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Água: Um bem comum ameaçado

Água: Um bem comum ameaçado

Água: Um bem comum ameaçado

Caso ocorra uma terceira guerra mundial, muitos já disseram, sua causa certamente será a disputa pelo controle de água. Hoje, o precioso líquido é motivo de muitos embates internacionais. No Brasil, já é o principal gerador de conflitos no campo, segundo dados do governo federal e da CPT (Comissão Pastoral da Terra).

Com igual certeza, podemos afirmar que o Século 21, já bem iniciado, será o Século da Água, tal a dimensão que o problema vem assumindo. O que se vê, dia após dia, são ações cada vez mais apressadas de grandes corporações econômicas no sentido de assumir o controle de mananciais em todos os cantos do Planeta, na superfície e no subsolo.

No caso brasileiro, por exemplo, vazaram por diversas fontes negociações do atual governo com a gigantesca Coca-Cola sobre a utilização, pela empresa, do Aquífero Guarani. Este reservatório natural alimenta algumas das principais bacias fluviais do Brasil e outros três países (Argentina, Uruguai e Paraguai). É enorme, mas é finito. E deve ser de todos, não de alguns.

Todos sabemos que o território tupiniquim é privilegiado em termos de recursos hídricos, a começar pelo fato de que abriga o Amazonas, que é o maior rio do mundo em volume de água. No entanto, grande parte da população padece de falta d’água em suas moradias.

E não se trata apenas daqueles habitantes do semiárido nordestino, secular cenário de secas, mas de todo o território nacional. Inclusive, por mais incrível que pareça, os de Manaus, a capital amazonense, encravada na floresta amazônica, às margens do próprio rio Amazonas.

É bem verdade que, segundo dados oficiais, pequena parte (menos de 5% do conteúdo de nossos rios, lagos, pantanais etc.) é constituída de água potável. Mas, convenhamos, ficam desde logo visíveis os problemas de gestão desses recursos, um assunto diretamente ligado às prefeituras municipais, mas que tem a ver com todos os escalões da federação, cada qual com suas atribuições.

QUEM FAZ O QUÊ

A gestão dos recursos hídricos, no Brasil, é disciplinada pela Lei 9.433/97, que regulamentou a Política Nacional de Recursos Hídricos, prevista na Constituição Federal (Artigo 21). Mas é complementada por uma complexa legislação, de áreas diferentes, que vão desde a Saúde até o Código Florestal.

Essas leis se sobrepõem, de modo que em muitos momentos a Administração Pública empaca em desencontros entre as suas diversas esferas.

De qualquer modo, existe a Agência Nacional de Águas (ANA), órgão criado no ano 2000 e subordinado ao Ministério do Meio Ambiente. Sua função é regulamentar o uso dos recursos hídricos, com base no que é previsto pela Política Nacional. Em verdade, teria a atribuição de unificar as ações executadas por diferentes áreas do governo, mas tem demonstrado pouca eficácia nisso.

Em termos gerais, a área federal tem a missão de assegurar o dinheiro pra estudos, planos e investimentos, além da proteção em parques nacionais. Cuida do planejamento de âmbito nacional e dos recursos financeiros, portanto.

Mas, obras de maior vulto que envolvam água, como as grandes usinas hidrelétricas, são executadas diretamente pelo poder central, ainda que com participação subsidiária dos estados e municípios.

Neste caso, se enquadram as usinas de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, em Rondônia, e a de Belo Monte, no rio Xingu, no sul do Pará, recém-construídas. Nos três casos, o conflito de atribuições aflorou. O de maior gravidade é o de Belo Monte, localizado do município de Altamira, que foi parcialmente tomado pelo lago da barragem, atingindo também a área indígena do Xingu.

Havia, no projeto, o compromisso de que parcela da cidade de Altamira seria reconstruída antes do enchimento do lago da barragem. Os recursos seriam do próprio orçamento da obra, mas parte da execução ficaria a cargo do estado e do município. O fato é que a hidrelétrica já está em operação e essas obras ainda não foram executadas.

Há também embates sobre a destinação dada aos lagos de barragens. O conflito começa por determinações de operadores de hidrelétricas que impedem, com respaldo legal, o uso desses reservatórios de água para outros fins. Ou seja, não se pode retirá-la pra irrigação agrícola, por exemplo.

O argumento central pra isso é o de que a maior parte das usinas opera no limite e precisa de todo o líquido dos barramentos pra girar suas turbinas. Legislação pertinente ao setor de energia se sobrepõe, portanto, ao princípio do uso democrático da água, que passa a ser propriedade de donos de usinas.

Um conflito de grosso calibre, da irrigação versus eletricidade, vem sendo travado, no momento, em torno do lago da hidrelétrica de Batalha, no rio São Marcos, da bacia do Paranaíba, na fronteira entre Minas Gerais e Goiás.

Voltando ao quem é quem na gestão pública dos recursos hídricos, pela legislação em vigor, aos governos estaduais cabe realizar o planejamento regional e investir em obras que abarquem vários municípios. É o caso de infraestrutura viária, aquedutos, no caso de abastecimento de água, ou linhas de transmissão e distribuição, quando se trata de energia elétrica.

Por fim, as prefeituras cuidam principalmente das redes de distribuição, fazendo com que a água chegue aos pontos de consumo, que vão de unidades industriais às residências dos moradores. E fazem, também, investimentos na parte de tratamento desse volume que será consumido e no esgoto que é devolvido por esses mesmos consumidores. 

Os cuidados com os mananciais, porém, estão meio ao Deus-dará. Há áreas protegidas nos três níveis da federação, mas a aplicação da legislação ambiental fica confusa. Assim, o barramento, assoreamento e poluição de nascentes e cursos d’água ocorrem em profusão.

É certo que a mesma Lei 9.433/97 criou a figura do Comitê de Bacia, um instrumento cuja função principal é ajustar as normas nacionais à realidade de cada bacia. A ele cabe, também, opinar sobre ações pontuais relacionadas a águas de subsolo, nascentes, veredas, lagoas, córregos e rios ali existentes.

Ainda persiste, porém, a prática de formação de comitês apenas pra efeito formal, pois a maioria segue os ditames dos operadores dos sistemas em plano nacional, sejam eles estatais ou privados. É certo que, hoje, alguns desses comitês já são formados de modo mais democrático, dando voz e voto a entidades da sociedade civil, como prevê a lei, mas esses ainda são poucos.

PRIVATIZAÇÃO

Logo no seu início, como fundamento, a Lei 9.433/97 determina que “a água é um bem de domínio público” e que “a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas”.

No entanto, a água potável consumida nas cidades brasileiras é vendida, sob a justificativa de que passou por um processo de tratamento e tem custo elevado pra chegar ao consumidor. A dos mananciais, porém, em tese pertencem à União, ou seja, é propriedade pública.

Em verdade, todavia, na zona rural, por exemplo, muitos proprietários se apropriam da água como se um rio, um lago ou mesmo o lençol freático fosse deles. Os outros, em especial o pequeno produtor, às vezes já fragilizado por falta de apoios, fica sem acesso àquele recurso.

Muitos perfuram poços artesianos e vão buscar a água que está no subsolo, como se fosse parte da sua propriedade rural, ou mesmo urbana. No entanto, o lençol freático é como um manancial de superfície, não é propriedade privada de ninguém, mas sim um bem público, de uso comum.

Contudo, cada vez mais o Brasil se encaminha no sentido de privatização de mananciais, na lei ou na marra, como é o caso das negociações ora em curso com a Coca-Cola. Essa empresa é conhecida há quase um século por prática semelhante no mundo inteiro.

Já na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro em 1992, a Rio-92, a água esteve presente em todos os debates. E foi colocada como a parte mais sensível e importante de toda biodiversidade do Planeta, que deve ser preservada e usada de modo equânime, no que obteve a concordância dos 123 chefes de estado presentes na ocasião.

A socióloga Vandana Shiva, militante ambientalista indiana, esteve no evento e, muitos anos depois, em visita ao Brasil, alertava sobre os riscos da privatização, citando por acaso a empresa ora em questão. Disse ela:

“Os novos donos da água fazem dela o que bem entendem. Na Índia, a Coca-Cola simplesmente confisca a água de comunidades inteiras para suas unidades industriais. E isso ocorre no mundo inteiro. ”

No Brasil não é diferente. A empresa está no país desde 1941, a princípio acompanhando as tropas ianques que passavam por aqui durante a 2ª Guerra Mundial. Implantou as primeiras fábricas no Rio de Janeiro e São Paulo, inicialmente usando o concentrado importado dos Estados Unidos, mas já ocupando minas de água mineral.

Investiu fortemente em publicidade, com o slogan “Coca-Cola, isso faz um bem” e espalhou unidades pelo país inteiro, em muitos casos em associação com empresas brasileiras, pelo sistema de franquia. Cada litro do refrigerante produzido utiliza 1,8 litro de água, segundo dados da própria fabricante.

Além disso, a Coca-Cola produz a água mineral com a marca “Crystal”, com e sem gás, também engarrafada no país inteiro, de fontes diferentes, portanto. Mas é sempre a mesma água, já que a gaseificação é feita artificialmente, por meio da adição de gás carbônico na hora de engarrafar.

Isso tudo dá uma ideia do volume de água apropriado pela empresa e vendida aos consumidores na forma de refrigerante ou de água mesmo. É tanta que, há muitos anos, ela investe em campanhas que buscam comprovar que toda água que utiliza é reposta na natureza, através do apoio a projetos ambientais.

A “gigante das bebidas não alcoólicas”, como a Coca-Cola se apresenta nessas peças publicitárias, iniciou a campanha de “devolução” de água em 2007, prometendo que até 2015 estaria repondo 100% do seu consumo, meta que diz ter atingido. Agora, já divulga que pretende repor o dobro do que consumir.

Essa campanha da empresa está sendo feita simultaneamente em 61 países. No Brasil, e reposição de água estaria ocorrendo, segundo materiais da empresa nas redes sociais, através de dois projetos, um dos quais na Amazônia. Este, é na Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Negro, área de 103 mil hectares sob supervisão da ONG Fundação Amazonas Sustentável.

O outro, é um projeto da ONG The Nature Conservancy (TNC) denominado Coalizão Cidades pelas Águas, que se destina a preservar nascentes de rios nos estados de Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo.

São, no entanto, dados muito vagos, imprecisos e de difícil aferição, até porque dos projetos citados pela Coca-Cola participam dezenas de outras empresas e entidades, que apresentam resultados diferentes.

De qualquer modo, revelam a preocupação da empresa em se antecipar à investida que faz agora sobre o Aquífero Guarani.

MODELO AGRÍCOLA

A monocultura de grãos, especialmente soja e milho, que vem sendo implantada no Brasil é um exemplo escandaloso do uso predatório de nossos recursos hídricos. O consórcio de culturas com a pecuária, com respeito aos recursos naturais, preservando parte da biodiversidade nativa parece algo distante ao ruralista dos dias de agora.

Isso ocorre com maior intensidade quando se trata de agricultura irrigada, em especial a que utiliza o sistema de pivô-central, que movimenta grande volume de água. Um único pivô, com haste de 250 metros, pode remover quantidade suficiente pra abastecer uma cidade de 5.000 habitantes.

Em Goiás e Mato Grosso, onde essa prática é difundida em larga escala, há fazendas que operam com 20, 30 desses equipamentos em uma única área plantada, retirando a água de córregos e rios, principalmente. Nesses casos, esses cursos d’água esvaziam ou secam à jusante, prejudicando comunidades que necessitam do líquido, justamente nos períodos de pouca ou nenhuma chuva.

Na Serra Geral de Goiás, na fronteira desse estado com a Bahia, região recém-tomada pela monocultura, há registros oficiais de pelo menos 14 córregos que secaram completamente nos últimos sete anos, todos da bacia do rio São Francisco. Apenas como exemplo.

Isso ocorre principalmente pelo fato de os agricultores chegarem com seus tratores e estenderem as áreas cultivadas até bem próximo das águas, invadindo e soterrando veredas, onde ficam as nascentes. Além disso, normalmente não são feitas curvas de nível na lavoura, de modo que a água carrega parte do solo arado com facilidade até os cursos d’água, que assim são assoreados.

Por último, mas não menos grave, está o problema dos agrotóxicos borrifados sobre as lavouras, muitas vezes com agroaviões. O fato é que o veneno contamina os mananciais das redondezas, que ficam impróprios ao consumo, provocando doenças e mortes.

POLUIÇÃO

Por falar em envenenamento de águas, principalmente nas cidades e próximo a elas, mas também no campo, um dos grandes problemas enfrentados é o da poluição. Dejetos industriais, esgotos urbanos e rurais, lixos domésticos, contaminantes químicos, tudo se joga nos córregos, rios, lagoas, lagos, como se a água fosse um sumidouro de sujeira.

Muito pelo contrário. Mesmo o lixo que se desintegra deixa seu conteúdo na água, com efeitos danosos à vida. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), em torno de dois milhões de pessoas, na maioria crianças com menos de cinco anos, morrem por ano no mundo por beberem água contaminada.

Além do mais, são muitas as doenças provocadas pela água poluída e contaminada. Estas podem não matar de imediato pessoas e amimais, mas causam danos à saúde humana, lotam hospitais, afetando enfim a qualidade de vida de comunidades inteiras. Problemas de pele e no aparelho respiratório são os mais comuns, segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

PROVIDÊNCIAS

Isso tudo revela a maneira com que está sendo tratado no Brasil um problema que é do mundo inteiro. A gestão dos nossos recursos hídricos padece de providências urgentes, até pra impedir ações, cada vez mais comuns, que visem à privatização da água.


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