E nasci para escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por quê, foi esta que eu segui.
 
Talvez porque para as outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever o único estudo é mesmo escrever.
 
Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E no entanto cada vez que vou escrever, é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estreia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever.
 
Quanto a meus filhos, o nascimento deles não foi casual. Eu quis ser mãe. Meus dois filhos foram gerados voluntariamente. Os dois meninos estão aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimentos e angústias, eu lhes dou o que é possível dar.
 
Se eu não fosse mãe, seria sozinha no mundo. Mas tenho uma descendência e para eles no futuro eu preparo meu nome dia a dia. Sei que um dia abrirão as asas para o voo necessário, e eu ficarei sozinha. É fatal, porque a gente não cria os filhos para a gente, nós os criamos para eles mesmos. Quando eu ficar sozinha, estarei cumprindo o destino de todas as mulheres.
Sempre me restará amar. Escrever é alguma coisa extremamente forte mas que pode me trair e me abandonar: posso um dia sentir que já escrevi o que é o meu lote neste mundo e que eu devo aprender também a parar. Em escrever eu não tenho nenhuma garantia.
Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer. Amar não acaba. É como se o mundo estivesse à minha espera. E eu vou ao encontro do que me espera.
Espero em Deus não viver do passado. Ter sempre o tempo presente e, mesmo ilusório, ter algo no futuro.
O tempo corre, o tempo é curto: preciso me apressar, mas ao mesmo tempo viver como se esta minha vida fosse eterna. E depois morrer vai ser o final de alguma coisa fulgurante: morrer será um dos atos mais importantes da minha vida. Eu tenho medo de morrer: não sei que nebulosas e vias lácteas me esperam. Quero morrer dando ênfase à vida e à morte.
Só peço uma coisa: na hora de morrer eu queria ter uma pessoa amada por mim ao meu lado para me segurar a mão. Então não terei medo, e estarei acompanhada quando atravessar a grande passagem. Eu queria que houvesse encarnação: que eu renascesse depois de morta e desse a minha alma viva para uma pessoa nova.
 
Eu queria, no entanto, um aviso. Se é verdade que existe uma reencarnação, a vida que levo agora não é propriamente minha: uma alma me foi dada ao corpo. Eu quero renascer sempre. E na próxima encarnação vou ler meus livros como uma leitora comum e interessada, e não saberei que nesta encarnação fui eu que os escrevi.
Está-me faltando um aviso, um sinal. Virá como intuição? Virá ao abrir um livro? Virá esse sinal quando eu estiver ouvindo música?
Uma das coisas mais solitárias que eu conheço é não ter a premonição.
Texto extraído do livro “Aprendendo a viver”, Clarice Lispector. (Crônicas). Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2004. Foto de Capa: Guia do Estudante. 
 

Block

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!