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Dona Elisa e o diálogo de surdos na Ucrânia

Dona Elisa e o diálogo de surdos na Ucrânia

O diálogo é a invenção humana mais admirável  de toda a história da humanidade.” Jorge Luís Borges, 1981.

José R. Bessa Freire

O bombardeio promovido por Vladimir Putin deixou ilhados na Ucrânia alguns turistas brasileiros e cerca de 500 residentes, entre eles vários jogadores de futebol. Se o ataque russo acontecesse em julho de 1981, quem estaria em perigo? Quem? Quem? – Raimundinho Nonato – eu ia responder, mas a tragédia não se presta a brincadeiras. Uma das vítimas seria dona Elisa, turista amazonense, moradora do bairro de Aparecida, que em companhia deste seu filho, da nora e da neta saíram de Paris em excursão turística por cidades da Rússia, Ucrânia e Polônia, com um grupo de 30 franceses.

O grupo viveu em Kiev experiência memorável. Lá, um milagre contribuiu para resolver problemas de comunicação dos turistas, conforme registrado oralmente por ela e datilografado em 95 páginas por esse escriba, no “Diário de viagens da Lizoca”, ilustrado com fotos tiradas com antiga Polaroid. Quem pode se interessar na romaria de uma dona de casa de Manaus por igrejas ortodoxas, museus e hotéis? Só mesmo as nove filhas da autora, a quem o texto é direcionado. Por isso, o subtítulo “Meninas, eu vi”, consultado agora para abordar o tema.  

Foi assim. O voo noturno de Leningrado que nos levaria a Kiev atrasou. Quando o avião da Aeroflot pousou no aeroporto internacional de Borispol, já era mais de meia-noite, fora do horário de trabalho da intérprete de francês que devia receber o grupo. Havia apenas o motorista de ônibus, monolíngue, que nos esperava com uma placa em alfabeto latino – ufa! – e não em cirílico. Ele nos conduziu ao hotel Dnieper, um edifício novo no centro da cidade, cujo recepcionista só falava ucraniano e arranhava o russo mal e porcamente.

DIÁLOGO MILAGROSO

Acontece que ninguém do grupo entendia essas duas línguas eslavas. Tentamos inutilmente nos comunicar em francês, inglês, alemão, espanhol e português. Necas de pitibiribas. Nem a gesticulação, que a gente pensa ser universal, dava conta. E agora, José, sem intérpretes, como organizar na madrugada a distribuição dos quartos e especialmente o jantar? A Aeroflot não serviu sequer um lanchinho, estávamos mortos de fome.  

Eis que de repente fomos salvos por um casal simpático de surdos-mudos, participantes da excursão, que se comunicava entre si através da Língua Francesa de Sinais (LFS) desconhecida por todos nós. Seus nomes não estão registrados no Diário. Do marido não lembro o nome, mas o dela era Amélie ou Aurélie, algo assim.

Contadores de piadas, ambos tinham conseguido se comunicar nos passeios pelas cidades russas até com a dona Elisa. Agora, na recepção do hotel em Kiev, assumiram a liderança, mediante desenhos e gesticulação adequada, auxiliados por uma linguista do grupo. Fizeram um mapa que serviu para a distribuição dos quartos.

E a janta? Aurélie ou Amélie foi até a cozinha, abriu panelas, geladeira, freezer e voltou de lá com sopa de beterraba e folhas de repolho, uma bomba geradora de flatulências, mas deu pro gasto. De sobremesa, um bolo de mel com chocolate.

Parece que o funcionário da recepção transitava pela Língua de Sinais Ucraniana (USL), que pertence à mesma família da LFS, mas perdeu muitos usuários nos anos 1940–1950, quando durante a ocupação russa Stalin a baniu do sistema educativo, por ser “não uma linguagem, mas um substituto”. Em seu artigo Sobre o Marxismo na Linguística, Stalin tratou os surdos como seres humanos anômalos”. Matou o marxismo e a linguística, sem saber onde enfiar a língua: na infraestrutura econômica ou na superestrutura jurídica e ideológica.  

O “anômalo” casal de franceses, que sofreu ao longo da vida e enfrentou graves dificuldades de relacionamento, agora era o mais capacitado para resolver um problema coletivo de comunicação básica, servindo de intérprete com o uso de formas de categorizar o mundo tão diferentes das nossas. Nós, os demais turistas, estávamos condicionados e presos a convenções, o que nos “emudeceu”.

– Foi um milagre igual ao de Jesus quando fez ouvir os surdos e falar os mudos, exclamando Éfata. – disse dona Elisa – citando de memória o Evangelho de São Marcos, enquanto me olhava tomando a sopa que ela rejeitou.

O CRIMINOSO: TÁ RUSSO

Milagre ou não, dona Elisa aproveitou o dia seguinte para rezar na Catedral de Santa Sofia na ida do grupo de turistas ao Museu de História e Arquitetura no centro de Kiev. Nas catacumbas do Monastério de Petcherskaia, percorremos quase meio quilômetro de labirintos a 15 metros debaixo da terra. Caixões, múmias, caveiras e ossos de monges se espalhavam por pequenos corredores. O marido de Amélie ou Aurélie nos divertiu, rindo para uma caveira risonha, mas pegou o maior esporro da guia.  

A excursão visitou ainda a cidade Tcherkassy às margens do rio Dnieper, com direito à visita a um kolkoze – uma cooperativa de camponeses, que nos receberam com farta mesa de frutas: maçã, pera, chocolates, além de vinhos e cigarro. A neta da dona Elisa se divertiu na roda gigante do parque infantil do kolkoze.

Parte desse patrimônio começou a ser destruído por bombas e pela invasão de mais de 100 mil soldados russos enviados pelo miliciano internacional Vladmir Putin, veterano espião da KGB – uma espécie de DOI-CODI russo. Dessa forma, a Rússia viola o território de uma nação soberana como já havia feito na Hungria (1956), Tchecoslováquia (1968), Afeganistão (1979-89), duas vezes na Tchetchênia (1994-1999), na Geórgia (2008) e na Síria (2015). Lenin deve estar se mexendo no seu túmulo.

Em seu artigo “Podres Poderes” (FSP – 26/02), Txai Suruí, que já havia falado por nós na ONU, condenou a carnificina, os tanques e as bombas que atingiram hospitais, fábricas, pontes, edifícios residenciais e estão matando civis, “destruindo vidas e sonhos de mulheres, homens, jovens e crianças”. É um retrocesso na liberdade e soberania de um país. “O mundo presencia a perda da humanidade” – escreveu Txai.

O triste é que os EUA não têm moral para condenar violação de território. O mundo presenciou nos últimos cem anos dezenas de invasões do imperialismo americano: Panamá, “Guerra das Bananas” com Honduras, Nicarágua, Haiti e tantos outros só na primeira metade do século XX. Na segunda metade, Irã, Guatemala, Laos, Líbano, Iraque, Indonésia, Coreia, Vietnã, Afeganistão, a malograda invasão de Cuba (1961), golpes de Estados patrocinados pela CIA no Brasil (1964), Bolívia (1971) e a vergonhosa invasão à República Dominicana com ajuda de tropas do Exército brasileiro comandadas pelo general Meira Matos (1965).  

PARÁBOLA DOS SURDOS-MUDOS

Da mesma forma que as gigantescas manifestações do povo americano derrotaram os EUA na guerra do Vietnã, a esperança agora, na guerra contra a Ucrânia, reside no povo russo, que começa a acertar as contas com Putin. Um manifesto on line com 500 mil assinaturas chama a guerra de “insanidade”. A diretora do Teatro de Moscou, Elena Kovalskaia pediu demissão: “É impossível trabalhar para um assassino” – disse. Protestos foram registrados em mais de 40 cidades, 1.800 manifestantes foram presos, segundo a ONG OVD, que monitora a violência policial. Não existe NENHUM ARGUMENTO que justifique crime tão hediondo.

O gado bolsominion não vê contradição entre a aliança de um “comunista” com um notório anticomunista, porque sabe que Putin é tão comunista quanto seu aliado Bolsonaro é democrata. Por isso eles se dão tão bem. Ambos são mentirosos contumazes e tratam os opositores como inimigos que devem ser calados ou exterminados.

A defesa incondicional da paz exige o diálogo que, para Borges, é uma invenção humana mais admirável do que a bomba atômica. A capacidade de negociar, uma arte difícil de exercitar, é o caminho contra a intolerância e pode resolver problemas desde que haja boa vontade. A história vivida pelo casal de surdos-mudos, que sabe muito bem disso, serve de parábola.

Da viagem a Kiev sobraram algumas fotos de péssima qualidade e uma pessanka – aquele ovo colorido manualmente, portador – dizem – de paz, alegria e saúde. Então, pessankas coloridas para todos nós! Pessankas para o planeta!

José Bessa Freire – Cronista – Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri. Gestor do blog www.taquiprati.com.br.


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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