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Conflito anunciado no oeste da Bahia

Terra, água, gente: Conflito anunciado no oeste da Bahia

A região do Cerrado, que ocupa os chapadões centrais da América do Sul, possui duas grandes bacias de sedimentação geológica. A Bacia Geológica do Paraná, que abriga rochas sedimentares de idades Paleozoicas, até rochas com idades mais recentes. Essas rochas são compostas essencialmente por arenitos e folhelhos, tipos de rochas armazenadoras de água.

Por Altair Sales Barbosa 

Entre as rochas mais recentes se encontram os arenitos da Formação Botucatu e Bauru, de idade Mesozoica situada entre 145 a 65 milhões de anos, que formam o Aquífero Guarani, responsável por mais de 80% das águas da Bacia Hidrográfica do Paraná.

O restante das águas que fluem desse aquífero vão para a Bacia Hidrográfica do Amazonas, como é o caso do rio Araguaia, que nasce em Goiás, e de outros grandes rios que nascem na borda norte da Chapada dos Guimarães e da Chapada dos Parecis, em Mato Grosso.

Ao norte da Bacia Geológica do Paraná, encontra-se a Bacia Geológica do Maranhão-Parnaíba, também constituída por um conjunto de rochas sedimentares, que abriga dois grandes aquíferos. O Aquífero Bambuí, localizado nas galerias calcárias do calcário da Formação Bambuí, de idade que abrange 1 bilhão a 800 milhões de anos antes do presente. Acima desse aquífero encontra-se o Aquífero Urucuia, que se mistura aos sedimentos arenosos da Formação Urucuia.

Esses dois aquíferos são responsáveis pelas águas que vertem para a Bacia Hidrográfica do Amazonas, Bacia Hidrográfica do São Francisco, Bacia Hidrográfica do Parnaíba, além de outras bacias menores, como as do Rio Doce e Jequitinhonha, que recebem águas do Bambuí.

Os aquíferos são os principais responsáveis pelo nascedouro e pela perenização dos rios. Uma pergunta importante a ser colocada é aquela que se refere à alimentação e sustentação de um aquífero.

Um aquífero é um sistema de águas subterrâneas situado abaixo do lençol freático, e possui uma área de recarga, outra área de descarga. Quanto mais reservas tiver, mais áreas de descarga tem um aquífero. Isto significa que mais águas superficiais brotam em vários locais, formando lagoas, córregos e rios.

O que indiretamente alimenta o aquífero são as águas das chuvas que, ao precipitarem em uma área com vegetação nativa intacta, esta absorve mais de 90% dessas águas e as deposita nos sistemas subterrâneos. No caso específico do Cerrado, este papel é muito bem exercido pelo estrato inferior da vegetação, constituído por vegetações herbáceas e gramíneas.

Essas plantas situam-se nos locais que formam os tabuleiros, as campinas e os interflúvios dos rios. Ninguém, a não ser um conhecedor da ecologia do Cerrado, atribui valor a essas plantinhas, que passam despercebidas, porque se apresentam acima do nível do solo, com uma fisionomia raquítica.

Entretanto, abaixo do nível do solo, um universo de tubérculos, troncos, esponjas e milhões de raízes profundas, está associado a essas plantas. Isto é fruto da adaptação ao fogo, mas é esse invisível complexo subterrâneo que suga as águas das chuvas, para alimentar os aquíferos. Associa-se a isso o fator de estarem nas áreas cerratenses mais planas, onde o escoamento pluvial praticamente não existe.

Outra coisa importante a dizer sobre estes três grandes aquíferos é que nas profundezas artesianas eles se interligam formando um sistema único.

Em 1972, no Primeiro Simpósio sobre o Cerrado, já chamávamos a atenção para a preservação do chapadão ocidental da Bahia até o limite com as cristas do Bambuí, hoje limitando com os Estados do Tocantins e Goiás, pois as águas subterrâneas naquela época ali existentes seriam uma grande reserva de água potável para o Brasil. Mas não foi isso que aconteceu.

Por serem consideradas erroneamente “terras devolutas” o governo federal as repartiu para grandes empresários, nacionais e internacionais, que recebiam no mínimo 25.000 hectares, e a única coisa que deveriam dar em troca era o desmatamento da região. E assim, por falta de conhecimento e planejamento adequado, começou essa nova ordem territorial, que em pouco tempo traria um quadro irreversível de prejuízos ambientais e sociais para a região.

No caso específico dos alimentadores do rio São Francisco, alguns nascem em Goiás, como é o caso da Lagoa Feia, no município de Formosa, que contribui com vários afluentes para o rio Paracatu. Outros, nascem no Jalapão, no Estado do Tocantins, como é o caso do rio Preto, mas a grande parte nasce no Espigão Mestre, início das campinas, baianas, mineiras e piauienses.

Pois bem, com a implantação deste novo modelo de organização territorial, iniciou-se o maior processo de desmatamento no Brasil, feito a correntões. Foi só uma questão de tempo para que as nascentes, não só dos córregos, mas também dos rios, começassem a migrar das partes mais altas

para as mais baixas, e alguns córregos secassem totalmente.

Por que isto aconteceu? Porque sem a vegetação nativa a água da chuva não penetrava mais como anteriormente e não recarregava os aquíferos, de modo que estes foram baixando de nível, num processo contínuo. Embora o índice pluviométrico permanecesse o mesmo.

O curioso nesta situação é que ainda não havia tecnologias para a correção completa dos solos regionais, por isso as plantações iniciais com eucalipto e pinheiros não deram certo.

Tempos depois é que surgiram as tecnologias que permitiram o plantio de várias espécies, utilizando-se, para isto, calcário específico, muito adubo químico e uma quantidade imensa de agrotóxicos.

Muitos proprietários abandonaram as iniciativas ou venderam as terras para outros grupos de empresários que, com a utilização de novas tecnologias, foram-se apropriando de áreas ainda maiores. Essas tecnologias, associadas à época à fartura de água, logo permitiram o avanço das fronteiras que cada vez produzia mais e despertava a ganância de muitos produtores que foram diversificando suas culturas.

Com a expansão da exportação, esse processo tornou-se uma corrida incontrolável, atraindo para o local um capital dinâmico e predador, com um discurso de enriquecimento fácil e de fartura de empregos. Ambos os fatores não aconteceram, primeiro porque os grandes proprietários, que não conheciam a região, expulsaram das terras as pessoas que tradicionalmente as usavam sazonalmente para a criação de animais bovinos e equinos.

Num segundo momento, a mecanização tirou do campo aquelas pessoas que acreditavam num emprego duradouro. Os empregos tornaram-se sazonais e eventuais, sem carteira assinada e sem garantia.

Num terceiro momento, comunidades existentes nos Gerais, que praticavam a agricultura familiar, foram totalmente desestruturadas. Este fenômeno gerou uma situação esdrúxula, pois os camponeses, ao serem expulsos das terras, foram-se agregando ao redor de postos de combustíveis e serviços, implantados ao longo das rodovias para dar sustentação aos novos empreendimentos.

Os homens trabalhavam irregularmente em qualquer tipo de serviço. As mulheres mais vividas trabalhavam como domésticas e as mais novas foram-se prostituindo, nos dinâmicos postos de serviços que da noite para o dia se transformavam em verdadeiros polos urbanos.

Só para citar o exemplo do oeste da Bahia, vejam os casos da cidade de Luiz Eduardo Magalhães, que há bem pouco tempo era só um posto de gasolina, de Roda Velha, que era somente um ponto de parada, ou de Rosário do Oeste, que até ontem era somente Posto do Rosário, e por aí vai.

Portanto, os rios foram secando em função do desmatamento, o desaparecimento de córregos menores e lagoas já vem acontecendo desde o início da década de 1980. Eu mesmo levei à região várias emissoras de televisão de nível nacional e internacional, alertando para a situação. Foram pelo menos 16 programas a nível nacional e internacional.

O grande poeta, escritor, gênio e músico Elomar Figueira de Melo já alertava através de suas crônicas musicais o que estava acontecendo no Sertão-de-Dentro, como ele denomina os Gerais, mas os políticos do litoral nunca se atinaram.

Outra coisa importante a salientar é que as cidades e dezenas de povoados ao longo do rio Corrente foram o berço de pessoas de expressão internacional, intelectualmente falando, como o escritor Ozório Alves de Castro, que inspirou Guimarães Rosa; como o escritor, educador e cientista político Clodomir de Morais, o único brasileiro a desfilar em carro aberto em Moscou com Yuri Gagarim, além de criar várias Universidades mundo afora; como o Mestre Guarany criador das imortais carrancas do São Francisco; ou como Raimundo Sales de Correntina, exímio inventor.

Essas pessoas, só para citar algumas, aprenderam observando os rios que passavam. Por isso o rio para essa imensa população é muito mais sagrado do que se imagina. E a manifestação de revolta do povo de Correntina já estava escrita nas estrelas, como nos canta Tetê Espindola.

E, se providencias não forem tomadas no sentido de devolverem à população o pouco que lhes resta de mais sagrado, outras manifestações semelhantes acontecerão nas regiões do Cerrado, pois todos nós padecemos do mesmo mal.

Outra coisa a frisar: não é a falta de chuvas que provoca tal situação, e sim o rebaixamento dos aquíferos. Além do mais, as águas das chuvas que precipitam encontram o solo desprotegido, fazendo com que o escoamento seja mais rápido e o transporte de sedimentos aumente de forma desproporcional, avolumando-se o assoreamento.

É o início do fim…

E muitos me perguntam o que tem que ser feito agora? Para responder essa questão, teria que enumerar vários pontos, o que tomaria muito espaço, que não é este o caso no momento, mas construir um caminho para fortalecer ou implantar uma educação criativa e a pesquisa que leve em consideração as vocações regionais pode ser a agulha da bússola.

O prejuízo já ocorrido, este é irreversível, dentro dos parâmetros de conhecimento que atualmente possuímos.

Foto: Thomas Bauer/CPT Bahia

Altair Sales Barbosa –  Doutor em Antropologia. Pesquisador do CNPQ


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

 
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