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Faz escuro, mas eu canto, mesmo desafinado?

Faz escuro, mas eu canto, mesmo desafinado?

Thiago? Onde estás? Estou do outro lado do rio! Marilza de Mello Foucher

Por José Ribamar Bessa Freire

– Não podemos ir juntos – disse Thiago de Mello: – Vou na frente, você fica aqui, espera um pouco e depois me segue e quando chegar lá, fingimos que não nos conhecemos.  

Ele atravessou a rua, eu fiquei.

Estávamos os dois num bar em Jaguarão, na fronteira. Era uma tardinha de outubro de 1969. Perseguidos pela polícia, fugíamos para o exílio, sem passaporte. Para entrar no Uruguai e no Chile, bastava a carteira de identidade. Ali, no hotel, não podíamos ser vistos juntos. Separados, se um fosse preso, o outro podia se escafeder.

Fiquei no bar fazendo hora. Depois, me dirigi ao hotel na rua das Portas. Lá, me pediram os documentos. Naquela época, a carteira de identidade não era unificada nacionalmente. Cada estado tinha a sua, a do Amazonas chamava a atenção por sua singularidade. Era um “livro”, parecia um passaporte, só que com capa amarela.

Tratava-se, na verdade, de documento com toda a árvore genealógica e afetiva do cidadão: nomes de pai, mãe, avós e, se duvidar, de minhas nove irmãs, irmãos, sobrinhos e até dos vizinhos lá do meu Beco. Exagero, evidentemente: não lembro se mencionava o bairro de Aparecida, que é tão fundamental pra minha identidade.

O recepcionista, separando as sílabas e exibindo seus dentes de ouro, escancarava diante dos hóspedes a identidade que queríamos esconder.

– “Não a-cre-di-to !!!   Durante 25 anos nesse hotel, nunca vi um amazonense. Agora, em menos de duas horas, vejo dois de uma só vez.”

O gaúcho achava que era mesmo uma coincidência ex-tra-or-di-ná-ria.

TETÊ

É.  Deu azar. O hotel inteiro – aparentemente o único de Jaguarão – parou pra nos ver. Foi um escândalo. No meio da confusão, caminhando pelo corredor, surgiu o poeta, vestido como sempre de branco. O recepcionista, consultando sua ficha, me perguntou:

“Você conhece Amadeu Thiago de Mello?

Neguei. Lá fora, um galo cantou três vezes. O gaúcho disse, então, que fazia questão de fazer as apresentações. 

Ficamos os dois, ali, diante de hóspedes atônitos, apertando a mão um do outro, com cara de égua, de devoto de Santa Etelvina, de clandestinos amadores, unidos por uma mesma identidade, evidenciando que ninguém é amazonense impunemente. O poeta, habilmente, deu a volta por cima, disse que era um prazer conhecer alguém de sua terra e me convidou para jantar com ele no restaurante do hotel.

Dessa forma, pelo menos tínhamos um motivo para rir de nós mesmos, além de um álibi para planejar o que faríamos. No dia seguinte, cruzamos, andando, a ponte sobre o rio Jaguarão. Passei primeiro. O poeta, logo depois. Sua mulher, Lurdinha, grávida de Isabella, já nos esperava em Montevidéu, de onde continuamos viagem para o Chile.

Já contei essa história, recupero-a agora quando o poeta nos diz adeus. Não tenho forças de cantar na escuridão de sua partida. Basta as vezes em que cantarolamos juntos sempre a mesma canção para celebrar seus aniversários, o primeiro em 1968, numa semiclandestinidade no Rio. A outra vez no exílio em Santiago de Chile, em 1970.

Foi um cumpleaños supimpa, quando sua filha Isabella, minha afilhada, com dois meses de vida, foi apresentada aos amigos chilenos. Cantamos então a canção de autor anônimo, que lhe foi ensinada pelo poeta Manuel Bandeira. Ela faz parte da tradição oral e, que eu saiba, nunca foi gravada. Nem o Google, metido a sabichão, registra a sua existência.

Sua letra é simples:

Passa pra cá Tetê, vamos acabar de amor. Eu não te dou meu coração, porque é preciso arrancar, e eu arrancando, Tetê, eu sei que vou morrer. E eu morrendo já não posso mais te amar.

ALZIRA

Nós voltamos a cantar a Tetê no aniversário de 80 anos, em um restaurante de Brasília, num coro com sua irmã Cecéu e Isabella, depois do jantar do qual participaram umas trinta pessoas. Foi após a homenagem da Câmara de Deputados a Thiago – iniciativa da parlamentar Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) – com exposição dentro do Congresso Nacional de painel gigantesco com o poema “Os Estatutos do Homem” traduzido em dezenas de línguas.

Tetê recebeu nova cantada em Porto Velho (RO), em 2009, documentada pelo jornalista Altino Machado, na 7ª edição do Festival de Cinema Ambiental da Amazônia (Fest Cineamazônia) organizado por Fernanda Kopanakis e Jurandir da Costa. Thiago e eu havíamos participado de uma mesa redonda de Solidariedade entre os Povos da América, contando histórias do exílio. Ali, na “hora do recreio”, apareceu toda faceira a danada da Tetê que nunca nos abandonou.

A última vez que cantamos a Tetê foi em novembro de 2018, na presença de Pollyana Furtado e do filho Thiago Thiago de Mello, tudo filmado para o projeto “Amazônia das Palavras”. Entramos no apartamento em Manaus. Antes de dar boa noite entoei lá da porta: – Passa pra cá, Tetê.   

Thiago abriu um sorriso e continuou: – Vamos acabar de amoooor.

Nem a deslembrada e ciumenta Alzira foi capaz de fazê-lo esquecer a Tetê.

Eu temia que isso ocorresse, quando o poeta me telefonou um ano antes, falando em linguagem cifrada:

– Jura, o Japonês descobriu que a Alzira me pegou.

A voz embargada sugeria que a coisa era séria. Quando pedi detalhes, Thiago esclareceu as identidades daqueles dois personagens. Alzira era como ele chamava na intimidade a doença de Alzheimer que começava a dar os primeiros sinais. E Japonês era o neurologista Massanobu Takatani, seu médico, que a diagnosticou.

Minha reação foi uma sonora gargalhada para esconder a tensão provocada pela notícia. Disse-lhe que não me importava de pegar a Alzira, se pudesse chegar aos 90 anos.

Te telefonei só para ouvir essa risada – falou o poeta, aliviado.

CHABUCA

A música, não essa, mas outra, foi cantada em Lima, em 1974, desta vez por uma profissional. Na época, Thiago de Mello vivia exilado na Alemanha. De passagem pelo Peru, teve um piripaque no coração. Foi internado às pressas. Corri pra clínica. Lá, me deparei com um senhor de bigode de vassoura, era o poeta uruguaio Mário Benedetti. Ali, na maca, ofegante, o poeta amazonense nos apresentou, no meio de uma confusão danada dentro da Clínica Italiana.

Enquanto se realizavam procedimentos de praxe para a internação, ficamos os três à espera do cardiologista. Apareceu, então, um médico e, ali mesmo, na portaria, colocou a aparelhagem de oxigênio no Thiago, que passou a respirar mais aliviado. Instantes depois, uma enfermeira alertou:

– “Doutor, foi um equívoco. Seu paciente não é esse, é o outro na sala ao lado. Esse daí é do doutor Fulano”.

Acreditem, juro que é verdade: o esculápio – tinha cara de esculápio – tentou retirar os aparelhos. Benedetti e eu ameaçamos sentar a porrada nele. Seguramos as pontas, até o doutor Fulano chegar.

O quarto do Thiago dava direito a acompanhante. Nós dois nos revezávamos, velando o amigo. A troca de turno era sempre um momento de conversa prazerosa. Numa madrugada, depois do show em uma peña, nada mais nada menos que a cantora Chabuca Granda deu o ar de sua graça, acompanhada de seus músicos. Quem tinha peito para barrá-la? O porteiro só faltou beijar os pés dela, deixando-a entrar.

Aí, em hora inapropriada, rompendo o silêncio obrigatório dentro do hospital, Chabuca fez serenata para Thiago. Derramou ‘lisuras’ e, com sua voz rouca e sensual, deu uma ‘canja’ para os doentes, cantando Fina Estampa’, naquela quase ‘mañanita alegre, con luz de luna y de sol’. No final, deu seu diagnóstico, olhando o amigo poeta, cujo coração estava sob cuidados médicos: 

“Eso te pasa por tener un corazón muy grande”.

FAZ ESCURO, MAS EU CANTO

Palácio Rio Negro, na sexta (14 de janeiro), o presidente do Conselho Municipal de Cultura, Tenório Telles, crítico literário, lembrou a importância de Thiago para a poesia brasileira e latino-americana e recitou vários poemas do escritor amazonense. Thiago Thiago de Mello cantou “Faz Escuro, mas eu canto” e outras músicas de autoria do seu pai. O enterro ocorreu no dia seguinte (15) no Cemitério São João Batista.

Agora, este meu canto desafinado celebra Thiago, que subiu o boulevard Amazonas e foi sepultado no sábado (15) no cemitério São João Batista. Ai, Tetê, “eu morrendo já não posso mais te amar“. Como no poema de César Vallejo, que ele traduziu, ao atravessar o rio Andirá, “su cadáver estaba lleno de mundo”. Vou esperar mais um pouco, mas quando chegar lá, o galo não precisa cantar. O porteiro Pedro saberá que somos amigos. 

P.S. – Num texto poético e generoso no grupo Taquiprati do Zapp, Isabella agradece minha amizade com seu pai. Embora tenha cuidado dela de “chiquitita”, fazendo jus ao meu apelido, tenho dívida eterna com Thiago, de quem sempre recebi apoio, honrando nossas raízes indígenas de reciprocidade.  Obs: Versão impressa no Diário do Amazonas.

José Ribamar Bessa FreireProfessor. Escritor. Cronista e gestor do site www.taquiprati.com.br, onde esta matéria foi publicada originalmente, em português e em espanhol, em homenagem ao grande poeta Thiago de Mello. Membro do Conselho Editorial da Revista Xapuri.  


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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