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A Noite Escura da Alma Brasileira

A Noite Escura da Alma Brasileira
 
“Andemos, que a fé não costuma faiá.”
É comum que uma pessoa atravesse períodos longos de escuridão em que se sinta como num buraco, sem a perspectiva de sair. Nestes dias e noites que parecem intermináveis, muitas coisas da vida são colocadas em xeque – quando não o sentido da própria vida.
Esta travessia, bem conhecida por diversas escolas e tradições ancestrais, foi batizada por São João da Cruz (séc XVI) como A Noite Escura da Alma. Ocorre quando, a partir de um ou mais acontecimentos que nos desestruturam, submergimos em um caos interno em que os nossos maiores medos tomam conta da casa. Podemos nos sentir abandonados, aflitos, incompreendidos e despertencendo ao mundo.
Para os estudiosos da Alma, esta longa noite é na verdade um dos principais portais de evolução pelos quais uma pessoa pode passar. É uma oportunidade de entrarmos em contato com aspectos da realidade interior até então desconhecidos ou negados, de trazê-los à consciência e então superá-los
Mas este rito de passagem costuma ser pouco compreendido pela civilização ocidental que, ao impor uma lógica materialista sobre as demais cosmovisões, desconhece fenômenos importantes pertencentes à realidade da Alma. Ao invés de nos convidar ao olhar interior, a visão materialista nos receitua panacéias ilusórias, como os antidepressivos e ideologias das mais variadas matizes.
Um povo também pode atravessar uma noite escura da alma, como já ocorreu com a Alemanha no período entre guerras, com os Estados Unidos durante a guerra do Vietnam, ou com a África do Sul na ocasião do Apartheid. Períodos nos quais situações absurdas reinaram, sem que houvesse perspectiva de alguma resolução para terríveis sofrimentos coletivos.
Mas, a partir do momento em que aspectos destrutivos destas nações foram reconhecidos e enfrentados, transformações fundamentais ocorreram e estas experiências geraram muitos benefícios em longo prazo. Estas nações saíram destes episódios maiores do que entraram.
Nós, brasileiros, atravessamos um período sombrio. Simbolizado pela usina de Belo Monte, pelas revelações dos esquemas de corrupção, pela lama do Rio Doce e Brumadinho, pelas eleições baseadas em mentiras, por nossas famílias divididas pela polarização política, passando pela normalização da violência para com as minorias e da perseguição de ativistas, pela liberação descontrolada de agrotóxicos, até chegarmos aos devastadores incêndios na floresta Amazônica e às manchas de petróleo. Neste pesadelo coletivo, a maioria de nós se acha impotente.
Estes desequilíbrios coletivos reverberam diretamente em nossa saúde individual. Eliane Brum retratou, a partir de entrevistas com psicanalistas, psiquiatras e médicos cardiologistas, que há um aumento vertiginoso das ocorrências de depressões, taquicardias e outros sintomas relacionados ao coração, associados principalmente ao desemprego e conflitos familiares que surgem com a polarização política. Como um dos seus entrevistados afirmou, estamos doentes de Brasil.
O que pode haver de positivo neste obscurantismo que parece imperar? Que valor pode ter esta noite escura sem fim?
Tanto individual como coletivamente, a Noite Escura da Alma nos oferece a possibilidade de entrar em contato com traços ocultos de personalidade que até então não foram suficientemente alcançados pela consciência. A estes traços inconscientes, mas que regem nossos atos de maneira mais forte do que podemos supor, Jung chamou de Sombras.
Os vícios e as virtudes de um povo só se manifestam na realidade coletiva porque existem também em nossa vida interior individual. Quando nos damos a oportunidade de ser radicalmente honestos conosco mesmos, certamente reconhecemos algum tom de machismo, autoritarismo, homofobia, racismo ou identidade de classe dentro de nós. O exame individual de consciência nos permite compreender mais precisamente os complexos culturais em que estamos imersos.
E uma vez que nossas sombras emergem à consciência, o que fazer?
A resposta necessariamente passa pela maneira pela qual lidamos com a dor sentida na alma. “Não há tomada de consciência sem dor. As pessoas farão qualquer coisa, não importa o quão absurda, para evitar enfrentar a própria alma. Não se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas vivendo conscientemente a escuridão”, diz Jung.
Há mais de 20 anos o psicanalista Roberto Gambini vem pesquisando fenômenos da Alma do povo brasileiro. Ele nos alerta que, para tratarmos as nossas desigualdades, violências e injustiças, não basta lutar apenas por mudanças nas condições materiais. Estas mudanças são fundamentais, mas é preciso cuidar também das feridas abertas em nosso inconsciente coletivo. A dor da nossa mãe indígena que teve seu universo interior ignorado, a dor dos africanos escravizados que tiveram toda sua história suprimida, são sofrimentos absolutamente reais e precisam ser tratados.
Por trás de um homem branco que orgulhosamente se identifica com seu status social e com os bens materiais que possui, embalado por um senso de superioridade perante aos que não possuem os mesmos privilégios, está o mesmo complexo cultural que impede uma mulher negra ter condições dignas de viver. O sofrimento de uma é mais perceptível do que o do outro, porém ambos encontram-se profundamente limitados. Nenhum dos dois desfruta, por exemplo, do sentimento de pleno pertencimento ao seu povo, o que certamente lhes traria maior felicidade.
Portanto, a negação de nossas próprias raízes é algo que dói na Alma, coletivamente. Como, então, curar essas feridas?
A cura das dores anímicas nos convidam, ao invés de buscarmos “resolver o problema” com soluções externas, a entrarmos em contato direto com emoções e sentimentos que costumam ser mais difíceis de reconhecer em nossa vida interior. A rigor não precisamos fazer “nada” além de mergulhar em nós mesmos e adentrar os vazios que estão por trás – ou por baixo – do que nos aflige.
Esse olhar para dentro é especialmente pertinente para nós Brasileiros, que historicamente fomos condicionados a valorizar mais o que está fora do que o que está dentro. Daí o já conhecido “complexo de vira-latas”, que nos faz sentir inferiores a outros povos e nações. O desconhecimento de nós mesmos talvez seja a grande sombra que precisamos entrar em contato agora.
O olhar negativo que ainda prevalece sobre o vira-latas ilustra como as virtudes da Alma Brasileira são erroneamente desprezadas. “Na penosa construção simbólica de nós mesmos, a tarefa maior é virar o ‘complexo de vira-latas’ do avesso. Transformar em virtude libertadora o que foi antes estigmatizado como capital fraqueza. Recolher a nossa pseudo-maldição e dar-lhe um sinal decididamente positivo”, afirmou Eduardo Giannetti, em seu Elogio do Vira-Lata.
A boa notícia é que o trabalho já foi iniciado, e está sendo feito por diversas mãos, há algumas gerações. Marechal Rondon e os Irmãos Villas Boas, Mario de Andrade, Tarsila de Amaral e todos os modernistas da Semana de Arte Moderna de 1922, Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, Gil e Caetano e os tropicalistas, Gonzaguinha, Milton Santos, Marlui Miranda, Kaká Werá, Ute Craemer e Ailton Krenak são alguns dos que já realizaram feitos significativos a serviço de um necessário redescobrimento do Brasil.
Toda Alma deseja expressar-se plenamente. E esta Alma Brasileira, que é mestiça, musical, criativa, afetuosa, gentil e formada a partir de um solo tão fértil e biodiverso, guarda tesouros valiosos que só podem ser descobertos na medida em que aprendermos a olhar pra dentro. Em nós habita algo muito mais potente que esta onda avassaladora de ignorância e de separação que nos destrói.
Sim, o que o Brasil parece ter se tornado nos causa frustração, tristeza, sensação de impotência. Mas esta não é toda a história que temos para contar. Somos agora desafiados a mudar de perspectiva, a lidar de maneira mais consciente com a realidade das emoções e sentimentos, desejos e sonhos, a adentrar nas profundezas para ver as luzes que estão além das sombras.
A noite escura pode assustar. Mas a atitude de confiar em nós mesmos, de acreditar que sairemos desta travessia maiores do que entramos, pode fazer toda a diferença. Andemos, que a fé não costuma faiá.
Fonte: eduardorombauer.com

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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

 

 

 

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