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No romper da madrugada, a busca por Arapari

No romper da madrugada, a busca por Arapari

Por Altair Sales Barbosa

Arapari é um termo da mitologia indígena do Rio Solimões, que significa Cruzeiro do Sul, aquele que aponta caminhos.

Enquanto o ser humano continuar se sentindo onipotente, filho onipresente do Criador, resultado da crescente desnaturização causada pela solidificação do monoteísmo, nossa  espécie seguirá por este pequeno planeta deixando rastros nos lugares por onde passa, sem se preocupar com o mundo que a rodeia, até o dia em que, se continuar agindo dessa forma, pega pelas próprias armadilhas da evolução, provavelmente será extinta. O planeta, este continuará sua jornada por mais alguns bilhões de anos até ser engolido pelo sol, que se transformará numa estrela gigante.

Desde quando se tornou Homo sapiens sapiens, por volta de 60 mil anos antes do presente, ainda na velha África, após sucessivos êxitos evolutivos e competitivos que,  há mais de 2 milhões de anos, levaram um primata superior de Oldwai, ou da África do Sul,  a se transformar de Australopithecus em Homo habilis, depois em Homo erectus, depois  em Homo sapiens arcaico e, logo em seguida, no Homo sapiens sapiens, esse ser aparentemente frágil saiu pela Terra ocupando territórios e modificando ecossistemas.

Para dominar fontes de proteínas, vitaminas, açúcares e sais minerais mais fartas, começou a matar os próprios irmãos. Ainda como Homo erectus aprendeu a dominar o fogo e, com isso, conseguiu expulsar das cavernas os animais carniceiros, para ocupá-las como local de abrigo. É nessa fase que conquista o Oriente Próximo e grande parte da Eurásia.

Baseada na caça, coleta de frutos, cata de ovos e moluscos marinhos nos litorais, e na coleta de moluscos terrestres nas áreas interioranas, a economia dos primeiros H. sapiens sapiens não era nada simples, exigia um grande conhecimento do ambiente e uma complexa estrutura social hierárquica, com divisões etárias e sexuais de trabalho, e normas rígidas para os laços matrimoniais.

Embora os H. sapiens sapiens sejam genericamente chamados de caçadores-coletores, com uma dieta onde também entravam várias espécies de insetos, em determinadas épocas do ano muitos eram essencialmente pescadores. Ainda que de forma tênue, alguns dos modelos desse sistema de vida persistem em alguns bolsões do planeta, notadamente na África, na América do Sul e em algumas ilhas isoladas do Pacífico.

Ao contrário do que muita gente imagina, os caçadores-coletores não eram seres pacíficos que viviam em equilíbrio com o meio ambiente. Assim como nós, eles usaram seus conhecimentos para explorar o ambiente num grau extremo, deixando as marcas do extermínio por onde passavam. Pouco antes de 30 mil anos atrás, já adaptados aos ambientes euroasiáticos, esses nossos ancestrais levaram à extinção o Homo sapiens neanderthalensis, única espécie humana diferente da nossa contemporânea, do Homo sapiens moderno, o H. sapiens sapiens.

Os Neanderthais viviam em cavernas e fabricavam instrumentos de pedra lascada e ossos que competiam com os fabricados pelo H. sapiens sapiens. Uma característica importante sobre os Neanderthais é que eles foram os primeiros humanos a sepultar seus mortos e a colocar flores sobre suas sepulturas, provavelmente acreditando numa vida pós-morte.

E assim, sozinhos enquanto espécie, essa aparentemente frágil criatura iniciou seu reinado sobre a Terra. Desde a Eurásia, começou a ocupar pequenas ilhas nos oceanos Índico e Pacífico, o que foi possível porque o mundo vivia um dos estágios da glaciação de Wurm/Wisconsin. Como o nível do Oceano estava mais baixo em relação ao atual em cerca de 100 metros, foram criados os corredores que ligavam essas ilhas ao continente.

ANDARILHOS ERRANTES

A partir da fragmentação da Gondwana, a Austrália, bem como outras ilhas do Pacífico e do Índico, tornou-se uma área ambiental isolada e por essa razão teve um processo evolutivo da flora e da fauna diferenciado. Nesse ambiente estável, as espécies vegetais e animais tornaram-se especializadas, com cada espécie ou conjunto de espécies ocupando seu lugar na cena ecológica em um ambiente de equilíbrio, até que todos os nichos tivessem sido ocupados.

Ao chegar, o H. sapiens sapiens terminou por causar modificações drásticas e por criar situações de desequilíbrio no habitat original da Austrália. Em poucos séculos, das 24 espécies de pequenos animais que viveram no Pleistoceno superior, 23 desapareceram, e mais de 90% da megafauna australiana foi extinta. Desapareceram os cangurus gigantes de 200 kg, os grandes répteis, os grandes coalas, as aves maiores do que os avestruzes, o leão marsupial do tamanho de um tigre, e o diprotodonte, um grande marsupial semelhante aos heremotherium, preguiças-gigantes da América do Sul.

Como foi possível tamanha destruição, com tecnologias de caça tão simples? Muitos especialistas colocam o clima como fator primordial nesse processo de extinção, mas essa tese desconsidera a dinâmica do clima e sua relação com os processos adaptativos e, talvez por desconhecimento, a própria história evolutiva do planeta. Os animais extintos na Austrália já estavam adaptados aos diversos ciclos climáticos que atingiram a região desde os primórdios do Pleistoceno.

O fato é que, por desconhecer o primata humano, a fauna da Austrália não desenvolveu sistemas de autodefesa para enfrentar o ataque de um animal aparentemente tão inofensivo. E, como os animais australianos possuíam ciclos de gestação de longo prazo, as mortes causavam um longo tempo de espera, até o surgimento de uma nova geração. Outra explicação é que, por dominar o uso do fogo, o H. sapiens sapiens cercava as manadas que, rodeadas pelas chamas, eram empurradas para os precipícios, onde morriam ou ficavam aleijadas. O uso do fogo também mudou radicalmente a fisionomia vegetal da Austrália, e o eucalipto, resistente ao fogo, se espalhou por áreas antes ocupadas por outro tipo de vegetação.

Essa devastação também ocorreu em outras áreas do mundo. Quando os ancestrais dos Maoris chegaram à região onde hoje é a Nova Zelândia, a maior parte da megafauna foi extinta e mais de 60% da avifauna desapareceu por completo. Quando, em época mais recente, os eurasianos conseguiram desenvolver indumentárias que os protegessem do frio, o H. sapiens sapiens atingiu a Sibéria e, também de forma devastadora, dizimou os mamutes, os mastodontes, as espécies endêmicas de rinocerontes e algumas espécies de renas.

Quando os interglaciais permitiram a formação de corredores de migração, hordas de H. sapiens sapiens, perseguindo animais gregários, sem se dar conta, entraram no continente americano. Muitos ficaram na América do Norte e, em menos de 2 mil anos, chegaram até a Terra do Fogo, no extremo sul das Américas. Ao longo da jornada, mataram milhares de bisontes, toxodontes, camelídeos, cavalos, grandes aves, preguiças-gigantes e tatus gigantes, e extinguiram até o tigre-dentes-de-sabre, cujo nome em latim é Smilodon populator, que significa devastador, embora fossem eles os devastados.

Ante essa realidade, uma pergunta: por que os elementos da megafauna africana sobreviveram? A resposta está no fato de que os humanos, desde os primeiros ancestrais até o H. sapiens sapiens, viveram mais densamente na África, e isso fez com que os animais africanos criassem mecanismos de defesa contra sua predação. Somente em épocas bem modernas, com outras tecnologias bélicas, é que o H. sapiens sapiens conseguiu levar à extinção animais como a quagga, uma espécie de zebra garbosa, caçada impiedosamente pela beleza da sua pele.

REVOLUÇÃO AGRÍCOLA

Também conhecida como Revolução Muscular, a Revolução Agrícola inaugura a primeira grande revolução tecnológica na história da humanidade. Entretanto, ao contrário do que se pensa, esse não foi um processo evolutivo harmonioso, nascido às margens do rio Nilo, por obra da mente engenhosa de alguns habitantes dos vales do Tigre e do Eufrates.

Na verdade, a domesticação de plantas e animais começou por volta de 10 mil anos atrás, como um fenômeno universal. Próximo ao Oriente Médio, foram domesticadas espécies de trigo, ervilhas, lentilhas, oliveiras, videiras. Na Península Ibérica, domesticaram os citros. Os figos e as maçãs foram domesticados no interior da Europa. O arroz, no extremo oriente. A cana-de-açúcar e a banana, na região onde hoje se situa a Nova Guiné. A manga, na Índia.

À mesma época, na África foram domesticados o arroz africano, o sorgo e a melancia. E nas Américas domesticou-se o feijão, o algodão, o milho, o tomate, a pimenta, o pimentão, a abóbora, a batatinha, a batata-doce, o cará, a taioba, a quinoa e a mandioca, que é o mais antigo alimento desidratado de que se tem notícia: a farinha de mandioca.

A domesticação animal ocorreu paralela à domesticação vegetal. Alguns animais foram amansados pela sobra de alimentos jogadas pelos humanos, que também os protegia de possíveis predadores. Na Índia, o H. sapiens sapiens passou a conduzir rebanhos de Bos indicus, o boi indiano, para as regiões de capins mais suculentos. Em troca, deles recebia os bezerros, o leite e o esterco, usado na calefação. Diferente do Velho Mundo, onde houve grande domesticação de animais como bovinos, suínos, ovinos, caprinos e galináceos, nas Américas no máximo três espécies foram domesticadas: a lhama, a chinchila e o peru.

Das milhares de espécies que nossos ancestrais domesticaram, apenas algumas se mostraram aptas para a agricultura e para o pastoreio. No caso do pastoreio, a domesticação é feita para que o animal forneça uma série de produtos, as crias, o leite, ovos, pelos, couros e, por fim, a carne, num processo em que o animal vai sendo consumido aos poucos.

No Brasil, como em outros rincões do planeta, criar animais requeria muito mais energia do que ir à caça. Foi assim que, sem oferecer leite em quantidade, a fauna brasileira conseguiu sobreviver. Caçava-se pela carne, pelos ossos e por algum tipo de couro.

Por volta de 5 mil anos atrás, o processo de domesticação de plantas e animais terminou. Hoje, com toda a tecnologia acumulada, cerca de 90% dos alimentos que consumimos vêm das plantas e animais domesticados por aqueles primeiros.  O restante vem das melhorias causadas pela manipulação genética.

Antes de 10 mil anos, toda a humanidade era caçadora-coletora. Em breve, provavelmente nenhuma o será, as populações humanas que ainda vivem assim serão extintas, civilizadas ou corrompidas, dependendo do ponto de vista.

O GRANDE SALTO

A Revolução Neolítica marca o grande salto da humanidade em relação aos demais seres viventes da Terra, um salto maior do que nos seus 2 milhões de anos de história. Aprende a moer grãos; inventa instrumentos agrícolas como a foice e a enxada; inventa a cerâmica e o tecido; escava as primeiras minas. De um modo geral, passa da vida nômade à sedentária.

Nascem os primeiros núcleos humanos, depois transformados nas pequenas cidades e, nos milênios seguintes, nos impérios da Antiguidade. Nessa época, surgem as grandes correntes religiosas, tanto as orientais quanto as ocidentais, que persistem até os dias de hoje. Nesse período, os humanos passam a sentir na própria pele os efeitos cíclicos do clima e, no ano em que suas plantações não são suficientes, eles partem em hordas bélicas para atacar outros povos que porventura tiveram abundância. Nessas circunstâncias, instalam-se as guerras.

Embora a arte rupestre já fosse companheira inseparável dos caçadores-coletores, muitos dizem que é na Antiguidade que florescem as artes e a filosofia, sistematizada pelos gregos, como se os caçadores-coletores já não tivessem um sistema filosófico repleto de pensamentos abstratos e concretos. Entretanto, uma coisa nova e extraordinária acontece nesse contexto: a invenção do alfabeto fonético, este, sim, trouxe para a humanidade uma nova forma de ser, tanto individual quanto coletiva e, no seu bojo, gesta o gérmen do pensamento científico.

Segundo Rose Marie Muraro, a invenção do alfabeto veio romper em estilhaços toda a estrutura da sociedade primitiva, abriu as sociedades até então fechadas sobre si, imersas no mundo oral e mágico, para o pensamento abstrato, dependente de uma atividade essencialmente visual.

Embora trouxesse um potencial de possibilidades que pudesse conduzir o ser humano para uma visão de globalidade, o maior legado desse fato foi a noção de que o H. sapiens sapiens passou a se sentir um ser ainda  mais superior e, cada vez mais, foi se afastando da natureza, ou melhor dizendo, dos outros elementos que compõem o meio ambiente.  O ser humano começa, então, a se sentir onipotente.

As consequências da palavra escrita são discutidas em profundidade por Marshall McLuhan e por Muraro. A leitura desses autores reforça a ideia de que, além de não perder seu espírito predatório e egoísta, o H. sapiens sapiens adquire mais uma característica, o individualismo. Outros inventos da Antiguidade, como a roda, o papiro, a estrada, a catapulta, os metais e o uso do petróleo em estado bruto, foram criados a partir das necessidades geradas pela competição entre vilas, cidades, castelos e impérios.

UM MARCO EXTRAORDINÁRIO

Todos os impérios do mundo lograram seus êxitos com base numa sociedade escravagista. Isso aconteceu na África, no Oriente Próximo, no Extremo Oriente, na Europa, na Mesoamérica e na América do Sul. O Império Incaico, por exemplo, estendia seus domínios dos Andes até o rio Paraná.

Essa situação durou até o século 15, quando algo novo aconteceu: a invenção da Imprensa por Gutenberg, baseando-se no sistema de prensa já utilizado na China, há pelo menos 300 anos. Gutenberg criou um sistema de tipos móveis que permitia a composição de páginas inteiras. E, aperfeiçoando o sistema da prensa chinesa e utilizando o papel também vindo da China, largamente já utilizado na Europa, com uma vantagem singular sobre o papiro e o pergaminho, criou um sistema de impressão e, por isso, é considerado o pai da Imprensa.

A criação da imprensa foi um marco revolucionário. O primeiro grande fruto da imprensa foi o livro, considerado o primeiro objeto fabricado em série. Através do livro, a imprensa trouxe para a humanidade uma maior democratização da cultura, mas trouxe também uma nova técnica, a mecanização, cuja principal característica é a capacidade de produção em série. Trata-se de uma extensão das funções humanas de consequências profundas.

A mecanização permitiu o advento de vários modelos de máquinas, que foram ao longo do tempo se aperfeiçoando e se transformando em grandes forças produtivas, permitindo um grande acúmulo de capitais para aqueles que detinham a propriedade dessas. E, pela primeira vez na história, a humanidade viu aumentar a margem entre o lucro e a vida.

Enquanto a espécie humana colhia os frutos da mecanização com todas as suas consequências, especialização, urbanização etc., algo de novo aconteceu: a invenção da tecnologia elétrica. O símbolo da nova era, a idade elétrica, pode ser considerado a invenção da lâmpada incandescente, no início do século 20, que terminou com o ciclo natural da escuridão.

As antigas máquinas foram aperfeiçoadas. A nova jornada não só permitiu o trabalho noturno como, associada às novas e mais ágeis máquinas, aumentou ainda mais a concentração de capitais nas mãos dos que detinham os meios de produção. Vieram vários avanços nas ciências e na tecnologia.

Surgiram o telégrafo, o telefone, o rádio, a televisão, os automóveis, o avião, o cinema e várias novas indústrias, incluindo as farmacêuticas, os fertilizantes e o início da mecanização da agricultura. Vieram os venenos para combater as várias pragas que causavam epidemias da humanidade como a peste bubônica, a doença de chagas, a malária, a doença do sono, transmitida pela mosca tsé-tsé, a cólera, a dengue e assim por diante. Também surgiram as vacinas e o antibiótico.

Entretanto, foi na idade elétrica que aconteceram as duas grandes guerras mundiais, em ambas a ciência associada à técnica cresceu de forma vertiginosa, até permitir que a humanidade manipulasse a fissura nuclear, cujo fruto, a bomba atômica, usada contra os japoneses em 1945, coloca fim à Segunda Guerra, já quase na metade do século 20. No entanto, o final da Segunda Guerra fez com que a humanidade começasse a desenvolver projetos científicos e tecnológicos de forma alucinante: foi assim com os foguetes para bombardeio.

REVOLUÇÃO ELETRÔNICA

Em 1948, o mundo científico começa a usar de forma mais frequente a palavra cibernética, termo que vem do grego (kybernetes), que significa aquele que governa. Com a cibernética, nasce a era da automação, a quarta grande revolução na história da humanidade, chamada de Revolução Eletrônica. Seu precursor foi o físico austríaco Norbert Wiener.

Todos os grandes inventos que surgiram depois foram frutos dos cálculos efetuados pelos computadores eletrônicos, que a cada momento se sofisticavam mais e mais, até chegarmos ao quadro atual. Com o auxílio do computador, foi possível a construção de máquinas nunca imaginadas, grandiosas e potentes. Com elas, o ser humano conquistou o espaço, ocupou todos os rincões para novos empreendimentos agrícolas e pastoris, mudou os cursos dos rios, secou mares, aplainou montanhas e manipulou a genética humana vegetal e animal.

De modo geral, incrementou a comunicação via satélite, em níveis jamais imaginados, mudou de forma avassaladora os ecossistemas da Terra, continuando a obra iniciada pelos caçadores-coletores. A grande diferença entre a tecnologia elétrica e a tecnologia eletrônica reside no fato de que os computadores foram projetados para funcionar igual aos neurônios do cérebro humano. A computação trouxe para a humanidade grandes revoluções e criou um mundo de relações instantâneas.

Mas é importante destacar que a aldeia global pensada nos parâmetros de McLuhan não se concretizou, primeiro porque os grandes meios de comunicação ficaram nas mãos de corporações ou órgãos estatais, onde 80% ou mais do conteúdo veiculado refletem seus interesses e ideologias. Essas corporações, explorando ao máximo a fragilidade das massas, advindas da nova situação econômica, montou programas sensacionalistas, contribuindo para uma crescente alienação da população.

A popularização e a crescente vulgarização das comunicações virtuais se transformaram numa bússola sem ponteiros, onde os usuários se veem mais perdidos que orientados. Em outras palavras, é mais indicado pensar a globalização na concepção de Milton Santos, o qual ressalta que a conquista do território e a imposição de uma ideologia dominante é o que caracteriza esse novo fenômeno.

Assim é que, ao chegarmos ao século 21, a humanidade, além de não abandonar seu espírito predatório ainda anexou mecanismos capazes de conduzir à sua própria extinção. Não sabemos como os seres humanos evoluirão daqui para o futuro, ou se serão extintos, por causas naturais ou por fatores criados pela própria espécie. Casos que envolvem extinções são corriqueiros na história evolutiva da Terra.

DE VOLTA A UM PASSADO RECENTE

Em seu livro “Estórias para quem gosta de ensinar”, o educador Rubem Alves nos brinda com uma fábula do mundo das aves, muito rica em todo seu conteúdo. Assim diz o autor:

Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos falavam. Os urubus, aves por natureza becadas, mas sem grandes dotes para o canto, decidiram que, mesmo contra a natureza, haveriam de se tornar grandes cantores.

Fundaram escolas e importaram professores, gargarejaram dó-ré-mi-fá, mandaram imprimir diplomas e fizeram competições entre si, para ver quais deles seriam os mais importantes e teriam a permissão para mandar nos outros. Foi assim que eles organizaram concursos e se deram nomes pomposos, e o sonho de cada urubuzinho, instrutor, em início de carreira, era se tornar um respeitável urubu-titular, a quem chamam por Vossa Excelência.

Tudo ia bem até que a doce tranquilidade da hierarquia dos urubus foi estremecida e a floresta foi invadida por bandos de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas com os sabiás. Os velhos urubus entortaram o bico e convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito.

Os urubus perguntaram: Onde estão os documentos de seus concursos? As pobres aves se olharam perplexas. Não haviam passado por escolas de canto, porque o canto nascera com elas. E nunca apresentaram um diploma para provar que sabiam cantar, mas cantavam, simplesmente cantavam. E os urubus decidiram: Não, assim não pode ser. Cantar sem titulação devida é um desrespeito à ordem. E, em uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás. Moral da história: em terra de urubu becado, não se ouve o canto do sabiá.”

Essa fábula reflete o pensamento de três dos grandes filósofos da educação do século 20, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire, para os quais o maior analfabeto não é quem não sabe ler, e sim quem lê, mas não entende o que leu,  ou quem vê, mas não a realidade, porque essa pessoa passa pela vida mas não vive, incapaz de se emocionar com o voo das borboletas diante das plantas em flor.

A espiral da ignorância analfabética chegou ao ápice nos tempos atuais, onde o conhecimento, os saberes e as culturas tradicionais de nada valem diante da burocracia.  Foi criada uma cerca invisível de arame farpado em volta das escolas públicas, contribuindo para a falência da educação.  Assim, o desempenho dos mais letrados urubus torna-se incapaz de gorjear uma única nota afinada que seja, ante uma escola impossibilitada de propor uma Pedagogia da Esperança, ou para a Esperança.

Perdeu-se o discernimento, a clareza do conceito de tempo. Perderam-se as ideias modernas sobre a Teoria do Caos, ou mesmo sobre os Fractais e o Efeito Borboleta, embora ainda nos seja de grande utilidade considerar alguns tipos de tempo: o cosmológico, medido em bilhões de anos; o geológico, calculado em bilhões, milhões e milhares de anos; o da humanidade, medido em milhares de anos;  o do ser humano, calculado em algumas décadas; e o da sobrevivência, que é aquele tipo de tempo que se situa no fio da navalha, que está bem no limite entre a vida e a morte, entre a alienação total e a busca da felicidade. Para esse tempo, os remédios devem ser emergenciais, porque o tempo da sobrevivência não tem tempo de esperar.

Nos dias de hoje, torna-se impossível compreender os fenômenos científicos, sociais e comportamentais, tomando como princípio os paradigmas tradicionais que fundamentaram o pensamento científico dos séculos 18 ao 21. Estamos presenciando a maior revolução da história da humanidade, onde o espaço entre um evento revolucionário e outro diminui com o tempo. O que se presencia, atualmente, não é somente uma revolução política, social ou econômica, mas uma revolução global – a revolução do próprio Homo sapiens sapiens.

ESPÉCIE EM RISCO

Ao perceber que seus modelos de se relacionar com o meio ambiente poderiam abreviar sua passagem como espécie pelo planeta, parte da humanidade entrou em posição de alerta.  Em 1972, organizou uma conferência mundial em Estocolmo. Em 1992, realizou a Eco-92, no Rio de Janeiro. Em 2012, organizou a Rio + 20. Entre uma conferência e outra, houve eventos menores, acumulando conhecimento e buscando protocolar ações concretas.

Dessa soma de experiências, surge um entendimento: os humanos são apenas mais uma espécie do reino animal, cuja sobrevivência na Terra depende da integração harmoniosa dos diversos componentes do meio ambiente, da atmosfera, hidrosfera, litosfera, biosfera, dos ventos, regimes climáticos, relevos, ruídos, fogos, das energias. Entretanto, se por um lado veio o conhecimento, por outro faltou a conscientização, que exige mudanças radicais de atitudes e de postura.

Os caminhos para a busca da solução são vários e só podem ser eficientes se forem interconectados. Qualquer deles exige um novo padrão de educação, o que pressupõe incentivo à criatividade, à pesquisa e à busca de uma nova metodologia pedagógica. Qualquer desses caminhos exige políticas públicas fundamentadas, focadas no combate à miséria e no resgate da dignidade humana.

Da conferência de Estocolmo a esses nossos dias de convivência com uma pandemia de coronavírus, a qualidade da vida no planeta piorou, parte em função da predação ambiental, parte pela predação social e econômica. A vegetação nativa foi arrancada da natureza; os cursos dos rios foram alterados; a mineração aplainou as montanhas; a violência urbana tomou proporções inconcebíveis; o tráfico de pessoas tornou-se atividade rotineira; no mundo inteiro, a fome matou e segue matando as populações mais vulneráveis.

Faltam, à nossa civilização, o respeito à natureza, a criatividade e o idealismo. A criatividade é a matriz da competência. Sem criatividade, não há idealismo. Essa falta de idealismo, refletida em nossa falência enquanto sociedade, nos obriga a seguir buscando a consciência, a liberdade e a felicidade, tendo por base o caminho do respeito à educação.

Nossas escolas há muito deixaram de exercer a função de continuadoras dos ensinamentos da família e mergulharam num pântano de lodo movediço e mal cheiroso que suga a criatividade. Grande parte delas carece de pátios para brincadeiras, de bibliotecas, e dos equipamentos adequados para fazer do ensino uma troca de experiências.

Nossos professores já não conseguem motivar seus alunos, porque o conteúdo que lhes toca repassar em geral já é de conhecimento dos estudantes. A aula dentro da sala perde o interesse e o sentido. A escola, que outrora se constituía num ponto de encontro para se fazer amizades, trocar ideias e aprender novidades, perdeu esse papel para as redes sociais.

A influência do efêmero funciona como uma venda nos olhos, que impede vislumbrar atitudes duradouras e possivelmente eternas, que possam ser tomadas a favor da educação, cuja eficácia é a base de toda sociedade sólida, com valores que perpassam os tempos e se adaptam com o próprio tempo.

DODÔ

Em um dos episódios da série Doctor Who, escrita para o rádio pelo saudoso Douglas Adams, nos anos 1970, a sala do idoso Professor Chronotis em Cambridge fazia as vezes de máquina do tempo, por ele usada para um único propósito, seu vício secreto: repetidas visitas às Ilhas Maurício para chorar por Dodô. Por causa de uma greve na BBC, esse episódio nunca foi transmitido, e mais tarde Adams reciclou o persistente motivo do choro por Dodô em outra novela, a Agência de Detetives Holística.

Certa ocasião, o texto caiu nas mãos de um professor que, comovido, não conteve as lágrimas. Ao vê-lo chorando, seus alunos perguntaram: “Por que choras professor?” O professor respondeu: “Choro pela triste história de Dodô”. E explicou: “Dodô era uma ave indefesa cujos ancestrais chegaram ao Oceano Índico ainda alados. Com o processo evolutivo da seleção natural, os parentes distantes de Dodô perderam as asas, já que não precisavam delas, porque não encontraram predadores na nova casa. Assim, por milhares de anos, os dodôs viveram em paz nas Ilhas Maurício.

Quando os portugueses chegaram a Maurício em 1507, os abundantes dodôs, grandes aves que chegavam a pesar até 15 quilos, eram completamente mansos e, sem a experiência do encontro com predadores, deles se aproximaram sem receio ou desconfiança. A extinção veio a galope. E, como é comum, ela ocorreu por uma combinação de fatores. Os humanos introduziram na ilha cães, porcos, ratos e refugiados religiosos. Os cães os caçavam de forma esbaforida, os porcos e ratos comiam seus ovos, os humanos destruíam seus habitas com plantações de cana-de-açúcar.

Ao chorar por Dodô, também choro pelos sem-terra, pelos sem-teto, pelos que têm fome. Choro por aqueles a quem o sistema fez perder o amor pela democracia, pela liberdade e pela vida. Choro pela falta de conscientização, pela abdicação do papel fundamental da educação na formação de uma cidadania consciente, e pelo abandono da busca da felicidade. Choro porque essas são situações que somente poderão ser transformadas através de uma mudança radical do comportamento humano nesse mundo em que vivemos.

E eu sei que, para isso, a busca de novos paradigmas se torna imprescindível. Os que existem são incapazes de fornecer as respostas necessárias para acharmos o caminho do equilíbrio e da esperança. Se falharmos nesta missão, com ou sem pandemias, é possível que tenhamos o mesmo destino de Dodô, mas certamente não sobrará ninguém para chorar por nós”.

[authorbox authorid=”” title=”Sobre o Autor”]

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