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Canção para Thiago de Mello: Tetê e Alzira, suas danadas

Canção para Thiago de Mello: Tetê e Alzira, suas danadas

Na terça, 30 de março, Thiago de Mello completou 95 anos. Celebramos juntos vários aniversários seus, o primeiro deles em 1968, numa semiclandestinidade no Rio de Janeiro, sempre com uma canção…

Passa pra cá, Tetê, vamos acabar de amor”. (Autor anônimo. De Manuel Bandeira para Thiago)

Por José Ribamar Bessa Freire

O outro ocorreu no exílio em Santiago do Chile, em 1970. Foi um cumpleaños supimpa, quando sua filha Isabella, minha afilhada então com dois meses de vida, foi apresentada aos amigos chilenos.

Cantamos então a mesma canção de autor anônimo, que lhe foi ensinada pelo poeta Manuel Bandeira. Ela faz parte da tradição oral e, que eu saiba, nunca foi gravada. Nem o Google, metido a sabichão, registra a sua existência. Tornou-se o “hino nacional” de cada reencontro nosso.

Nós voltamos a cantá-la com outras músicas no aniversário de 80 anos, em um restaurante de Brasília, num coro com sua irmã Cecéu e sua filha Isabella, depois do jantar do qual participaram umas trinta pessoas.

Foi após a homenagem da Câmara de Deputados a Thiago – iniciativa da parlamentar Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) – com exposição dentro do Congresso Nacional de um painel gigantesco contendo na íntegra o poema “Os Estatutos do Homem”, escrito em 1964, mas que logo ganharia o mundo, traduzido em dezenas de línguas.

Tetê recebeu nova cantada em Porto Velho (RO), em 2009, documentada pelo jornalista Altino Machado, na 7ª edição do Festival de Cinema Ambiental da Amazônia (Fest Cineamazônia), organizado por Fernanda Kopanakis e José Jurandir da Costa.

Thiago e eu havíamos participado de uma mesa redonda de Solidariedade entre os Povos da América, contando histórias do exílio. Ali, na “hora do recreio”, apareceu toda faceira a danada da Tetê que nunca nos abandonou, nem mesmo depois da chegada da ciumenta Alzira.

A ALZIRA PEGOU

Faz poucos anos que a deslembrada Alzira entrou na vida de Thiago. Fui logo informado por ele, que me telefonou bem cedinho, falando em linguagem cifrada:

– Jura, o Japonês descobriu que a Alzira me pegou.

A voz embargada sugeria que a coisa era séria. Quando pedi detalhes, Thiago esclareceu as identidades daqueles dois personagens. Alzira era como ele chamava na intimidade a doença de Alzheimer que começava a dar os primeiros sinais. E Japonês era o neurologista Massanobu Takatani, seu médico, que a diagnosticou.

Minha reação foi uma sonora gargalhada para esconder a tensão provocada pela notícia. Disse-lhe que não me importava de pegar a Alzira, se pudesse chegar aos 90 anos e contasse com a competência médica do doutor Takatani, que conheço bem por haver cuidado e suavizado a vida da minha mãe.

– Te telefonei só para ouvir essa risada – falou o poeta, aliviado.

Numa escada com dez degraus, o pé da Alzirinha estava no primeiro, conforme o diagnóstico clínico do neurologista. Ou seja, embora causasse lapsos na memória recente, a memória antiga do poeta permanecia intacta, o que ficou comprovado na última vez que flertamos com a danada da Tetê.

Foi em novembro de 2018. Com o publicitário Mauro Freire de Souza e a equipe da expedição Amazônia das Palavras, visitamos Thiago em sua casa, em Manaus, para convidá-lo a comparecer no dia seguinte a uma homenagem que lhe seria prestada.

Nem dei boa noite. Da soleira da porta do apartamento já fui cantando:

– Passa pra cá, Tetê. Vamos acabar de amor. Eu não te dou meu coração, porque é preciso arrancar.

O rosto do poeta se transfigurou e sua memória se iluminou numa cena presenciada por Thiago Filho e a fiel Pollyanna Furtado, poeta e professora de literatura, tudo registrado por José Jurandir para o filme Amazônia das Palavras que será lançado brevemente. Lá de dentro, o poeta fez coro comigo:

– E eu arrancando, Tetê. Eu sei que vou morrer. E eu morrendo já não posso mais te amar. Passa pra cá, Tetê. Vamos acabar de amoooooor.

A sombra da Alzira fazia escuro, mas a gente cantava.

DESLEMBRANÇAS

Três anos se passaram. Agora as comemorações pelo aniversário de Thiago se estenderam ao longo do mês de março por iniciativa do Conselho Municipal de Política Cultural (Concultura) presidido por Tenório Telles. A Exposição Thiago de Mello 95 anos de vida, poesia e amor por Manaus está abrigada num portal com a vida e obra do poeta, versos e poemas, fotos, entrevistas e homenagens de familiares, amigos e admiradores. Entre elas – era inevitável – gravei sozinho a Tetê com minha voz de cantor de banheiro e direito a desafinar no final.

Thiago esquece eventos recentes como o encontro ocorrido em 2018, quando depois de cantarmos a Tetê o convidamos para ser homenageado no auditório do Centro Estadual de Tempo Integral Gilberto Mestrinho (CETI) no bairro de Educandos. No dia seguinte, ele de nada lembrava. Ficou em casa. Foi representado por seu filho com Ana Helena, o cantor Thiago Thiago de Mello, duas vezes Thiago, que apresentou suas músicas.

Quarenta anos antes, Maria Júlia, irmã do poeta, nos convidou para almoçar um tambaqui na brasa. Estavam lá os pais de ambos:  dona Maria e seu Pedro. Ao observar o olhar perdido do pai, o poeta comentou que o velho Pedro, que convivia há tempos com a Alzira, “de vez em quando deixava a memória voar para bem longe como um passarinho”.

Ignoro o quão alto já voou a memória do querido poeta e se o tratamento precoce estabilizou a evolução da doença, fazendo o bloqueio de outras enfermidades. Não sei se a Alzirinha é agora Alzirão. No entanto, algo ficamos devendo a ela: o poeta esqueceu quem preside o país e não sabe que o coronavírus já matou mais de 305 mil brasileiros, incluindo aí eleitores do Cloroquinado, cujo negativismo, incompetência e inépcia contribuíram para expandir a pandemia.

A Tetê, que não é ciumenta, convive numa boa com a Alzira, que felizmente nos permite ter Thiago ao lado de nós. Localizada na parte do cérebro que armazena a memória remota, Tetê permanece incólume. Por isso, nesta terça, vou desejar feliz cumpleaños e cantar por telefone com o poeta:

– Passa pra cá, Tetê, vamos acabar de amooooor.

Acho que o Thiaguinho devia gravá-la com sua bela voz para seguirmos compartilhando o resto de lembrança que nos fica, antes que Alzirão varra a Tetê da face da Terra.

José Ribamar Bessa Freire. Professor Universitário. Escritor. Crônica publicada em seu blog www.taquiprati.com.br em abril de 2021. 

 


 
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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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