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A ameaça final aos indígenas brasileiros

A ameaça final aos indígenas brasileiros

Este texto foi escrito pelo jornalista ULISSES CAPOZZOLI, amigo de longa data do fotógrafo Renato Soares (que assina este blog) e profundo conhecedor das etnias indígenas brasileiras.

Tomei conhecimento dele no Facebook e propus a Renato que o publicássemos aqui. Trata-se de um desabafo, de um alerta para o que pode acontecer com os indígenas no novo governo. Importante leitura pra todos que respeitam e amam os povos originais, sua sabedoria e a natureza.

No final de seu texto, incluí a Carta do Cacique Seattle, indígena americano sobre o qual Capozolli comenta. Lembrei dela ao ler suas palavras e senti que seria um bom complemento para suas reflexões.

Com esta publicação, o jornalista passa a integrar a lista de colaboradores deste espaço.

Mônica Nunes, editora

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A decisão do presidente eleito de “não ceder um centímetro de terra para os índios” e a ameaça de transferir a Fundação Nacional do Índio (Funai) do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura, se consumada, configura crime contra a humanidade.

Crime contra a humanidade é uma expressão do direito internacional para atos conscientes e propositadamente dirigidos contra qualquer população civil. O primeiro processo histórico dessa natureza foi o Julgamento de Nuremberg, numa série organizada pelos países aliados, entre 20 de novembro de 1945 a 1º de outubro do ano seguinte. Tribunais julgaram e sentenciaram as lideranças políticas, econômicas e militares da Alemanha Nazista. Crimes contra a humanidade não estão incluídos em nenhuma convenção internacional.

O que existe é uma determinação da organização Crimes contra a Humanidade (Crimes Against Humanity Initiative) para impedir e penalizar, em caso de ocorrência, crimes contra a humanidade. Ao contrário de crimes de guerra, estes podem ser praticados tanto em tempos de guerra quanto de paz. Se é que paz configura, de fato, o momento em que vive o Brasil.

Esses crimes são definidos como eventos não isolados ou esporádicos, mas parte da política de governo, ou tolerância de governo, à prática de atrocidades que implicam em assassinatos, massacres, desumanização, extermínio, experimentação humana, punições extrajudiciais, esquadrões da morte, desaparecimentos forçados, uso militar de crianças, sequestros, prisões injustas, estupro, escravidão, canibalismo, tortura e repressão, política ou racial.

Como se vê, a ameaça contra a população indígena brasileira, de mais de 240 povos, segundo o último censo do IBGE, de 2010, atinge potencialmente 896.917 pessoas, de que 324.834 vivem em cidades e 572.083 estão fora delas.

Pela maneira como o eleito tem se referido aos povos indígenas brasileiros, concluo que ele não tem a mínima ideia de quem sejam eles, e de como se estruturam culturalmente. Se soubesse, poderia compreender que são culturalmente distintos dos “brancos”, para usar a expressão herdada dos faroestes de John Wayne na caracterização de gente de pele branca (os “cara-pálida” a que se referiam os “pele-vermelha” americanos).

No Brasil, não somos brancos, mas café-com-leite, uma mistura de significativa base indígena, e este é o primeiro e elementar raciocínio para uma compreensão básica do que estamos tratando.

Indígenas, de maneira geral, estão confinados a um universo mágico, moldando suas práticas e concepções, a uma herança antiga, de uma certa infância da humanidade e que não desapareceu completamente, mesmo entre os “civilizados”. O que não faz dos indígenas, longe disso, criaturas tolas ou bestiais.

Já os supostos “brancos” vivem num universo que se poderia chamar de “cartesiano”, ainda que ocorrências do dia a dia, incluindo as decisões do presidente eleito, sugiram tratar-se de um universo anômalo e desiquilibrado. Dominado pela truculência, o ódio e a completa idiotia. Sem a percepção misteriosa do que é a vida na Terra e da brevidade do tempo a que ela está restrita.

Suponho que a última frase é o que diria ao eleito o Cacique Seattle, de quem um outro presidente, o americano Franklin Pierce, quis comprar, em 1855, o território a que estavam restritos ao cacique e seu povo, os Suquamish e Duwamish, de quem ele era o líder.

O cacique Seattle descrito como um homem alto e de objetiva linguagem poética, estranhou que os brancos quisessem comprar a terra, o ar, a água, o céu e os animais na região em que viviam. Se nada disso pertence ao homem, e um índio sabe disso, como o presidente pretendia comprar deles o que não lhes pertencia?

(Nota do Conexão Planeta: esse líder indígena americano escreveu uma linda carta para Franklin Pierce, que ficou conhecida como “Carta do Cacique Seattle”. Ela é considerada pela ONU como um dos mais belos e profundos pronunciamentos já feitos a respeito da defesa do meio ambiente e, por isso, a reproduzimos no final deste artigo de Capozzoli).

Quando diz que não dará “um centímetro de terra aos índios”, o presidente eleito revela que é um homem profundamente ignorante, não um estadista com equilíbrio e conhecimento capaz de conduzir seu povo a um tempo mais promissor, em termos de esperança e realizações.

Ele se mostra tão mesquinho e oportunista quanto o general George Armstrong Custer (1839-1876), que foi quem conduziu um massacre contra os povos Cheyenne e Sioux, liderados pelo destemido Sitting Bull (Touro Sentado) e o combativo Crazy Horse (Cavalo Doido) na sangrenta batalha de Little Big Horn, em 25 de junho de 1876, no Estado de Montana, em que ele também perdeu a vida. O bem mais precioso de uma criatura que respira sobre a Terra. Haveria ainda, para os indígenas americanos, uma última e definitiva batalha, um completo massacre, a Wounded Knee, em 29 de dezembro de 1890.

Quantos massacres contra povos indígenas houve no Brasil? Inúmeros, a quase totalidade ignorada por um desconhecimento abissal da história básica do País. Num tempo em que prospera a ideia de que História não é outra coisa senão manipulação política. Quando manipulação política de fato é a negação da história.

Crime do Paralelo 11 contra os Cinta-Larga, em meados dos anos 1960, é um deles, presentificado na memória de povos indígenas sempre que é relatada. Tradicionalmente ágrafos, o que significa dizer, desprovidos de registros escritos, a história entre os povos indígenas passa oralmente de pai e mãe para filhos e é sempre parte do presente, não importando há quanto tempo tenha ocorrido. E essa é uma das diferenças fundamentais na identificação de universos distintos, o dos povos indígenas e o dos “homens brancos” para reutilizar a terminologia do caubói John Wayne que, sem dúvida, o presidente eleito deve ter visto no cinema.

Um segundo massacre, no Brasil, para falar de apenas dois, foi praticado por militares em meados dos anos 1970, na construção da BR-174, que liga Manaus, no Amazonas, a Boa Vista, em Roraima. Os Waimiri-Atroari, que ocupavam o território cortado pela estrada, foram bombardeados de helicópteros e todos os adultos mortos. Os adolescentes assumiram o controle e, durante muito tempo, descarregaram todo o ódio impotente que sentiam sob a forma de ataques brutais, dizimando expedições e sertanistas.

Uma última consideração sensibilizadora: o papa Paulo III (Alessandro Farnese, 1468-1549), na Bula Sublimis Deus, de 29 de maio de 1537, afirmou que os índios eram gente e não animais. O que sugere que, na viagem ao passado em que estamos embarcados, já chegamos ao início do século 16, antes da Bula de Paulo III.

Para quem estiver interessado no futuro dos índios brasileiros, o passado dos índios americanos, tomo a liberdade de sugerir o poético e perturbador Enterrem meu Coração na Curva do Rio, do tipógrafo, bibliotecário, jornalista e escritor americano Dorris Alexander Brown, “Dee Brown”.

Ainda há tempo de preservar a língua e a cultura do que sobrou dos mais de 5 milhões de nativos que viviam por aqui, quando Cabral aportou na costa da Bahia e foi generosamente recebido pelos índios que viviam ali. Esses 5 milhões de índios que viviam por aqui se comunicavam com 1.500 línguas. Delas, sobrevivem duas centenas. Um tesouro, em todos os sentidos.

Carta do Cacique Seattle

Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra? Essa ideia nos parece estranha. Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los? Cada pedaço desta terra é sagrado para o meu povo. Cada ramo brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra da floresta densa, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência do meu povo.

A seiva que percorre o corpo das árvores carrega consigo as lembranças do homem vermelho. Os mortos do homem branco esquecem sua terra de origem quando vão caminhar entre as estrelas. Nossos mortos jamais esquecem esta bela terra, pois ela é a mãe do homem vermelho. Somos parte da terra e ela faz parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a águia, são nossos irmãos. Os picos rochosos, os sulcos úmidos nas campinas, o calor do corpo do potro, e o homem – todos pertencem à mesma família.

Portanto quando o grande chefe em Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, pede muito de nós. O Grande chefe diz que nos reservará um lugar onde possamos viver satisfeitos. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, nós vamos considerar a sua oferta de comprar a nossa terra. Mas isso não será fácil. Essa terra é sagrada para nós.

Essa água brilhante que escorre nos riachos e rios não é apenas água, mas o sangue de nossos antepassados. Se lhe vendermos a terra, vocês devem lembrar-se de que ela é sagrada, e devem ensinar as suas crianças que ela é sagrada e que cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz de meus ancestrais.

Os rios são nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhe vendermos a terra, vocês devem lembrar e ensinar seus filhos que os rios são nossos irmãos e seus também.

E, portanto, vocês devem dar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão.

Sabemos que o homem branco não compreende nossos costumes. Uma porção da terra para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem à noite e extrai da terra aquilo que necessita. A terra não é sua irmã, mas sua inimiga, e quando ele a conquista, prossegue o seu caminho.

Deixa para traz os túmulos de seus antepassados e não se incomoda.

Rapta da terra aquilo que seria de seus filhos e não se importa. A sepultura de seu pai e os direitos de seus filhos são esquecidos. Trata sua mãe terra, e seu irmão, o céu, como coisas que possam ser compradas, saqueadas, vendidas como carneiros ou enfeites coloridos. Seu apetite devorará a terra, deixando somente um deserto.

Eu não sei, nossos costumes são diferentes dos seus. A visão de suas cidades fere os olhos do homem vermelho. Talvez seja porque o homem vermelho é selvagem e não compreenda.

Não há um lugar nas cidades do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desabrochar de folhas na primavera ou o bater das asas de um inseto.

Mas talvez porque eu sou um selvagem e não compreendo. O ruído parece somente insultar os ouvidos. E o que resta da vida não pode ouvir o choro solitário de uma ave ou o debate dos sapos ao redor de uma lagoa, a noite.

Eu sou um homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento encrespando a face do lago, e o próprio vento, limpo por uma chuva diurna ou perfumado pelos pinheiros.

O ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo sopro. Parece que o homem branco não sente o ar que respira.

Como um homem agonizante há vários dias, é insensível ao mau cheiro. Mas se vendermos nossa terra ao homem branco, ele deve lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar compartilha seu espírito com toda a vida que mantém.

O vento que deu a nosso avô seu primeiro inspirar também recebe seu último suspiro.

Se lhe vendermos nossa terra vocês devem mantê-la intacta e sagrada, como um lugar onde até mesmo o homem branco possa saborear o vento adoçado das flores dos prados. Portanto, vamos meditar sobre sua oferta de comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar, peço uma condição: o homem branco deve tratar os animais dessa terra como seus irmãos.

Sou um selvagem e não compreendo qualquer outra forma de agir. Vi um milhar de búfalos apodrecendo na planície, abandonados pelo homem branco que os alvejou de um trem ao passar. Eu sou um selvagem e não compreendo como é que o fumegante cavalo de ferro pode ser mais importante que o búfalo, que sacrificamos apenas para permanecermos vivos.

O que é o homem sem os animais? Se todos os animais se fossem o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Pois o que ocorre com os animais, breve acontece com seus irmãos.

Vocês devem ensinar as suas crianças que o solo a seus pés é a cinza de nossos avós. Para que respeitem a terra, digam a seus filhos que ela foi enriquecida com as vidas de nosso povo. Ensinem as suas crianças o que ensinamos as nossas, que a terra é nossa mãe. Tudo o que acontecer à terra, acontecerá aos filhos da terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos.

Isto sabemos: a terra não pertence ao homem; o homem pertence a terra.

Isto sabemos: todas as coisas estão ligadas, como o sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo.

O que ocorrer com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não tramou o tecido da vida; ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido, fará a si mesmo.

Mesmo que o homem branco, cujo Deus caminha e fala com ele de amigo para amigo, não pode estar isento do destino comum. É possível que sejamos irmãos, apesar de tudo. Veremos. De uma coisa estamos certos, e o homem branco poderá vir a descobrir um dia: nosso deus é o mesmo Deus. Vocês devem pensar que o possuem, como desejam possuir nossa terra, mas não é possível.

Ele é o Deus do homem, e Sua compaixão é igual para o homem vermelho e para o homem branco. A terra lhe é preciosa, e feri-la é desprezar seu criador.

Os brancos também passarão, talvez mais cedo que todas as outras tribos. Contaminem suas camas e, uma noite, serão sufocados pelos próprios dejetos.

Mas quando de sua desaparição, vocês brilharão intensamente, iluminados pela força de Deus que os trouxe a esta terra e por alguma razão especial lhes deu domínio sobre a terra e sobre o homem vermelho. Esse destino é um mistério para nós, pois não compreendemos que todos os búfalos sejam exterminados, os cavalos bravios sejam todos domados, os recantos secretos da floresta densa impregnada do cheiro de muitos homens, e a visão dos morros obstruída por fios que falam.

Onde está o arvoredo? Desapareceu.

Onde esta a águia? Desapareceu.

E este é o final da vida e o início da sobrevivência.

ANOTE AÍ

Fonte: Conexão Planeta

 

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Joe Weiss Brazil

Conhecia bem a carta do Cacique Seattle mas acho que nunca li por inteiro. É maravilhosa. A última vez que comentei foi com Davi Yanomami pois as palavras do Davi são bastante similares e igualmente lindas. Parecia que eles se falavam a muita distância.

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