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Que tal ler o catatau do James Joyce durante a pandemia?

Que tal ler o catatau do James Joyce?

Que tal ler o catatau do James Joyce?

Ano passado eu preparei uma pequena fala especulando qual seria a reação do Joyce frente à pandemia do coronavírus, ele que enfrentou a pandemia da gripe chamada espanhola. Minha intervenção fez parte de um vídeo patrocinado pela Embaixada da Irlanda para festejar o Bloomsday de 2020.

Por ACQ

Agora, pra não deixar a data passar em branco, resolvi reeditar aquela palestrinha com alguns acréscimos. Vai que eu consiga animar mais meia dúzia de pessoas a enfrentar o Ulysses, um catatau com mais de 800 páginas, que grande parte do público acha, erradamente, que só os acadêmicos podem compreender!

O meu amigo Hamilton Pereira, o Pedro Tierra, diz que Ulysses é um livro bom de ler na cadeia, quando a gente tem tempo de sobra! Eu digo que é ideal também para esses esticados tempos de pandemia.

Inspirado em dezenas de grandes obras literárias, entre as quais a Odisseia de Homero, a Divina Comédia de Dante, as peças de Shakespeare, a Ciência Nova de Giambattista Vico etc, Ulysses resume a saga humana na jornada de 19 horas ao longo do dia 16 de junho de 1904 de Leopold Bloom, um homem comum, meio judeu por parte de pai, tremendamente apaixonado pela mulher, Molly Bloom, adepta do casamento aberto, digamos assim.

A data escolhida por Joyce para situar a história já tinha sido uma celebração do próprio escritor, a data de seu primeiro encontro com Nora Barnacles, a mulher de sua vida e mãe de seus filhos!

Medos – Segundo a editora do Ulysses, Sylvia Beach, dona da livraria Shakespeare and Company, sediada em Paris, Joyce tinha medo de trovões, de alturas, do mar, de cachorros e de… infecção.

Ele sofreu graves problemas nos olhos e ficou praticamente cego porque contraiu sífilis.

Martin Bock, da Universidade de Minnesota, escreveu um artigo vinculando Joyce à Teoria dos Germes, popularizada em meados do século 19. Bock diz que o medo de contágio era comum entre a população irlandesa na época. Pelo menos 775 mil pessoas morreram no país nos anos da praga da batata e da grande fome, 1846 e 1851. E no fim do século, o país foi alvo de quatro epidemias de gripe que se espalharam da Europa para a Inglaterra, Escócia e Irlanda.

A tuberculose matava na época um em cada dez europeus; e a mortalidade infantil era pior em Dublin do que em Calcutá, na Índia. Cinco irmãos de Joyce morreram ainda crianças.

Uma geração depois, quando Joyce estava escrevendo Ulysses, a pandemia de gripe chamada espanhola (1918-1920) matou entre 50 e 100 milhões de pessoas no mundo inteiro.

No primeiro episódio de Ulysses, Telêmaco, Buck Mulligan toma uma xícara de leite e comenta com a velhinha leiteira:

Se pudéssemos viver de um alimento bom como esse, nós não teríamos um país cheio de dentes e tripas podres. A gente vive num lodaçal, comendo comida barata, com ruas cobertas de pó, de esterco de cavalo e de escarros de tuberculosos.

– O senhor é estudante de medicina? – perguntou a velha.

– Sou, mulher, respondeu Buck Mulligan.

– Ora, vejam só, disse a velhinha.

Mulligan, como Joyce, diz Martin Bock, sabia que certas doenças se espalham através de micróbios. Joyce chegou a estudar medicina por um curto período em Paris a partir de 1902.

“Poeira e cinzas” – No final de agosto de 1900, com apenas 18 anos, Joyce encaminhou ao editor William Archer uma peça intitulada Uma Carreira Brilhante, que depois ele rasgou. É o que contou o jornalista Frank McNally na sua coluna de 9 de abril no Irish Times, informando que Stanislaus, o irmão mais novo de Joyce, disse que a peça era um drama realista centrado em Paul, um jovem médico, que abandona a namorada e o seu idealismo juvenil para se casar com outra mulher e seguir carreira.

Bem sucedido, ele acaba se tornando prefeito de uma cidade portuária. Ironicamente, ele consegue conter um surto de peste na cidade, graças à ajuda de ngela, sua ex-namorada. Daí Paul percebe que a sua brilhante carreira era apenas “poeira e cinzas”.

O envio da peça para o editor coincidiu com a confirmação de um surto de peste bubônica em Glasgow, Escócia, com 16 mortos. O surto era parte de uma pandemia. Em decorrência dela 100 pessoas morreram em San Francisco, nos Estados Unidos. O pânico tomou conta de Dublin, que decretou uma guerra contra os ratos.

Em Dublinenses, Joyce retrata a capital da Irlanda como uma cidade semideserta. Por essa razão, a crítica Adaline Glasheen disse que o livro é o Diário do Ano da Peste de Joyce.

Um Diário do Ano da Peste é o título de um livro do escritor inglês Daniel Defoe, publicado em 1722. O livro retrata a Grande Peste de Londres, que devastou a capital da Inglaterra entre 1665 e 1666.

Joyce tinha uma grande admiração por Defoe, tendo lido todas as suas obras, “cada uma de suas linhas”. Joyce considerava Defoe o pai do romance inglês, o primeiro escritor da Inglaterra que, segundo ele, não teria tido modelos literários precedentes.

Se Um Diário do Ano da Peste ofereceu a Joyce um modelo para ficcionalizar criativamente fatos da realidade, Robinson Crusoé, a obra-prima de Defoe, parece ter lhe dado a ideia de concentrar em Ulysses a história da Humanidade num homem só, Leopold Bloom.

Para Joyce, Robinson Crusoé é o Ulisses inglês, onde se concentra todo o espírito anglo-saxão: a independência do macho, a crueldade inconsciente, a persistência, a inteligência lenta mas eficiente, a apatia sexual… Ele esqueceu de falar da culinária, né!

Protótipo – Disse Joyce: “O verdadeiro símbolo do Império Britânico não é a caricatura de John Bull, mas Robinson Crusoé, que, abandonado numa ilha deserta, com uma faca e um cachimbo no bolso, torna-se arquiteto, carpinteiro, amolador de facas, astrônomo, padeiro, armador, oleiro, seleiro, agricultor, alfaiate, fabricante de guarda- chuvas e clérigo. Ele é o verdadeiro protótipo do colono britânico, assim como Sexta- Feira (o fiel selvagem que chega num dia de azar) é o símbolo das raças subjugadas.

Todo o espírito anglo-saxão está em Crusoé: a independência viril; a crueldade inconsciente; a persistência; a inteligência lenta porém eficiente; a apatia sexual; a religiosidade prática, bem equilibrada; o mutismo calculado. Quem relê esse livro simples e comovente à luz da história posterior não pode escapar de seu encanto profético”.

Robinson Crusoé é também o protótipo do indivíduo da ficção sociológica do liberalismo segundo a qual a sociedade não existe. O que existe seria um ajuntamento de “homens e mulheres e famílias”, como disse outra vez a primeira-ministra Margaret Thatcher em 1987.

Robinson Crusoé era um escravocrata. Aprendeu a falar português, adquiriu terras e um engenho de cana de açúcar na Bahia, e naufragou durante uma viagem que fazia em direção à costa da Guiné para comprar mais escravos. Quando foi resgatado da ilha deserta, era um homem rico. Seria hoje um James Dyson ou Richard Branson, um desses bilionários britânicos que mesmo durante a pandemia continuaram a faturar os tubos.

O Leopold Bloom do Joyce é bem diferente. Bloom é um homem comum, um joão-ninguém, meio judeu por parte de pai, representante geral da Humanidade.

Embora tenha revolucionado a literatura, Joyce nunca foi um revolucionário político. Ainda assim, o seu principal personagem, Leopold Bloom, e as técnicas narrativas do Ulysses inspiraram no cineasta soviético Sierguêi Eisenstein a ideia de filmar O Capital de Karl Marx. Infelizmente, o projeto não deslanchou.

No caso do Capital, a principal personagem do filme seria a mercadoria, a quintessência do sistema capitalista, a quem, aliás, Leopold Bloom serve na condição de agenciador de anúncios publicitários.

Bloom é um homem comum, sem propriedades. Ele não é aceito nem mesmo como um irlandês pleno, por se assumir judeu como o Spinoza, Marx, Jesus Cristo e o próprio Deus dos cristãos, convicção que ele joga na cara do Cidadão no bate-boca do episódio do Ciclope, provocando-lhe a fúria que resultou num terremoto de cinco graus da escala de Mercalli.

Hades, o Inferno – Joyce morava em Zurique quando publicou o primeiro trecho do sexto episódio do Ulysses, o Hades (o Inferno dos gregos), em setembro de 1918, e a gripe dita espanhola já estava grassando na Europa. Na Odisseia, Ulysses desce ao Hades para consultar o vidente cego Tirésias sobre o seu destino.

Já Leopold Bloom é convidado a entrar numa carruagem que está indo para o enterro de um conhecido, Paddy Dignam, no cemitério de Glasnevin. Durante a jornada ele fará reflexões sobre a vida e a morte, chocando os ouvintes com a sua crueza materialista e iluminista.

É nesse episódio que a gente toma conhecimento de sua sua profissão, a de agente publicitário. Cruzando as principais avenidas de Dublin, a carruagem para na altura do Grand Canal. Bloom está pensando em doenças e curas, e lá pelas tantas meio que bola um anúncio no seu fluxo de consciência: “Escarlatina, epidemia de gripe. A morte em promoção. Não perca esta oportunidade”.

Mais adiante, os passageiros estão discutindo a causa da morte de Dignam. Ele morreu de uísque, mas a turma diz que foi do coração. Quando alguém comenta que Dignam “morreu de repente”, Bloom exclama: “A melhor morte!”. Espanto geral. Daí ele é obrigado a se explicar: “Sem sofrimento… Um instante e tudo acaba. É que nem morrer dormindo”. Ninguém diz nada.

Em seguida Bloom é que ficará constrangido, quando o pessoal debate o suicídio – a pior das mortes, a maior desgraça de uma família, loucura temporária, covardia. Nem todos sabem que o pai de Bloom tirou a própria vida e dessa vez ele é quem prefere ficar calado. No cemitério Bloom vai se recordar do pai e também do filho, o Rudy, que morreu logo depois de nascer.

O episódio está recheado com a filosofia e o sentimento de despertença de Bloom.

Quando perora que o rito mortuário dos protestantes é mais simples que o dos católicos, um tal de Tom Kernan diz: “Eu sou a ressurreição e a vida. Isso toca fundo o coração de um homem”. Bloom responde na lata: “Toca mesmo… Mas de que vale isso para o sujeito que está debaixo de sete palmos comendo grama pela raiz? Não toca. Sede dos afetos. Coração partido. Enfim, uma bomba que bombeia milhares de litros de sangue todo dia. Um belo dia entope e aqui está você”.

Bloom pensa nos casais que trepam entre as lápides do cemitério, e inverte um dito bíblico: “No meio da morte estamos na vida”.

Ele cogita um cemitério em que os corpos fossem enterrados de pé, para melhor aproveitamento de espaço, de tal modo que também servissem de adubo de belas plantações e jardins.

Avaliando os horrores provocados pela morte, a começar pelos vermes que vão roer os corpos, ele está convencido de que a alegria da vida precisa prevalecer sobre a tristeza da morte, e então pensa nos coveiros de Hamlet. Logo depois cogita na possibilidade de todos nós, de repente, virarmos outras pessoas.

Refletindo sobre a precária situação da classe trabalhadora irlandesa, diz: “A casa de um irlandês é o seu caixão”.

Gramofone – Mais adiante, Bloom fica agoniado com a possibilidade de o morto estar ainda vivo. Imagina então uma lei determinando a instalação de um sistema de alarme ou de um telefone dentro do caixão para a pessoa enterrada avisar que está viva.

Também sugere a instalação de um gramofone na cova ou em casa dos parentes com a gravação da voz do morto, uma lembrança junto com a sua fotografia. Bem, essa sugestão é trivial hoje, né! “Kraahraark! Alôalôalô estousupercontente Kraark supercontentedevêlosdenovo alôalô estou super krpthsth.

A sua mente fica variando também sobre a melhor forma de sepultamento. “Cremação é melhor”, diz ele, lembrando que os padres detestam essa modalidade, por causa da ressurreição da carne, claro.

Daí ele pensa nos tempos da peste, quando os cadáveres eram empilhados e queimados com cal viva. E pensa também nos jiraus das torres do Irã e da Índia, os corpos do povo parsi eram comidos pelos urubus.

Por fim, acha que o mais doce é se afogar no mar, como diziam os antigos latinos e, mais recentemente, o nosso Dorival Caymmi!

No final, Leopold Bloom sai do cemitério, lépido e faceiro, de bem com a vida. Diferentemente de Ulysses na Odisseia, ele não volta do Inferno sabendo o que o espera no resto de sua jornada até Ítaca. Bloom só sabe que está vivo, que ama a sua mulher e que estes são os seus únicos valores. Nisso ele se parece com o Falstaff do Shakespeare, que dispensa as honrarias e salamaleques do poder para renovar o seu pacto com a vida.

Bloom ama Molly perdidamente, ainda que o amor dela talvez seja contagioso, talvez seja compartilhado com outros homens. O que importa é que ela lhe respondeu sim e o coração dele disparou loucamente e sim ela disse sim e quis Sim, com letra maiúscula e tudo!

ACQ – Antônio Carlos Queiroz é jornalista.


 
 
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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

 
 
 
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