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Mulheres indígenas: recompondo a devastação

Mulheres indígenas: recompondo a devastação

Mulheres indígenas ajudam a recompor matas ciliares em fazendas de Mato Grosso. Sementes coletadas no parque no Xingu são distribuídas para produtores rurais em trabalho de reflorestamento coordenado pelo Instituto Socioambiental…

Por Neide Duarte/Globo Rural 

No princípio está adormecida. Como se esperasse pela vida, encostada na morte. Quando acorda, nem o fundo da terra consegue impedir a sua força de querer alcançar o céu. A semente que vinga está pronta para viver a sua grandeza. Assim seria se a natureza pudesse seguir seus tempos e vontades. Mas o desmatamento das florestas tem a medida da nossa pressa.

Nos últimos anos, só em Mato Grosso, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), as perdas com desmatamento têm sido de quase 2 mil quilômetros quadrados por ano, área maior que a cidade de São Paulo.

Sai a floresta, entram os campos de cultivo de soja, milho e algodão, os grandes pastos para os bois. Desde a criação do Código Florestal, em 1965, as matas que crescem em torno de rios e nascentes são áreas de proteção permanente e devem ter uma faixa de floresta proporcional à largura do curso d’água. O que vimos nos últimos 40, 50 anos é que produtores rurais destruíram as matas ciliares que protegiam as águas, contaminando, assim, rios e nascentes. Hoje, muitos produtores rurais em Mato Grosso começam a restaurar o entorno dos rios que passam pelas fazendas deles e que foi indevida e ilegalmente desmatado.

No mundão de terra que é a Fazenda Vera Cruz, com seus 43 mil hectares, em Canarana (MT), o dono Henrique Gonçalves está reflorestando as áreas vizinhas aos cursos d’água da propriedade. “Essa é uma das nascentes do Córrego Quebrado, cujas águas percorrem 22 quilômetros até desaguar no Rio Xingu. Se eu poluo aqui, essa poluição vai chegar às cidades aí para frente”, diz Henrique. “A gente tira nosso sustento da terra e a gente tem o dever de proteger a terra e a água.”

Henrique está fazendo esse trabalho junto com os técnicos do Instituto Socioambiental (ISA), que desde 1994 trabalha com projetos sociais e ambientais no Brasil. O ISA criou, em 2007, o Banco de Sementes do Xingu, para ajudar na restauração de ecossistemas degradados. O instituto cede as sementes e orienta os produtores, que entram com o maquinário e a mão de obra dos funcionários.

O ISA também criou a técnica da muvuca, inspirada na tradição indígena. Sementes de pelo menos 80 espécies de árvores são misturadas e depois lançadas à terra pelas plantadeiras, para que ali não apenas árvores brotem, mas uma floresta. Só na Vera Cruz, o ISA cedeu ao produtor 300 quilos de sementes para reflorestar 3 hectares da fazenda.

É um trabalho de formiga. O ISA, em parceria com produtores rurais, organizações de ensino, de pesquisa, pequenos e médios agricultores, indígenas e poder público, conseguiu reflorestar em 12 anos de trabalho uma área de 4 mil hectares, apenas 1,34% dos mais de 300 mil hectares de matas ciliares que precisam ser reflorestados na bacia do Rio Xingu.

“Então a gente teria de ter mais dez redes de sementes como essa se quisesse recuperar todos esses hectares em um ano. A devastação continua aqui na região. No último ano, foram mais de 5 mil hectares abertos de florestas, diz Bruna Ferreira, diretora do Banco de Sementes, em Canarana.

Mulheres da etnia Ikpeng, no Xingu, coletam as sementes que são utilizadas para recompor a mata ciliar em fazendas de Mato Grosso (Foto: Neide Duarte)

O ISA recebe até 150 espécies de sementes de 19 municípios das bacias dos rios Xingu e Araguaia. Os coletores são agricultores de assentamentos rurais e de 11 aldeias indígenas. Uma delas é a aldeia dos Ikpeng, dentro do Parque Indígena do Xingu.

Viajamos uma hora num avião monomotor, desde Canarana até o Médio Xingu. A aldeia dos Ikpeng fica numa bem traçada circunferência cercada pela floresta e vizinha ao Rio Xingu. Em enormes casas cobertas com palha inajá vive o povo Ikpeng, em duas aldeias: Moygu e Arayô. É lá que vamos conhecer as mulheres yarang, as coletoras de sementes da floresta. Elas se autodenominaram “yarang”, que na língua Ikpeng significa formiga-cortadeira.

“A gente se inspirou nas formigas-cortadeiras. Olha o exemplo do trabalho delas, pegam as sementes, levam para casa, beneficiam, armazenam, tudo coletivamente e bem trabalhado,”  diz Magaró Ikpeng.

Magaró e Makawá são as líderes das yarang na aldeia Moygu. É cedo ainda quando elas, em grupo de 20, 30 mulheres, se embrenham na floresta para colher sementes. Quem faz esse trabalho precisa conhecer a natureza. Saber quais espécies estão dando sementes em cada época do ano.

O trabalho é cheio de alegria. Elas pegam as sementes com as mãos, catam do chão, mas não pegam todas, deixam uma parte para os animais, coletores de sementes e multiplicadores de florestas como elas. Para as yarang, toda árvore é sagrada, toda semente é sagrada, porque é filha da árvore. Cada árvore tem o seu espírito protetor. Da amescla é a abelha; do pequi, o beija-flor; e do leiteiro-da-mata é a lagarta que vira borboleta.

Quando veem um pé de pequi, todas param, comem o fruto, mas não colhem as sementes para vender. Os donos do pequi são os indígenas de uma outra etnia, os Waurá, por isso elas não comercializam. As yarang recebem 90% do que será pago pelo Banco de Sementes de Canarana, o resto fica para manter a Casa de Sementes dentro da terra indígena.

Na outra aldeia dos Ikpeng, Arayô, as yarang estão plantando sementes, reflorestando uma área degradada. Tudo  é manual: as yarang misturam terra e sementes para fazer a muvuca. Colocam os grãos na terra com cuidado, depois cobrem com capim para proteger as sementes do calor excessivo. Elas estão trabalhando nessa área há dois anos para conseguir deixar a terra livre do capim braquiária.

”Aqui era roça, tinha plantio de banana e abacaxi, aí vieram os brancos e falaram que iam trazer o boi. Para isso precisava de comida para ele, então os brancos plantaram capim, mas nunca trouxeram o boi para comer esse capim”.  diz Core Ikpeng, líder da aldeia Arayo.

Ela diz que, quando era menina, olhava a natureza imensa e pensava: “Nunca vai acabar”. Com o passar do tempo, percebeu que vive numa ilha de floresta, e uma hora ela pode se esgotar.
“A preocupação agora não é com a gente, mas com as futuras gerações. A gente tem medo de que elas passem fome. Às vezes, eu até choro quando penso que meus netos vão passar fome.”

Apesar de viverem no meio da floresta, dentro do Parque Indígena do Xingu, os indígenas perceberam a necessidade de replantar mais árvores.

“Nós começamos esse trabalho para reflorestar a cabeceira do Xingu, porque as cabeceiras, os afluentes estão sendo desmatados, estão deixando só ilhas de florestas na beira, e uma quantidade pequena de floresta na beira do rio não é floresta”, diz Makawá.

Na voz do cacique geral dos Ikpeng, Melobô Ikpeng, os mitos de criação do homem branco e dos indígenas estão vivos e fazem todo sentido. Eu pergunto se é verdade que nós seres humanos somos parentes das árvores.

“ As árvores são nossos parentes, mas não são parentes dos brancos”, responde Melobô. ”Nós indígenas nos originamos dos troncos das árvores. Vocês brancos se originaram da sucuri grande, a sucuri era como a casa, a maloca de vocês.”

“Por  isso a gente sempre fala para os brancos: não desmatem a floresta porque a floresta são nossos parentes; a floresta somos todos nós.”

(Reportagem publicada na Revista Globo Rural 404, em junho de 2019)

Fonte: Globo Rural 

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