Foi num dia como esse que nasceu mais uma menina num lar de cinco. A sexta. Eu.
Para Dondete, Sô Vico, manas, mano, filho, filhas, neto, netas e para meu amor!
Por Iêda Vilas Bôas
Sou a caçula das mulheres (a sexta),
Depois de mim,
Veio o tão esperado filho homem
Do Seu Vico e D. Odete.
Casal de lavradores dos confins de Minas.
Um lugar espraiado
Que fica espiando a junção amorosa
E respeitadora dos rios Verde e Grande.
Na verdade, sou goiana e formosense
De todo o meu coração – inteirinho,
Mas mineira de nascimento.
Naquele lugarzinho verdejante e acolhedor,
Nasci e cresci.
Passei a perceber do mundo,
e a conhecer suas gentes,
Tiritando de medo, ouvidos de teiú
Não perdia uma conversa de gente grande
Ouvindo o vento assoviando na janela
E arrepiando-me de medo
Dos “causos” de Seu Vico.
Era menina curiosa e sensível
Sentindo os sabores todos da vida,
Os cheiros deliciosos e rotineiros da cozinha,
Os passos rápidos de Dondete,
Tudo a seu tempo e na sua hora.
Rio grande. Hora grande.
Dia grande. Vida grande e boa.
Chega-me à memória
O farfalhar das sobressaias.
Saudade – muita de minha mãe!
Com ela aprendi a amar a poesia,
A prestar devoção aos poetas.
E também aprendi as primeiras letras.
Sem saber, minha mãe
Era a mais pura construtivista que conheci.
Giz, para quê?
Se os pedacinhos cortados da mandioca brava
Escreviam pelo chão rude, de cimento grosso
E a filharada, em quadrados separados, Copiando e treinando a lição.
Uma ajudando as outras. Cooperativismo, aprendi então.
A matemática era mais difícil
E custava a entrar em minha cabeça de vento
que só queria saber de Casimiro de Abreu e Olavo Bilac.
Então a leira de jiló servia de tabuada.
Uma perguntava e a outra mana respondia.
Tabuada do 2. Tabuada do 3.
Nessa lição prática de solidariedade,
aprendi o início dos segredos das contas.
Pouco evoluí nesse quesito.
Os números sempre se embaralham à minha vista,
na minha mente!
Dondete e seus muitos preceitos.
Um deles, até por demais permissivo:
“Ter vergonha é roubar e não poder carregar!”
Na minha bobice
de criança roceira
tentava entender o antagonismo entremeado
nas palavras daquela guerreira.
Cismava comigo. Como pode? Inútil!
Adiante, já possuidora de um vernáculo mais apropriado,
perguntei à Dondete o que ela queria dizer com palavras tão fortes…
E ela com toda sua praticidade respondeu:
– Filha, vá à luta. Não se envergonhe de nada.
Tudo o que é feito e pensado, se é por boa causa, tem seu valor.
Essa máxima tem me valido em momentos de tropeços.
Nasci, cresci e vivi nesse lar
de pessoas letradas pela perseverança e idealismo.
Aprendi com meu pai Sô Vico
a valorizar o estudo e o uso social da língua escrita.
Aprendi também a honrar compromissos,
a achar graça da vida
e a contar causos.
Sigo este ofício, também conto causos,
mas muita falta faz a sonora risada de meu amado pai.
O meu lar foi espaço
de múltiplas possibilidades.
Por sorte,
por brincadeirinha mesmo do senhor destino,
Em minha modesta casa,
apareceram todos os prováveis e improváveis infortúnios
Desse e de outros mundos.
E minha mãe, ali. Firme.
Aroeira. Pau-pereira.
Vilas Bôas de primeira.
A mais velha acometeu-se de tétano.
À custa de um bicho de pé mal retirado.
Curou-se com remédio dado aos cavalos.
A seguinte sofreu de mal Semioto (existe?),
popularmente essa doença
era chamada de cabeça-d’água
E ainda, a coitada – gaguejava.
Esta mana, tão querida,
encantou-se e deixou bela prole
para se fazer presente em nossas vidas.
A terceira, criada mais na barra
da saia da avó materna,
livrou-se de males piores,
sobrando-lhe todas algumas surras e doenças
para as quais, hoje, felizmente, existem vacinas.
A quarta, não teve tanta sorte.
Teve paralisia infantil.
Quanta dificuldade para meus pais
sem recursos financeiros e nem medicinais
cuidarem da menina inteligente,
que um dia,
depois de uma febre morrente,
não conseguiu mais andar.
Naquele dia, e por muitos outros,
a pequena espoleta não desceu da cama.
Para a pequenina andar de volta
valeram-se de conselhos da sabedoria popular.
Muito sebo de carneiro, muita gordura de cobra cascavel
pelo corpinho judiado da menina.
E muitas reses sacrificadas
para que a garotinha fosse colocada
dentro do bucho quente do bicho morto
E assim, suas juntas amolecessem.
Creio que essas medidas contribuíram um tanto.
Mas a postura de Dondete e Sô Vico
para que todos aceitassem a menina
Sem restrição alguma é que a fez ser uma mulher linda. Uma
pessoa-estrela.
Mas as adversidades não terminaram por aí.
Eram muitas as filhas…
E ainda tinham mais duas para nascer!
A quinta filha queimou-se numa “caieira” de mandioca.
O fogo nas manivas, poderoso e assaz,
escondeu-se por baixo de uma camada de cinza
e a mana entrou nessa armadilha.
Outra labuta! Outra vitória!
Aí… Nasce mais uma menina.
A sexta. Eu!
As outras, revoltadas, não aceitaram a pequena
e ameaçavam de jogá-la no rio.
Dondete muito sábia tratou de dizer que eu era o “Joãozinho”.
Fui salva de ser jogada no rio e amainei o coração das manas – para sempre!
Como sempre fui falante e espevitada,
conquistei meu espaço nessa balbúrdia.
A minha doença maior, era uma inquietação interior
que se amortiza aos poucos,
com o passar do tempo e a chegada da idade.
De resto, dei trabalho não por doenças,
mas por mau comportamento.
Era menina mau exemplo.
Inquieta. Fuçadeira, mexelona.
Como dizia minha mãe cheia de orgulho:
– essa aí, dá nó em goteira e esconde as pontas.
Dei-lhe também muito carinho,
muitas risadas e alegrias!
Por fim, chegou o menino, o sétimo filho.
Se fosse mais uma menina seria, por certo, Lobisomem,
Mas a complacência divina
Realizou o antigo desejo do casal.
O menino teve o corpo estropiado
Por quedas de cavalo, por acidente de carro
E pasmem! Um berne que se desenvolveu
entre o olho e pálpebra.
Quando fizeram a cirurgia
Para a retirada do verme, este já tinha cabelo.
E só não posso mostrá-lo
Porque se perdeu em alguma aula de ciência,
Onde era sempre sucesso.
Meu irmão ficou estrábico,
mas enxerga que é uma beleza!
Posso dizer que nasci, cresci e vivi
Fui aceita, fui feliz
e achava encanto onde não havia
Virei mãe, mulher, professora, poeta!
Entremeio às diferenças
E adversidades da minha vida
É que aprendi a ser forte,
A ir sempre em frente
Tendo por rumo o norte memorial,
Dos sensíveis e dos sonhadores.
Na força prática da vida
Tomei para mim, a parte mais leve
Escolhi a literatura, a arte, o sentimentalismo,
A poesia, o sonho como meu guia!
Mas a roda da vida foi rodando…
O tempo foi girando e tornei-me moça
(não a mais bonita da escola),
Mas a mais interessante – sem modéstia!
Quando eu me magoava
Com as faltas de atributos físicos
Perguntava ao meu amado pai:
Sô Vico, sou feia ou bonita?
Este, com a sua mansidão terna e rotineira
Respondia entre risos:
Não é feia nem bonita, você é igual chita!
Minha mãe era mais prática
Mais sabida e me dizia:
Você não é feia e nem bonita, é exótica!
Fui mesmo e sou exótica.
Gosto da noite sem lua ou com ela.
De prosear sem parcelas…
De acreditar na amizade, no poderio da irmandade.
De lutar, quixotescamente, pelas árvores,
Pelos índios, pelos livros, pelas minorias,
Exótica
Assim me defino ainda hoje.
Leio muito,
Escrevo o que normalmente
Não tenho coragem de dizer…
Estudo, aprendo, ensino
Por todos meus anos vividos.
Tenho meus preciosos tesouros:
Meus rebentos – duas meninas e um rapaz
que não se parece fisicamente comigo,
Entretanto, ossos, músculos, sangue
e sentimentos são todos meus.
Os mesmos hábitos, as mesmas manias,
a mesma sensibilidade poética e olha,
Escreve mil vezes melhor que eu.
Sempre digo que se eu tiver que descer ao inferno
é ele quem me acompanhará.
Por sua coragem e conhecimentos do oculto.
A minha moça – filha do meio- me enche de orgulho:
estudiosa, acadêmica, feminista e linda
E ainda, deu-me outro filho de presente:
o seu amor e companheiro – Seja sempre bem-vindo Alexandre Thomaz!
A filha mais velha,
foi na base da experiência, erro e acerto.
Estou tentando acertar até hoje.
Eu a amo e acho que ela não tem certeza disso.
Importa disso tudo é que
ela me trouxe mais gente pro meu espaço:
O Netinho, meu xodó.
A menina dos olhos mais lindos que já fitei…
A Laurinha.
E a pessoinha mais carinhosa
e com resposta e perguntas pra tudo:
A Maria Carolina, minha menina Carolina.
Tenho também uma família grande,
Que às vezes, não se reúne em festas…
Mas nas doenças… é certeza certa!
Tenho muitos amigos e amigas
E parceiros e parceiras
E companheiros e companheiras
E um grande amor, porque afinal,
Como poeta, também canto
O bem do amor.
A cada dia
Descortina-se, para mim,
Um horizonte sem fim
Nesse mundão de Meu Deus!
Fotos: Arquivo pessoal da autora.