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Meninos Garimpeiros

Meninos Garimpeiros

Meninos Garimpeiros

Ao caminhar pelas ruas das comunidades ribeirinhas de Rondônia, na Amazônia Ocidental, é comum ver crianças correndo, jogando bola e empinando pipa tendo como fundo as balsas de garimpeiros ancoradas nos barrancos do rio Madeira. O garimpo está sempre aberto para quem quiser entrar na atividade. É o contrário das escolas da região que têm salas de aulas fechadas, não há transporte escolar fluvial e o ensino híbrido tenta impor uma nova lógica educacional, que as crianças e adolescentes dessas localidades estão excluídas. Essas violências em territórios tradicionais têm criado uma situação grave: meninos garimpeiros que preferem atuar na ilegalidade do que esperar pela educação que não chega. Meninas vão trabalhar nas cozinhas dentro das balsas e algumas são aliciadas para os chamados “bregas”, pontos de exploração sexual…

Por Thaís Espinosa/via Amazonia Real
“Para ganhar dinheiro eu não preciso estudar.” Esta frase martela a cabeça do educador e ativista cultural Timaia Nunes, do distrito de Nazaré, região ribeirinha de Porto Velho, a capital de Rondônia. Quem pensa assim não é ele, mas uma geração de estudantes que já passaram pelas suas aulas, mas hoje trabalham no garimpo. São meninos de 10, 11, 12, 13 anos de idade. No Baixo Madeira, as escolas que garantiriam o futuro estão fechadas ou nem todos conseguem acesso a elas. Mas as balsas que faíscam o ouro extraído do rio Madeira estão ali, por toda parte, brilhando nos olhos de muitos que só sonham com uma vida menos sofrida.
Rondônia é um Estado atípico do Brasil, mas alinhado à atual política destruidora da floresta amazônica. Em janeiro de 2021, o governador Marcos Rocha (sem partido) assinou um decreto regulamentando o garimpo nos rios. A atividade de extração do ouro é antiga, remonta aos anos 1980. Mas quando o poder público confere um ar de legalidade à atividade, isso serve de impulso para quem já não tem estímulo algum para estudar.
Um adolescente garimpeiro ganha de 3 mil a 4 mil reais por semana se trabalhar na mineração, informou o professor Timaia Nunes à reportagem. É o valor que ele ouviu de seus alunos e ex-alunos. Conforme relataram os jovens à reportagem, a atividade tem boa lucratividade apenas no verão, época de seca do rio (julho a outubro), quando famílias inteiras costumam se deslocar para trabalhar nas balsas. As meninas trabalham nas cozinhas. Mas algumas seguem para os “bregas”, como são chamados os pontos de exploração sexual.
No restante do ano muitas dragas da mineração ficam inoperantes já que, no inverno, quando o rio está cheio, a extração do ouro é dificultada e, portanto, menos lucrativa.    
Ainda assim, a cifra de 3 mil reais semanais, astronômica para um Estado cuja renda per capita não ultrapassa os 1.023 mil reais, tem atraído meninos para as balsas garimpeiras. Alguns vão por conta própria; outros são levados pelas próprias famílias que vivem dentro chamadas “fofocas”, as balsas que se enfileiram como cidades flutuantes e que avançam centenas de metros pelo rio Madeira. Comunidades inteiras vivem em torno da economia garimpeira. Há uma ausência de políticas públicas que incentivem outras formas de trabalho, como a agricultura e a pesca.

Kássio, morador do distrito de Nazaré, tem 15 anos e comenta que com 13 foi pela primeira vez trabalhar em uma balsa. Era o ano de 2020 e, ao chegar no garimpo, teve uma surpresa. “Quando fui pra lá até que achei divertido estar com os amigos. Não tinha escola, né, pra gente se encontrar e brincar”, lembra. Muitos alunos, desde um ano antes, não podiam estudar por não haver transporte fluvial. Nessa região, a locomoção deles é feita por barcos “voadeiras”, um serviço que deveria ser contratado pelo poder público. Depois veio a pandemia do novo coronavírus e os jovens não voltaram mais para a escola. “Meus amigos de 14 anos já estão tudo no garimpo. Mas é muito pesado, eu não quero mais voltar.” 
A reportagem ouviu jovens do Baixo Madeira que relatam a rotina dura no garimpo. Os turnos são de 6 horas girando o “sarinho”, objeto em forma de roda com quatro cabos que controla o fluxo de água e o sedimento que é sugado até cair sobre um carpete que recolhe as partículas de ouro. Eles trabalham entre máquinas e motores que operam dia e noite, sem pausas, e inalam a fumaça e o cheiro forte de diesel. Nas balsas menores, é comum ter apenas dois operadores que se revezam. Um conduz as máquinas, enquanto o outro descansa. O responsável pela draga ensina os novatos a operarem os equipamentos durante uma semana. Passado esse período, “aí é só tu e tu dentro da balsa, é a sua vida que tá em risco, tem que confiar e estar atento o tempo todo, num pode vacilar não, pô”, comenta Marcelo. Ele, Kássio e os demais citados jovens que atuam nos garimpos são nomes fictícios. É arriscado expor a identidade dos adolescentes garimpeiros.
Quem “vacila”, explica Marcelo, de 22 anos, “corre o risco de morrer, de te matarem, tu pode morrer afogado, daqui prali nas balsas some gente”. Em época de temporal no Baixo Madeira, o vento forma grandes ondas e já aconteceu de afundar uma “fofoca” com mais de 20 balsas. “Se tu não souber o que tu tá fazendo, afunda tudinho.”
Gustavo tem 20 anos e trabalha desde os 13 em garimpo. Há pouco, voltou de um trabalho no Amazonas em que ficou durante quatro meses controlando sozinho duas balsas. “Foi ruim, eu sentia saudade do meu pai, estava longe, não conhecia ninguém, não tinha ninguém pra conversar. O que eu passei no garimpo esses tempo ali pra baixo foi o inferno. Mexeu demais comigo, parei de estudar e é o que eu me arrependo hoje.”
 

As “fofocas” do garimpo

Balsas da garimpo no rio Madeira (Foto: Tulasi Resende/Amazônia Real)

Os meninos garimpeiros operam as balsas submetidos a uma rotina solitária, fisicamente exaustiva e de muita responsabilidade. Nas horas de folga, muitos são atraídos pelos chamados “bregas”, “cabarés” ou “piseiros”, locais próximos às “fofocas” de garimpo. O relato é a presença de drogas, bebidas e prostituição nesses lugares. O professor Timaia afirma que, como educador, é constrangedor ver seus alunos nessa condição:  “É triste de ver, tem muito aluno viciado. Teve uma vez que eu fui esperar o barco lá na frente e vi os alunos trabalhando em uma condição bem triste. Parecia que não eram eles”. 
Nas comunidades que giram em torno do garimpo, ocorre um amadurecimento forçado e precoce das crianças e dos adolescentes, conforme relatos de professores e de moradores das comunidades. São eles que dizem que há garotas que com 12 ou 13 anos saem para trabalhar na cozinha das balsas ou se prostituir nos “bregas”.
O drama relatado pelos entrevistados é social, mas também ambiental. Mesmo que o garimpo no Baixo Madeira ocorra nas “fofocas”, no meio do rio, ele avança também sobre a mata. “O ouro, todo mundo fala que é amaldiçoado. E é. Ouro traz riqueza, mas também muita ambição e olho grande”, afirma Gustavo. A ambição se dá quando, ele próprio, admite que já derrubou barrancos para conseguir extrair mais ouro. “Já cerrei árvore na beira do barranco para trabalhar entrando na terra, derrubando barranco. Quanto mais desbarranca, mais dá ouro.”
A grande destruição, contudo, vem da poluição das águas. O mercúrio, também chamado de “azougue”, ainda é usado em larga escala nos garimpos para separar e extrair o ouro, servindo como um ímã para juntar as partículas do minério. A água do rio é sugada por uma mangueira, passa por uma esteira e, após a separação do ouro, o líquido contaminado é despejado no rio. Em um ambiente sem oxigênio, esse azougue se transforma em metilmercúrio, substância altamente tóxica que vai parar nos peixes. Quando ingerido por humanos, o metilmercúrio pode desencadear sintomas como fraqueza e cansaço frequente, fetos são contaminados ainda no ventre de suas mães, provocando danos ao sistema nervoso e deficiências de aprendizado e cognição na infância. 
De acordo com o Ministério Público Federal de Rondônia, um quilo de ouro representa cerca de 1,7 milhão de reais em danos ambientais, o que resulta em um custo quase 10 vezes maior que o preço real do metal precioso. Mas o lucro imediato fala mais alto. “Tá muito poluído o rio com o azougue, em alguns lugares já tá tão contaminado que tu num pega mais o ouro puro, o ouro já tá todo azougado, sem falar que o peixe come e a gente come o peixe, né?”, diz Marcelo, outro adolescente garimpeiro.
 

O garimpo legalizado

Damiana, no interior da balsa que levou 6 anos para terminar de pagar
(Foto: Tulasi Resende/Amazônia Real)

Nos distritos de Pombal e Papagaio, a maior parte da arrecadação até 2012 costumava vir da venda de peixes. A construção das usinas Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira, represou as águas e escasseou o pescado. Muitas famílias que tinham o próprio roçado também não investem mais porque temem os riscos de uma grande inundação. Moradores relatam que a herança deixada por seus familiares eram os pés de açaí, graviola, cupuaçu e cacau. A formação artificial dos lagos das hidrelétricas acabou com essa produção. Com seus modos de vida tradicionais e suas bases econômicas e identitárias severamente agredidos, muitos encontram no garimpo uma – senão a única – alternativa para garantir a sobrevivência.
Muitas pessoas comentam que viver do roçado exige trabalho árduo o ano inteiro capinando debaixo de sol sem ter garantia de uma lucratividade, enquanto que no garimpo há certeza de um retorno financeiro, apesar dos riscos. Damiana Almeida aponta a preocupação de seus familiares com o seu trabalho 
“Meus irmãos, às vezes, me ligam chorando e pedindo: ‘Mana, pelo amor de Deus, bota as coisa pra terra porque eles [polícia] vão tacar fogo na balsa de vocês’. Também chamam a gente de bandido”, diz Damiana, morada do distrito de Santa Catarina. 
O temor da família de Damiana é reflexo da Operação Uiara, que, em dezembro de 2021, incendiou balsas de 131 famílias, na altura do município de Autazes (AM). A ação foi deflagrada pela Polícia Federal para combater o garimpo ilegal no rio Madeira. Apesar do decreto do governador coronel Marcos Rocha (sem partido) regulamentando o garimpo em rios de Rondônia, a maioria dos garimpeiros continua atuando de forma ilegal porque o processo para adquirir a certificação é muito custoso. 
“Eu não sou a favor do garimpo, mas ao mesmo tempo entendo que não é criminalizando as pessoas das comunidades que se viram obrigadas a irem trabalhar no garimpo que a gente vai resolver os problemas de impactos ambientais, sociais e culturais”, afirma a educadora indígena Márcia Mura, moradora do distrito de Nazaré. Ela lembra de uma de suas alunas que foi com a mãe e o filho pequeno trabalhar no garimpo. “Construíram a própria draga para garantir o sustento. Não é pra ficar rico, por que quem ganha com isso? São os grandes empresários, os donos das grandes dragas que exploram essas famílias. É mais uma modalidade de extrema exploração da mão-de-obra que sequestra as crianças do espaço escolar e da infância.”
Nascida em uma comunidade chamada ramal São Domingos, na capital Porto Velho (RO), Márcia Mura é guerreira de seu povo, indígenas que circulam por vastas áreas do rios Madeira, Purus e Amazonas. Conhecedora da realidade amazônica, ela é até perseguida por sua “insistência em inserir a temática indígena e local para todos os estudantes”. Esta última frase consta do relatório de exoneração que a removeu de seu cargo de professora concursada da escola estadual na comunidade de Nazaré. 
Márcia Mura sabe que existem forças maiores que engolem o futuro das populações locais. O garimpo é uma dessas forças. “A causa disso tudo é bem maior. Existe uma superestrutura ligada às próprias políticas de Estado, postas de cima para baixo que desenraiza as pessoas dos espaços, dos seus lugares e passam a ser mais uma mão-de-obra consumida e devorada pelo capitalismo.”
 

Sem “voadeiras”

Ícaro acompanha a equipe de reportagem nas visitas aos alunos de outras comunidades (Foto: Tulasi Resende/Amazônia Real)

Ícaro Valente, de 16 anos, nunca trabalhou no garimpo, mas teve amigos que sim. Morador da comunidade de Boa Vitória, ele se emocionou dizendo que sua juventude acabou 3 anos atrás, quando deixou de ir à escola. “Da minha sala todo mundo tinha um futuro. Todos nós compartilhávamos sonhos. Uns pararam de ir para a escola pra trabalhar em garimpo e ajudar os pais. Os que restaram, poucos falam um com o outro, todo mundo virou desconhecido”, lamenta. 
As aulas já voltaram, mas estudantes como Ícaro e mais de 70% de seus colegas do distrito de Nazaré ainda não puderam retornar ao ensino presencial porque dependem do transporte escolar. “Faz tanto tempo que não vou para a escola que quando eu for vou parecer um esquisito, um estranho.”
O sofrimento de jovens como Ícaro começou quando veio à tona, em 2019, o escândalo das fraudes no transporte escolar fluvial. O esquema, deflagrado pela Operação Ciranda, envolvia a Secretaria Municipal de Educação (Semed) de Porto Velho e a empresa Flecha, acusada de desviar recursos para o transporte dos estudantes por meio de barcos. Na época, as escolas foram fechadas para que os estudantes que dependem das voadeiras não ficassem em desvantagem com relação aos demais.
No segundo semestre de 2019, a responsabilidade de contratação do serviço de transporte fluvial foi transferida da Semed para a Secretaria de Educação Estadual (Seduc), trazendo esperança às famílias de que a situação seria regularizada. Mas as aulas só retornaram em outubro. Quando a maioria estava prestes a encerrar as atividades para entrar de férias, estudantes dessas comunidades do Baixo Madeira se preparavam para o primeiro dia de aula do ano. 
Uma outra empresa, Canoa, chegou a assumir o serviço, mas o contrato com o governo estadual foi contestado na Justiça, já que ela sequer tinha barcos. Para o promotor de Justiça da Educação do MP-RO, Julian Imthon Farago, entender os caminhos que levaram a Seduc a aprovar uma empresa que não tinha as embarcações e os aparatos necessários para executar um serviço é questão central da investigação.
Com a pandemia houve a suspensão das atividades escolares, e, mais uma vez, o transporte fluvial foi interrompido. Em fevereiro deste ano, as aulas presenciais retomaram nas comunidades, porém mais da metade dos estudantes ainda está sem acesso porque não houve a retomada do serviço de transporte escolar fluvial. 
A região conhecida como Baixo Rio Madeira abriga 26 comunidades, sendo que 11 delas ofertam o ensino fundamental dos anos iniciais e apenas 3, o ensino médio: a escola Professor Juracy Lima Tavares, localizada no distrito de São Carlos, em Nazaré, a Professor Francisco Desmoret Passos e a escola General Osório, ambas no distrito de Calama. Isso significa que estudantes de 23 comunidades necessitam de transporte para chegar à escola. Seguem sem aula mais de 2 mil estudantes distribuídos nas comunidades de Terra Firme, Ilha Nova, Assunção, Papagaio, Conceição da Galera , Bomfim, Laranjal, Catarina, Pombal,Tira fogo, Boa vitória, Curicaca,Terra Caída, Cavalcante, Primor, Bom Serazim, Aliança, Pau Darco, Bom Jardim, São Miguel, Porto Chuelo e Belmont.  
O jovem Ícaro é um dos prejudicados por essa falta de transporte. “Não só eu como todos os alunos precisamos do transporte pra gente aprender, ter um futuro, porque todo mundo tem um e eu também gostaria de ir para a escola, mas isso depende deles. Eu só peço que devolva o transporte, pelo amor de Deus, porque a gente quer estudar e aprender.” 
Em nota, a Seduc afirma que o ano letivo de 2022 foi retomado de forma presencial nas escolas da rede pública estadual, mas admite que para “algumas comunidades ribeirinhas do município de Porto Velho, os estudantes que dependem do transporte fluvial, estão sendo atendidos de forma remota com ponto de auxílio presencial dentro das comunidades”. A secretaria diz ainda que “está buscando todos os meios legais para dar continuidade no transporte escolar fluvial”, porém sem estabelecer prazos para que isso ocorra.
Na década de 1980, lembra o professor Timaia, os alunos iam para as escolas “no remo de Boa Hora, comunidade abaixo de Curicacas”, e que as coisas melhoraram com a chegada do transporte fluvial. Porém, o problema atual fez tudo voltar à estaca zero. “É desgastante e triste ao mesmo tempo porque são essas crianças que serão o futuro daqui. É como se o povo não tivesse mais voz. Às vezes, penso até que se toda a população fosse lá talvez não adiantaria nada.”
 
Sem transparência

“Estamos desde a pandemia imprimindo as tarefas. Os pais vêm aqui pegar a cada 15 dias para entregar aos filhos, mas ainda não sabemos quando irá retornar de forma presencial”, comenta Francinete Araújo, diretora da Escola Municipal Francisco Desmaret em Nazaré. Escolas municipais que atendem crianças em idade de alfabetização estão funcionando sem a presença do professor no processo de aprendizagem. Uma das dificuldades, principalmente durante a pandemia, foi que muitos pais são analfabetos ou têm baixa escolaridade e não conseguem auxiliar os filhos nas tarefas.
O diretor Jonir Tavares, do distrito de São Carlos, lembra que a falta de transporte está na origem das perdas que o ensino teve. “Nós, professores, nos preocupamos porque a gente tá vendo que [os alunos] não estão tendo a aprendizagem que deveriam ter. Eles têm direito ao transporte. Muitas famílias das comunidades mais próximas que ficam na outra margem do rio até possuem voadeira, mas ainda assim não têm condições de trazer seus filhos. Gastariam pelo menos 20 reais por dia de gasolina e a maioria não tem recurso para isso.”
O MP promove reuniões com a Seduc e a Cooperativa de Agroextrativismo do Médio e Baixo Madeira (Coomade), numa tentativa de suprir a falta do transporte escolar fluvial. “Apresentamos a disponibilidade da cooperativa com as embarcações, a forma de contratação de nossos pilotos e dissemos que é possível atendê-los. Agora, aguardamos retorno do contrato para executar o trabalho”, afirma João Batista, presidente da Coomade.
 

Depressão e ansiedade

Gabriele visita a sala de leitura que em 2019 abria com as amigas e desde o começo da pandemia está fechada e se tornou um depósito
(Foto: Tulasi Resende/Amazônia Real)

Gabriele, Jenifher e Leila, moradoras do distrito de Nazaré, abriam todos os dias o espaço da biblioteca comunitária para estudarem por conta própria quando ocorreu a primeira paralisação das aulas, em 2019. A atitude delas foi um incentivo para os colegas frequentarem o espaço. Mas, durante a pandemia, essa foi mais uma porta que se fechou e permanece trancada.
Em fevereiro de 2022, a reportagem pediu à direção da escola para entrar na biblioteca e convidou Gabriele para acompanhar essa visita. Ao entrar na sala, um cheiro de mofo invadiu as narinas. Ao abrir as janelas, a luz entrou movimentando a poeira que se espalhava pelo ar. “Nossa, passa um filme na cabeça”, disse respirando fundo e olhando com tristeza o entorno na tentativa de conter o choro. “É muito difícil”, disse já com lágrimas nos olhos. Gabi é apaixonada por literatura, toda semana aparecia em casa com um livro da biblioteca, empolgada para se debruçar em diferentes histórias. Ela participou da construção do espaço em 2016 com o Núcleo de Apoio às Populações Ribeirinhas da Amazônia (Napra) e a direção escolar, ajudando na catalogação dos livros e na escolha do nome da biblioteca, intitulada de “Espaço Comunitário Sua Leitura”. 

Para Gabi, olhar o ambiente empoeirado, com mesas e cadeiras empilhadas e um depósito de materiais mofados, era como se estivesse observando muitos de seus sonhos se esvaindo. Em cima de uma mesa grande havia vários frascos de álcool em gel enfileirados, símbolo desta época. A jovem passou uma quantidade em um pano e limpou uma das cadeiras para sentar. “Eu queria um futuro bonito, cheio de vida e ver os meus colegas lá, todos“, disse, olhando para a estante de livros na esperança de ver o movimento de antes. 
A colega Leila sonha em ser policial, pois se encanta com a possibilidade de “salvar a vida de outras pessoas”, mesmo com os perigos que a profissão oferece. Ela relata que os últimos anos não foram fáceis, “perdi amigos e parentes por causa da Covid, fiquei com problemas de ansiedade e, de lá pra cá, só vem piorando”. O prolongado isolamento físico com colegas, professores, familiares e redes comunitárias, somado à perda de entes queridos e ao medo de infecção pela Covid-19, fragilizaram a todos. As consequências da Covid-19 ficam evidentes nos relatos dos jovens entrevistados: tristeza profunda, desânimo de viver, solidão, depressão e ataques de pânico. 
A Revista Educação em Saúde divulgou um relatório sobre o impacto do isolamento social na infância e adolescência, apontando que durações mais longas de quarentena foram associadas à piora da saúde mental e ao aparecimento de sintomas de estresse pós-traumático, comportamentos de esquiva, raiva e uma sensação de isolamento do resto do mundo. Nas comunidades do Baixo Madeira, não foi diferente. 
Ícaro, que frequentava a escola de Nazaré, passou a se preocupar com os muitos colegas que entraram em depressão. Uma amiga sua, Camila, da comunidade Conceição, relatou a dificuldade de enfrentar esse momento, o que o fez enxergar essa questão com outros olhos. “Nem todo mundo acredita nisso, alguns dizem que é frescura, mas não é. Tem dias que eu não consigo nem dormir, confesso que paro para pensar e choro por tudo o que está acontecendo. Isso acabou com a infância de muitos, não ir pra escola, não brincar, prejudicou bastante a nossa vida”, desabafa o jovem.
 

O frágil ensino remoto

Sala de aula durante uma aula da mediação tecnológica (Foto: Tulasi Resende/Amazônia Real)

No Baixo Madeira, os alunos tinham muita expectativa com o retorno das aulas presenciais neste ano de 2022, depois de tantos meses de isolamento social. Mas logo esse sentimento virou frustração ao se depararem com um sistema completamente diferente de ensino. Em algumas comunidades, foi implementado o projeto de mediação tecnológica, processo de ensino-aprendizagem que se estabelece por meio de televisão via satélite. Um professor de Porto Velho ministra as aulas online, enquanto que o professor da escola, chamado de “mediador”, fica responsável por ligar o equipamento e passar as atividades. 
O problema é que os conteúdos transmitidos pela televisão não necessariamente condizem com a área de competência do professor que está do lado do aluno. Uma aula gravada de química pode ser mediada por um professor de língua portuguesa, por exemplo. Perde-se a autonomia do professor em propor atividades que dialoguem com as necessidades dos alunos. Quando estes têm alguma dúvida, o mediador reexibe o vídeo ou tem de enviar uma mensagem via Whatsapp ao professor que está na capital rondoniense e aguarda o retorno. 
Na prática, significa que o professor Timaia, liderança cultural na comunidade de Nazaré, tem de deixar de fazer o que ele fazia de melhor. Ele e sua família são responsáveis por organizar o festejo da comunidade, que há mais de 50 anos reúne manifestações artísticas da tradição ribeirinha, com danças típicas como boi curumim, carimbó, seringandô e quadrilha. O evento chega a atrair turistas de toda a região. “A gente está afastando as pessoas das relações humanas. Eu fico indignado em ver meus alunos, excelentes alunos, dormindo em frente de uma televisão.”
A justificativa da Seduc para adotar esse sistema de mediação tecnológica é porque existem regiões de difícil acesso e com déficit de professores em Rondônia, sobretudo nas zonas rurais. Mas o documento do projeto que cria esse sistema omite a ausência de concursos públicos para preenchimento de vagas nessas localidades desde 2016. Tampouco fala da demissão em massa de professores temporários e a precarização do trabalho do magistério. 
Este ano, a Seduc tentou implementar a mediação em toda a região do Baixo Madeira. No distrito de São Carlos, a comunidade foi convocada pela escola a um debate e posterior votação, que resultou na maioria das famílias se posicionando contra seus filhos estudarem por de uma televisão. No distrito de Nazaré, as famílias sequer foram escutadas. Poucos dias antes do início das aulas presenciais, elas apenas foram comunicadas pela direção da escola de que, a partir deste ano, seria implementada a mediação no ensino médio.
“Com a mediação, não está sendo legal. Eu não concordo, é muito chato. Além de ter o professor em sala de aula, a gente quer interagir com ele”, comenta a estudante Jenifher Coutinho, de 16 anos. “Outra dificuldade é quando a energia vai embora, a gente fica lá esperando e, se a energia não volta, tem que ir embora pra casa, porque o mediador da sala não pode nem dar aula”, acrescenta Kerlon.
 


* Esta reportagem foi financiada pelo Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF) em parceria com o Pulitzer Center.


Garimpo: Nova corrida do ouro leva 1,8 mil homens ao Rio Madeira

http://xapuri.info/comecem-a-produzir-floresta-como-subjetividade-como-uma-poetica-de-vida-diz-ailton-krenak-a-plateia-portuguesa/

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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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