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Quem estuprou, torturou e matou a menina Ana Lídia?

Quem estuprou, torturou e matou a menina Ana Lídia?

Ana Lídia foi morta duas vezes. A primeira, por violência nas mãos de homens. A segunda morte, silenciosa e triste, foi causada pelo regime militar.”

Por Marie Declercq/vice

Por anos, me dediquei a pesquisar e escrever quase que exclusivamente a respeito de assassinos em série brasileiros. Diante de crimes que se transformaram em página virada de jornais e encontraram seu desfecho, por mais trágicos que fossem, pensei: e aqueles que não foram solucionados?
 
Infelizmente, há uma vala metafórica (e outras tantas literais) no longo capítulo de crimes não solucionados na história do Brasil. Os responsáveis por ela não são assassinos em série com infâncias atormentadas e problemas psicológicos, mas sim a ditadura civil-militar.

De 1964 a 1985, torturas, mortes e desaparecimentos dignos de serial killers de pessoas consideradas subversivas para o Estado eram autorizados pelo alto comando das Forças Armadas.

Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, divulgado em 2014, o número total de mortos e desaparecidos durante os 25 anos de regime militar é de 434 pessoas. Dentro desse período, centenas de pessoas foram submetidas a sessões intermináveis de tortura e dentre as várias modalidades se destacam o pau-de-arara (uma barra de metal atravessada entre os punhos e as pernas amarradas da pessoa, deixando ela pendurada para receber porradas), choques elétricos pelo corpo, estupros, afogamentos e tortura psicológica, praticados por cerca de 377 agentes da repressão.

Essa violência era autorizada pelo Estado como um instrumento de poder e de preservação do governo. Os filhos dos que eram perseguidos, crianças na época, também foram torturados. Ainda constam 210 desaparecidos.

Na Vala de Perus, localizada no cemitério Dom Bosco em São Paulo, foram encontradas mais de mil ossadas de indigentes, perseguidos políticos e vítimas de esquadrões da morte — até hoje a maioria segue sem identificação por conta da influência do tempo e da natureza. Também estima-se que oito mil indígenas foram mortos pelo regime, sob a desculpa de serem um atraso para o desenvolvimento da nação.

No entanto, durante o mar de violência dos assim chamados Anos de Chumbo, dois casos se destacam em suas similaridades. São duas crianças, Araceli e Ana Lídia, assassinadas respectivamente em maio e setembro de 1973, ambas na faixa dos 7-8 anos. As mortes, apesar de serem separadas geograficamente, são quase iguais.
 
Ambas foram torturadas pelos assassinos por longas horas e largadas em um matagal para serem engolidas pela terra e, eventualmente, esquecidas. Os dois crimes não possuem ligação entre si além das características macabras e o perfil dos suspeitos principais. Todos eram membros de famílias influentes, seja política ou economicamente.
 
Pouco tempo depois, Jorge Michelini, irmão de Dante, também foi encontrado morto. Jorge foi visto várias vezes na companhia de Lola, mãe de Araceli, no Bar Franciscano. A família Sánchez negou qualquer envolvimento de Lola ou de qualquer membro da família com os Michelini, só os conheciam pelo nome, assim como qualquer outro cidadão de Vitória.
 
O Caso Ana Lídia

Em 11 de setembro de 1973, Ana Lídia Braga, de 7 anos, foi deixada na porta do Colégio Madre Carmen Salles pelos pais, Eloyza Rossi Braga e Álvaro Braga, às 13h50 para ter aulas de reforço. Como sempre, eles se despediram da filha com um beijo e prometeram que a Rosa, a empregada doméstica, buscaria a menina às 16 horas. O colégio ficava na Asa Norte, bairro do Distrito Federal.

Assim como grande parte dos moradores de Brasília em 1973, os pais de Ana Lídia eram servidores públicos. Ambos trabalhavam no Departamento de Serviço de Pessoal, o DASP, e viviam na capital planejada, tomada pelo regime militar, em clima de cidade pequena e muito concentrada em famílias de classe média.

A escola da filha era próxima a casa da família, onde moravam também os irmãos mais velhos, Álvaro e Cristina, com respectivamente 18 e 20 anos. Mesmo Brasília sendo pacata – descrita até como uma cidade dos sonhos por alguns – os progenitores educaram a filha a não falar com, aceitar coisas ou acompanhar estranhos, além de proibi-la sair sozinha na rua. Era o xodó da família.

Ana Lídia. Foto: Reprodução.

O jardineiro da escola viu um homem alto, loiro e magro que segurava um livro vermelho abordando a menina na entrada da escola. Sem alarde ou resistência, a criança saiu com o misterioso homem pelo portão lateral do colégio e mais pra frente entrou num carro com outro, como foi confirmado por outra testemunha que morava em uma ocupação localizada numa estradinha de terra atrás do colégio.

Às 16 horas, Eloysa descobriu não só que a filha sumiu como ela sequer chegou a assistir às aulas de reforço. Procurou desesperada o marido, pediu para Álvaro e a namorada saírem pelo bairro procurando a irmã e às 17 horas já acionaram a polícia sobre o desaparecimento.

Às 19h45, o delegado da 2ª Delegacia de Polícia, José Ribamar Morais, recebeu uma ligação anônima afirmando que estavam com Ana Lídia e queriam 2 milhões de cruzeiros pelo resgate, o equivalente a 250 mil reais. O próprio Ribamar se assustou com a quantia pedida e alertou para o autor da ligação que a família Braga era de classe média e provavelmente não tinha essa quantia disponível.

Não houve mais nenhuma tentativa de contato além de uma carta deixada num supermercado da Asa Norte, endereçada a Álvaro Braga pedindo 500 mil cruzeiros para ter a filha de volta.

Até o fim da noite, policiais encontraram alguns pertences de Ana Lídia espalhados pela região, como seu material escolar e a boneca Suzi que levava consigo na mochila. No dia seguinte, por volta das 13 horas, o agente Antônio Morais de Medeiros estava quase perdendo as esperanças quando encontrou o corpo de Ana Lídia numa cova rasa no cerrado próximo ao Centro Olímpico da UnB.

Ana Lídia estava com as madeixas loiras e onduladas cortadas irregularmente rente ao couro capilar. Parte de seus cílios da pálpebra superior esquerda foram arrancados e ela estava nua, de bruços e com a face virada para o chão. Seu corpo, cheio de hematomas e escoriações, a vagina e ânus destruídos e a perícia ainda apontou que ela fora estuprada após a morte, pela característica dos ferimentos.

No local da desova do corpo, duas marcas de coturno, dois preservativos e um lenço de papel com sêmen foram registrados pelos investigadores. A suspeita é que a menina de 7 anos foi morta entre às 4h e 6h da manhã do dia 12 de setembro por asfixia. O assassino manteve o rosto de Ana Lídia enfiado na terra, obstruindo as narinas e boca, até a menina literalmente engolir terra e não conseguir mais respirar. Cerca de 22 horas depois do desaparecimento, a família recebeu a terrível confirmação de que a caçula foi violentamente assassinada.

O jardineiro do colégio, interrogado pela polícia, reconheceu Álvaro como o homem que veio conversar com Ana Lídia na porta do colégio. De fato, o irmão mais velho da menina tinha as mesmas características do suspeito. Porém, os pais afirmaram que o filho estava no carro com eles na hora em que deixaram a irmã, fato que foi contestado por testemunhas oculares que viram o banco traseiro do carro vazio.

A acusação pesou sobre o jovem por conta de seu suposto envolvimento com drogas na época. Ao ser interrogado, Álvaro disse que só havia fumado maconha três vezes e recentemente havia pedido dinheiro emprestado aos pais para pagar um aborto clandestino da sua namorada, Gilma Ely Varella Albuquerque, grávida de um mês. Nisso, surgiu outro nome no rol de suspeitos: Raimundo Lacerda Duque, que foi apontado ora como um traficante de Brasília, ora como um homem de vida turbulenta por conta do vício em drogas.

O surgimento de Duque nas investigações começou a levar a polícia para ligações mais perigosas. Não se sabe ao certo, mas a suspeita é que Álvaro e Gilma venderam Ana Lídia para Duque e mais um grupo de filhos de políticos influentes do Distrito Federal para quitar dívidas de drogas. Segundo a cronologia do caso, Álvaro levou a irmã até Duque, que a levou até o sítio do senador capixaba Eduardo Rezende, em Sobradinho. Lá, aguardavam o filho do senador, o Rezendinho e Alfredo Buzaid Júnior, filho do Ministro da Justiça, conhecido como Buzaidinho, que supostamente estupraram a menina durante 17 horas e depois desovaram o corpo.

A presença de dois nomes graúdos nas investigações teria sido um empecilho para a polícia por diversos motivos, sendo a ditadura militar o maior deles. Rezendinho, o filho de um senador vice-líder da Arena no Senado, e Buzaidinho, filho do ministro Alfredo Buzaid.

Alfredo Buzaid, o pai, não era qualquer peão em Brasília. Quem estuda ou já estudou Processo Civil, reconhecerá o sobrenome como um importante jurista e o grande “pai” do Código de Processo Civil de 1973, o qual foi o principal colaborador.
 
Em 1968, ajudou a redigir e foi um dos principais defensores do Ato Institucional Número Cinco (AI-5), um conjunto de 17 decretos emitidos pelo governo militar que suspendeu garantias constitucionais, cassou mandatos de políticos, criminalizou movimentos sociais e deu cartão verde para a censura da imprensa, perseguição política de pessoas consideradas “subversivas” e, consequentemente, torturas e mortes sob o comando militar.

Após o AI-5, Buzaid tomou posse do Ministério da Justiça durante o mandato do general do Exército Emílio Garrastazu Médici de 1969 a 1974. Sob o domínio da pasta, o ministro não só combinava com os anos de repressão e violência autorizadas pelo Estado Militar, como o apoiava. Militante apaixonado do integralismo, também discursou no velório de Plínio Salgado em 1975, a quem chamava de “Chefe”.

O suposto crime de Buzaidinho não era só uma mancha no currículo imaculado do ministro, mas também era uma afronta à própria imagem do regime militar como um símbolo de ordem, progresso e moralidade. Não é possível cravar que esse foi o exato motivo, mas a presença de filhos de homens poderosos no rol de acusados no inquérito desacelerou bastante as investigações.

Não foram colhidas provas materiais que poderiam ligar Álvaro, Duque e Buzaid ao crime, e em 1974 uma ordem desceu nas redações proibindo qualquer publicação sobre o caso. Segundo Jávier Godinho no seu livro A Imprensa Amordaçada, a ordem veio no dia 20 de maio através do Departamento de Polícia.

“De ordem superior, fica terminantemente proibida a divulgação através dos meios de comunicação social escrito, falado, televisado, comentários, transcrição, referências e outras matérias sobre caso Ana Lídia e Rosana”

A Rosana referida na ordem é Rosana Ferarri Pandim, uma menina de 11 anos que desapareceu em 1973 em Goiânia quando ia para a escola. Até hoje seu paradeiro é desconhecido. Não se sabe o motivo do Departamento de Polícia também querer vetar reportagens sobre seu desaparecimento.

Os três suspeitos foram chamados para depor e negaram qualquer envolvimento com o assassinato. Buzaidinho não compareceu, mandou seu advogado no lugar para responder ao interrogatório e posteriormente respondeu por Carta Precatória quando foi morar em São Paulo, negando sua autoria no crime. O depoimento-chave que desligou Buzaidinho do crime é do motorista da família, que tempos depois disse que no dia do crime levou o jovem ao médico.

A morte de Ana Lídia chegou a ir ao Tribunal do Júri, mas os suspeitos foram absolvidos por falta de provas em 1975. O crime prescreveu em 1993. Buzaidinho morreu em um acidente de carro em 1975 aos 19 anos quando voltava de Ponta Grossa no Paraná.

Na época, jornalistas e interessados chegaram a que a morte fora forjada para tirar o jovem de circulação, mas a morte foi comprovada em 1986 após uma exumação. Rezendinho deu um tiro no próprio ouvido em 1990, aos 40 anos, no seu apartamento em Vitória. Duque faleceu em 2005 após complicações causada pelo alcoolismo. O único suspeito vivo é Álvaro, que mora atualmente no Rio de Janeiro.

O caso acabou sendo engolido ao longo das décadas, soterrada ao lado de inúmeras denúncias de mortes e torturas sob a aprovação dos militares. Ana Lídia foi morta duas vezes. A primeira, por violência nas mãos de homens. A segunda morte, silenciosa e triste, foi causada pelo regime militar.

Fonte: Excerto da matéria ditadura-militar-vitimas-tortura-impunidade-morte-araceli-ana-lidia

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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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