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O dia em que o velho Yawa me enfeitiçou…

O dia em que o velho Yawa me enfeitiçou… (Um causo entre os Kaxinawá)
Por Jairo Lima
Fui convidado para um jantar na casa de um casal amigo, onde se reuniram o grupo que participou, por indicação minha, do XVI Festival Yawanawá, na aldeia Nova Esperança, Terra Indígena Rio Gregório.
Entre drinks e petiscos, os vozerios entrecortados por risos e pantomimas narravam as ‘aventuras’ vividas nos três dias de festividades que participaram. Mirações com o uni (ayahuasca), as brincadeiras, a caiçumada e outros detalhes da festa tomavam forma a cada momento em que eram citadas. Como não poderia ser diferente, o consenso geral foi de que a experiência vivida, já que para quase todos era a primeira vez que participavam, foi um marco em suas vidas.
Eu, na mesma emanação, entre as beberagens e petiscagens misturava-me ao assuntos, ao passo que minhas próprias lembranças rodopiavam em minha mente, algumas tomando a forma de palavras que, de certo modo, divertiram os demais presentes.
Dias depois deparei-me com o registro fotográfico do festival,  feito pela Alessandra Melo, que neste ano de 2017 participou e registrou os principais festivais indígenas do Juruá. Enquanto me deliciava com as imagens, rostos conhecidos, hoje mais velhos, traziam-me lembranças muito queridas. Alguns destes foram meus alunos, lá pelo início dos anos 2000. Outros foram companheiros e companheiras de atividades em que participei. Alguns foram personagens importantes em minha trajetória indigenista.
Fui passando as imagens até que me deparei com uma que, além da reverência, me fez rir por alguns momentos. A imagem era a de uma brincadeira que aprendi com o velho e querido Yawarani, o ‘velho Yawa’, hoje com seus mais de cem anos. O motivo do riso foi de lembrar de um ‘causo’ que vivi entre os Yawanawá, e que teve esse velho como um dos principais personagens…e na crônica de hoje vale trazer essa lembrança.
No inícios dos anos 2000 fui realizar uma atividade na aldeia Nova Esperança, e o professor Nani (Fernando Luiz) me hospedou ao lado de sua casa. Nos dias que se seguiram estive muito envolvido nas atividades da comunidade, entre estas, a preparação para as festividades que viriam. Muitas foram as horas de conversa com o velho Tuikuru, sentado na escada da casa enquanto que, com largos gestos dava vida aos assuntos, tal qual um professor.
À noite geralmente tínhamos um jantar ‘em família’, preparado pela professora Fátima, esposa do Nani, e servido no chão da cozinha onde todos, num círculo ao redor do repasto, se serviam e conversavam ao mesmo tempo.
Os velhos Tuikuru e Yawa geralmente dividiam este momento conosco, e, sendo muito comunicativo, uma das características mais marcantes do Tuikuru, este dominava o ‘papo de índio’, contando suas histórias sobre o tempo dos patrões seringalistas, ou sobre a luta pela terra, ou sobre o tempo em que os missionários americanos viviam na terra, ou, ainda, sobre aspectos da cultura do povo Yawanawá. O velho Yawa, sempre discreto, participava do assunto com alguns acenos de cabeça, ou uma pequena frase falada na língua indígena.

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Lembro muito bem quando, numa dessas noites, quando uma linda nua nova começava a reinar no mar de diamantes  do céu, treinávamos uma das brincadeiras tradicionais, onde as jovens tiravam os homens para uma ‘dança’, sacolejando-os pelos braços. Eu, claro, me dei mal (como em geral me dou nesses momentos), sendo sacolejado de tal maneira que mais parecia um frágil galho de alguma raquítica árvore. O velho Yawa, em pé, fora da roda a tudo assistia enquanto o velho Tuikuru ficava olhando, sentado e falando em voz alta algumas orientações de como a brincadeira deveria ser feita.
Terminado o treino todos foram banhar-se para depois jantarem. Eu, como de costume, após o refrigério do banho e com os músculos doendo, fui para a cozinha da Fátima, jantar e ouvir histórias. Não me decepcionei. Nesta noite o velho Yawa contou-nos a história de criação dos povos indígenas, e como estes se dividiram em diferentes povos. Sua voz suave recitava as palavras em língua indígena, e o professor Nani e o Tuikuru traduziam. Não precisei tomar o uni para me sentir totalmente transportado a outro nível de percepção, pois, a cena toda era muito mágica com a luz bruxuleante das lamparinas criando formas nas sombras, e dando À cena toda um aspecto singular, como se estivéssemos em um outro local, em um outro tempo.
No dia seguinte ganhei dois jabutis de presente, que serviriam como prato principal nos dias finais em que eu ficaria na terra indígena, e, logo no primeiro dia um destes tornou-se a estrela do grande cozido que juntou na pequena cozinha de Fátima, uma audiência bem especial que contou com a presença do Biraci Brasil, que havia chegado a aldeia naquele mesmo dia. Foi um jantar ótimo e, claro, tivemos uma boa roda de conversa.
O amanhecer trouxe, juntamente com os sons da natureza e da aldeia acordando, o ruído característico quando um grupo se organizava para partir. No caso este grupo era do Tuikuru, que iria para sua casa na aldeia Mutum. Entre despedidas e acenos, ficou combinado que eu o encontraria no dia seguinte, para comer uma farofa de piaba em sua casa. E lá se foi o Tuikuru, enquanto eu, dentro do rio Gregório enquanto tomava banho, fui vendo a silhueta do seu pequeno barco desaparecer numa das curvas do rio.
 

Voltando para minha hospedagem, ao lado da casa do Nani, topei com o velho Yawa, sentado conversando com a Fátima. Ao me ver falou: Txai Jairo, vamos comer esse jabuti? – O que prontamente respondi: Não, velho, esse jabuti eu vou levar comigo até a aldeia Escondido para comer com os parentes lá! – O velho Yawa não se deu por vencido e falou de novo, dando uma maior ênfase ao tom das palavras: Txai Jairo… vamos comer esse jabuti! – Eu respondi: Txai, não tô com vontade de comer esse bicho hoje não. Ainda estou me recuperando do outro que comemos ontem. Não aguento não txai. O nawa aqui é fraco pra essas coisas. Deixa o bicho ai que o dia dele vai chegar.
E assim fiquei mais uns dois dias na aldeia Nova Esperança, finalizando as atividades previstas e preparando-me para seguir viagem a aldeia Escondido, e, em seguida para a aldeia Mutum, conforme tinha combinado com o velho Tuikuru.
No dia da partida, enquanto organizava a bagagem e e conversava com o Nani, lá vem o velho Yawa, de mansinho com seu jeito tranquilo de andar. Senta-se perto de nós apontando para o jabuti que estava preso num dos cantos do quintal: Txai! Vamos comer hoje esse jabuti? – Perguntou. Sinceramente, eu havia até esquecido do desafortunado jabuti, mas, ao ver menção à sorte do mesmo retruquei: Não txai! É como te disse: eu vou comer esse bicho junto com o povo da aldeia Escondido. – O Yawa só sorriu e eu fiquei pensando:  Acho que ele não entendeu o que eu disse.
Entre despedidas e demais acertos de novas atividades fui levando as coisas para o pequeno barco que me esperava no porto da aldeia: pega coisas, arruma tudo, confere tudo… beleza! Tudo pronto e…. tá… tá…. tátátátátátátááááá… o barulho do pequeno motor de 13 Hp indicando que a viagem começou.
Enquanto o barco deslizava calmamente pelas águas barrentas do Gregório, e a paisagem ia passando por mim, como de costume, minha mente ia vagando por momentos e locais especiais, não só nesta viagem como, também, nas outras que fiz e até mesmo em minha vida ‘citadina’. Eu sempre achava que, ao retornar de uma viagem, eu não era a mesma pessoa que tinha partido.
Finalmente chegamos na aldeia Escondido e fui logo me hospedar na casa da professora Leida, carregando todas as tralhas de viagem com a ajuda sempre providencial do txai Célio Maru Huni Kuin, que, por esta época, fez algumas viagens comigo, como parte de sua formação. E, enquanto nos organizávamos algo me chamou a atenção: Cadê o jabuti?

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–  Putz!!! Esqueci o jabuti! Tenho certeza que o velho Yawa me enfeitiçou, só pode ter sido isso. Como é que esqueci o bicho? – Falei pro Maru e pra Leda que não esconderam o riso. Não nego que, em vez de feliz, fiquei foi chateado pois havia deixado os enlatados para a viagem de retorno na casa do professor Nani, e estava contando com a farofa do Jabuti para minha estada no Escondido, já que era minha penúltima parada antes de voltar à cidade. Pensando rápido, decidi que iria antecipar as coisas e visitar logo o velho Tuikuru na aldeia Mutum, pois já estava com fome e uma farofa de piaba, prometida pelo anfitrião, com certeza cairia muito bem. E assim seguimos no final da tarde para o Mutum, onde eu passaria a noite.
Claro que a recepção foi ótima e junto com a esperada farofa de piaba, a companhia e a conversa do Tuikuru fizeram valer a pena ter decidido ficar por lá antes de ir embora: Txai, cadê o jabuti? Pensei que a gente ia comer ele antes de você ir embora. – Disse o Tuikuru. – Pois é, txai, o velho Yawa me enfeitiçou e eu esqueci do jabuti. – Foi minha resposta, que acabou tirando um grande sorriso do velho que, entre suas virtudes, tinha um senso de humor único. – Tá certo… a gente pensa em algo para sua despedida  – Finalizou.
A noite foi meio insone para mim. A expectativa de volta para a cidade, após uma temporada na aldeia mesclava um sentimento de expectativa com medo. Sempre me sentia assim, mesmo sem saber explicar.
O dia chegou, e com ele o tempo acelerou pois mal tinha tomado o ‘quebra jejum’ do dia, já me encontrava organizando a bagagem para o retorno para ‘casa’. Claro que sairia depois do almoço, pois, viajar de barriga vazia não é algo bom. A hora do almoço foi se aproximando quando, ao longe, ouvi um barulho de motor de popa, o que indicava a chegada de alguém. Como eu estava organizando a mochila, não fui para o barranco ver quem chegou, mas não pude deixar de perceber entre as vozes, uma: a do velho Yawa!
Saindo da casa, já com uma mescla de riso e cara de sério, olhei pro velho e ia já dizer que ele tinha me enfeitiçado quando, sorrindo, esticou os braços mostrando o jabuti e disse: Txai Jairo, vamos comer o jabuti? – Rindo muito respondi: Bora velho, cuida, vamos logo por esse bicho na panela!
E digo a todos vocês, caros leitores, que o almoço estava uma delícia!
Esse velho Yawa….

ANOTE AÍ:
As imagens utilizadas nesta matéria foram selecionadas por Jairo Lima e são da autoria de: Imagem 1 – brincadeira do urubu, foto Alessandra Melo; Imagem 2 – Brincadeira Yawanawá, foto Alessandra Melo; Imagem 3 – Velho Yawa, (capa)  foto Blog Terranauas; Imagem 4 – Velho Tuikuru com as crianças, foto Pedro Devanir; Imagem 5 – Yawa, Tuikuru e Jairo Lima, foto acervo Jairo Lima.
 

 
 
Jairo Lima – indigenista e escritor acreano. Jairo gentilmente cede seus escritos, publicados semanalmente  em seu blog cronicasindigenistas para publicação também aqui na Xapuri. Gratidão! Publicado originalmente em 06/11/2017. 

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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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