo faleceu, e o período de vacas gordas não veio, de modo que ela teve que trabalhar pra ajudar no sustento da família. Foi vendedora de livros e bijuterias e depois auxiliar de escritório, enquanto progredia nos estudos.

Acende, ao mesmo tempo, a luz da política, outra influência do próprio lar. Pra seu pai, havia um Deus no céu e dois na terra: Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Após o golpe de estado de 1964, a cerrada perseguição a JK era motivo de preocupação a todos os seus admiradores, o que gerava críticas ao regime militar.

Ao passar no vestibular da Universidade Federal de Goiás (UFG), em Comunicação Social (área de Jornalismo, claro), ela logo se vinculou ao movimento estudantil que agitava o país inteiro.

Ela passou a fazer parte da “Viração”, tendência estudantil ligada ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que agregava uma parte da esquerda católica, então muito forte no estado. “Passei a ter intensa militância estudantil e rara presença em sala de aula”, brinca ela ao relembrar aquele período de sua vida. O primeiro jornal em que trabalhou foi o Tribuna Operária, órgão oficial do partido.

Naquele período, Goiás vivia sob intensa vigilância dos órgãos federais de repressão, por ter sido foco de dois movimentos guerrilheiros em pouco mais de uma década. O camponês Zé Porfírio, líder do conflito de Formoso e Trombas, que havia sido eleito deputado estadual e cassado após o golpe, foi preso no norte do estado em 1972 e entrou na lista dos desaparecidos políticos. E a cidade de Xambioá (hoje no Tocantins) era a porta de entrada da Guerrilha do Araguaia, que se iniciava naquele ano no sul do Pará.

DE REPÓRTER A CRONISTA

O progresso nos estudos e a dificuldade financeira, no entanto, levaram Ceiça a aceitar o emprego de repórter de polícia do jornal O Popular, porta-voz da elite goiana. Nessa função, no período de desdobramentos do assassinato do jornalista Mário Eugênio, foi chamada pra reforçar a equipe do Correio Braziliense. Ali ficou por dois anos, também na reportagem policial.

Em seguida foi repórter da sucursal de Brasília da Folha de S. Paulo e da revista Imprensa, e redatora do Fundo das Nações Unidas para a Infância e Adolescência (Unicef). Logo depois, porém, regressou ao jornal que a havia levado pra Brasília, ali passando também pelas editorias de Cidades e de Cultura, até assumir a coluna “Crônica da Cidade”.

Nesse período, foi agraciada com dez prêmios de jornalismo, dentre os quais dois Vladimir Herzog de Direitos Humanos, dois Esso e um Embratel. Publicou dois livros, um com coletânea de crônicas, outro de contos, numa viagem pela ficção, gênero que cada vez a atrai mais.

Hoje com 57 anos, Conceição Freitas tem um filho já adolescente, mas não é casada. E, pelo menos até o momento em que eu escrevia este texto, aceitava ofertas de emprego.

Fotos: campus.fac.unb.br | cojiradf.files.wordpress.com

Obs.: publicado originalmente em16 de set de 2015


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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