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MARÇO DAS ÁGUAS, DA MULHER E DE OUTROS ENCANTOS

Março das águas, da mulher e de outros encantos

Março é tempo de muitos encantos no Planalto Central do Brasil.

Por Jaime Sautchuk

É de homenagens às águas, que fluem nos mais diversos rumos, às flores e às gentes do Cerrado, neste mês lembradas com reverência no Dia Internacional da Mulher, instituído oficialmente pela ONU em 1975, em homenagem à luta das operárias de New York em 1857, mas que na verdade começou a ser celebrado quase 100 anos atrás na Rússia, como símbolo de igualdade e fraternidade.

Tradicionalmente este é um mês de muitas chuvas no país inteiro, como lembra Tom Jobim em “Águas de Março”, uma das mais belas peças musicais do cancioneiro popular brasileiro. É quando as nascentes de algumas das principais bacias fluviais transbordam de alegria, enchem córregos, ribeirões e rios que vão bater no mar.

Depois de dois anos de acanhamento, de estiagem em muitas partes do território nacional, neste março elas chegaram com gosto nessa região de águas emendadas. E vão dar vida aos vales do Paraná/Prata, São Francisco e Araguaia/Tocantins.

E vão também preservar belezas como as areias do Araguaia, que neste período se escondem, esculpindo as dunas, ilhas e praias que irão aflorar em junho, com pleno vigor.

De quebra, são águas que voltam a dar navegabilidade ao Velho Chico, já combalido pelo desmatamento, e ainda mais nos últimos meses, um período de pouca chuva. O mesmo já ocorre com a Hidrovia do Tietê, rio formador do Paraná, que dá vazão aos containers de grãos originários principalmente do Mato Grosso e Goiás, destinados à exportação.

Sim, e são elas mesmas que reanimam as usinas hidrelétricas, de modo que estas retomam a produção de energia com toda carga, propiciando sensível redução no valor da conta de luz.

Mais de uma dezena de termelétricas, queimadoras de óleo diesel, bagaço de cana e outros carburantes, já estão desligadas. Elas foram criadas nos últimos anos justamente pra cobrir a entressafra de água nos lagos de usinas, evitando apagões.

A MULHER DOS CERRADOS

Março é de certa forma um mês feminino, com a celebração do Dia Internacional das Águas no dia 22, e de igual modo dedicado às mulheres, como forma de a sociedade se redimir um pouco da desigualdade a que as pessoas do sexo feminino foram e ainda são submetidas.

É inegável que a situação mudou de maneira sensível nas últimas décadas. Nova legislação tenta conter a violência doméstica, por exemplo, pois é ali, em casa, onde as agressões mais ocorrem. Primeiro com a criança, menina, moça e depois com a mulher feita.

Maiores garantias no trabalho foram asseguradas, inclusive às que trabalham em casas de outras pessoas, como empregadas. Facilidades foram dadas ao acesso à educação formal, inclusive de nível superior. Mais mulheres atuam na vida profissional, empresarial e política, mas ainda longe da igualdade.

De todo jeito, desde o início da história de ocupação desses sertões do Brasil Central há uma trajetória de lutas e realizações em que elas tiveram participação expressiva, muitas vezes com liderança e destaque. Vale assuntar como surgiu a mulher cerratense.

As entradas e bandeiras que chegaram ao Planalto Central desde o século 16, como se sabe, eram formadas principalmente por homens. Os povos indígenas habitantes da região, quando não exterminados, tiveram seu modo de vida alterado drasticamente pela presença do invasor branco e de seus escravos e escravas de cor negra.

Ademais, os europeus ou mesmo os já filhos da Colônia que chegavam à região se apropriavam da mulher nativa, e os escravos também mantinham relações com indígenas. No chamado Ciclo do Ouro, no século de 1726 à década de 1820, surgiu o ser humano fruto dessa miscigenação, nas beiradas de rios ou nas aglomerações urbanas que nasceram.

O COMER, O TRAJAR, O FALAR

A essa altura, as cidades onde o ouro havia sido pródigo (Cidade de Goiás, Pirenópolis, Corumbá de Goiás etc.) já ostentavam certa opulência, a começar pela estrutura urbana. Em várias localidades surgiam as ruas, largos, praças, coretos, casarões com sobrados, igrejas e prédios públicos.

Também nos hábitos e costumes era visível nas elites que dominavam esses locais um requinte que buscava se igualar ao padrão das grandes cidades brasileiras e europeias. Isso era demonstrado pela própria arquitetura e utensílios domésticos guardados por famílias e por museus, além de muitos escritos.

As vestimentas e objetos de uso pessoal, especialmente as joias, eram outros diferenciais. Qualquer encontro social, em festas, cultos religiosos e até enterros, era motivo de ostentação desses costumes. Isso, de alguma forma, influenciava as comunidades locais que, na medida do possível, tentavam imitar certos procedimentos.

Vale lembrar que as comunidades árabes que se fixaram em várias partes de Goiás no século seguinte também eram um tanto gregárias, até por força da língua que falavam, mas com características bastante diferentes das do europeu.

A começar pela condição econômica, que inicialmente era inferior, além do fato de que o imigrante do Oriente Médio buscava se fixar em centros urbanos já estabelecidos, de preferência no comércio.

As populações tradicionais, desde o indígena, mantinham na região os hábitos da coleta de alimentos de origem vegetal, como frutos, folhas, sementes e palmitos, e da caça e pesca. O próprio índio já fazia pequenas roças destinadas plantio de algumas espécies de maior uso, como o milho e a mandioca. As peles e penas também eram de grande serventia no vestuário e em bens de uso doméstico.

Nem se fala da grande variedade e quantidade de peixes e tartarugas apanhadas nos cursos d’água, lagoas e lagos, tampouco da coleta de ovos, alimento de grande uso, e do mel, precursor do açúcar.

Isso, contudo, tinha grande serventia a essas populações e aos trabalhadores, inclusive escravos, que chegavam com os exploradores. O sertanejo dessa região, entendido como aquele que mora em lugar ermo, inclusive o quilombola, fazia seus próprios agasalhos e utensílios de uso doméstico.

A elite surgida da opulência aurífera, no entanto, desdenhava essas práticas tradicionais, embora também usufruísse do ecossistema local principalmente da fauna, flora e água. A ponto de colocarem em risco a existência de espécies de carnes mais saborosas, como o veado, a paca e o quati.

Os trajes, a culinária e os perfumes seguiam a mesma linha da ostentação imitatória. Na culinária regional, o historiador Paulo Bertran defende ter havido ali mais influência da cozinha portuguesa do que das do índio e do negro.

Isso, apesar de que, nessa região da C olônia, tenha se firmado uma “civilização do milho”, um grão sabidamente americano, já conhecido do indígena. Nisso, uma vez mais, vem o peso da mulher, que era quem cuidava da alimentação familiar.

Nas grandes fazendas ou nas pequenas propriedades, um tripé formado por milho, mandioca e abóbora se tornou a base de toda alimentação animal e humana. O arroz e o feijão só vieram a entrar nas mesas da região já com o século 19 bem andado.

TEMPOS MODERNOS

O século 20 foi de mudanças profundas na região. A Revolução de 1930 iniciou o processo mais acentuado, com a criação de Goiânia, mais estradas, e um certo baque nas oligarquias tradicionais. E duas décadas depois surge Brasília, trazendo a urbanização admirada em todo o mundo.

Na zona rural, a pecuária bovina deu lugar à agricultura extensiva, a partir da década de 1970, induzindo moradores tradicionais a deixarem o campo. No entanto, muitas comunidades resistiram a essa mudança brusca, tendo na mulher seu esteio e na água sua mais forte garantia de sobrevivência.

Mudanças climáticas ocorreram, a tecnologia avançou e a população do Brasil Central cresceu de modo exponencial, mas o regime de chuvas pouco mudou. As águas de março são sempre tidas como um prenúncio dos meses de estiagem.

Capa: Tarsila do Amaral (Reprodução fotográfica by pixabay.com)

Publicado originalmente em: 22 de março de 2016


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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