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Massacre de Guapoy: os Kaiowá e o Tamanduá Cego

Massacre de Guapoy: os Kaiowá e o Tamanduá Cego

Esse país, que completa 200 anos de Independência, se mantém vergonhosamente dependente de práticas colonialialistas seculares. ..

Por José Bessa Freire

Deixou de ser colônia, mas permanece comandado pela colonialidade. Continua matando indígenas para defender a usurpação das terras ancestrais, como ocorreu na sexta (24 de junho), em Amambai (MS), quando policiais militares assassinaram Vitor Fernandes, de 42 anos, e feriram dez kaiowá desarmados, entre eles um menino e dois jovens de 14 e 15 anos, em estado grave.

Os Kaiowá tentavam retomar seu território tradicional, hoje ocupado pela fazenda Borda da Mata da empresa VT Brasil, de Waldir Cândido Torelli, um dos 500 maiores devedores da União, com dívida ativa acumulada em R$ 493,2 milhões. Torelli, réu na Operação Juruparifoi investigado, em 2013, por formação de quadrilha, desmatamento e extração ilegal de madeira.

O Massacre de Guapo´y – denominação dada pela Assembleia Geral do Povo Guarani Kaiowá (Aty Guasu) – foi celebrado pelo secretário de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul, Antônio Carlos Videira, ex-delegado de Polícia em Dourados. O sem-vergonha culpou os Kaiowá por terem “criado um clima de terror. Tudo fake. Justificou que a ação policial era para combater o tráfico de drogas, quando o boletim de ocorrência já havia registrado a reintegração de posse, que exige ordem judicial.

Se os recursos para filmar existissem na época dos bandeirantes, teríamos imagens semelhantes àquelas dos vídeos divulgados nas redes sociais, que documentaram o massacre. Está tudo lá: a invasão da tropa de choque da PM, os tiros disparados de um helicóptero em jovens desarmados, mulheres e crianças correndo desesperadas, uma menina ferida no abdômen, a prisão de alguns indígenas e o menino de 12 anos intubado no hospital. 

OS ATAQUES

O (des) governo do Coiso incentivou o agrobanditismo que, nos últimos meses, intensificou suas operações diante do risco provável de perder a eleição de outubro, quando tais ações criminosas poderão ser coibidas e punidas por um novo governo. Por isso, as milícias rurais têm pressa em efetivar a sugestão do Pai dos quatro zeros, feita em 16 de abril de 1998, na Câmara dos Deputados: exterminar os índios, como fez a cavalaria americana”.

A barbárie, da qual o Zero Pai é a caricatura mais abjeta, retrocede ao esquadrão da morte formado por bandeirantes no período colonial. Não rompemos ainda, enquanto nação, com a colonialidade. Quando o Brasil completou, em 1900, quatro séculos de existência, o engenheiro Paulo de Frontin, nomeado presidente da “Comissão do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil”, organizou um programa de festividades, com desfiles militares e manifestações religiosas, populares e artísticas.

Na sessão magna de abertura, uma missa campal foi celebrada na Praia do Russell para rememorar a Primeira Missa, com exposição do famoso quadro de Victor Meirelles. Paulo de Frontin fez o seguinte discurso:  

O Brasil não é o índio; este, onde a civilização ainda não se extendeu, perdura com os seus costumes primitivos, sem adeantamento nem progresso. Descoberto em 1500 pela frota portugueza ao mando de Pedro Alvares Cabral, o Brasil é a resultante directa da civilização occidental, trazida pela immigração, que lenta, mas continuadamente, foi povoando o sólo.”

Não era conversa de botequim entre dois bolsonarentos. Frontin falava oficialmente em nome do Brasil, quando reforçou a proposta indecente:

Os selvícolas, esparsos, ainda abundam nas nossas magestosas florestas e em nada differem dos seus ascendentes de 400 anos atrás; não são nem podem ser considerados parte integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o conseguindo, eliminá-los.”

A RESISTÊNCIA 

Sem tirar uma vírgula, este discurso cabe na boca de Daniel Silveira, se ele for nomeado presidente da Comissão do Bicentenário da Independência, como maestro do quebra-quebra programado para 7 de setembro. Basta atualizar a ortografia. Não carece chamar a cavalaria americana para acelerar a eliminação sistemática de indígenas no país. O Massacre de Guapo´y, sem o respaldo do Judiciário, não foi ato isolado, como observou Eliel Benites Kaiowá, professor da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

“O mais grave é que tentaram qualificar os indígenas como criminosos. Inventaram essa narrativa de que os indígenas estavam fazendo tráfico de drogas. Distorceram para legitimar uma ação ilegal e a morte de uma liderança” – disse Eliel em entrevista à Amazônia Real durante o enterro de Vítor.

A nota da Aty Guasu, organização do povo Guarani Kaiowá, lembrou que é “uma tradição do nosso povo plantar nossos mortos ali onde tombaram”. Por isso, os Kaiowá, que foram expulsos pela PM, voltaram na tarde de segunda-feira (27) para sepultar o corpo do seu líder no território ancestral Guapo´y – nome de uma árvore de 20 metros de altura, abrigo de sementinhas que alimentam os pássaros. Ali construíram barracos ao lado da sepultura.

No momento em que Vítor era plantado em Guapo´y, o Grupo Tortura Nunca Mais, coordenado por Cecilia Coimbra e Joana D´Arc Ferraz, realizava live com vários participantes: Itahu, líder do Conselho de Gestão Ka´apor (Tuxa Ta Pa Me); José Mendes, antropólogo e assessor dos Ka´apor, ameaçado por madeireiros, este locutor que vos fala e Gilberto Marques, docente da Universidade Federal do Pará, que ressaltou a esperança na resistência, recuperando a imagem do tamanduá fotografado por Araquém Alcântara com seu relato dramático:  

– Eu o vi de longe, na beira da estrada Cuiabá-Santarém (BR-163), mas não conseguia identificá-lo. Então, pulei a cerca, fui até ele, senti o cheiro de carne queimada e o vi saindo do incêndio criminoso da floresta, cego e com o peito em brasa, ferido na região frontal. Quando ele sentiu que eu me aproximava, tentou se defender: abriu os braços e se ergueu sobre as duas patas numa atitude de defesa. Eu fiquei comovido com a luta dele pela sobrevivência.    

Os criminosos que cegaram o tamanduá pertencem à mesma corja dos que mataram nos últimos dois anos Vitor Kaiowá, Sarapó Ka`apor, Zezico Guajajara, Paulo Paulino Guajajara, Ari Uru-Eu-Wau-Wau, Bruno Pereira, Dom Phillips e tantos outros milhares ao longo de cinco séculos, que nos deixaram esse legado do tamanduá: a luta continua. Guapo´y, abrigo de sementinhas que alimentam os pássaros.

Block

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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