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Orvalho no capim

Orvalho no capim: O orvalho na armadilha às escondidas

Por  Padre Joacir S. D´Abadia 

O desejo de se alimentar com a comida retirada de sua história fez com que um homem conversasse com sua esposa para explicar-lhe como seus avós faziam para capturar uma presa. O primeiro passo, dizia, era escolher um ponto dentro da floresta onde se percebia nitidamente a movimentação de qualquer tipo de caça.

A escolha era como que uma celebração litúrgica, respeitava um rito, sobre o qual não poderia deixar nada de lado. Tudo representava sucesso se, no dizer do homem, se seguisse uma norma: encontrar um local inusitado que causasse espanto na presa sem que a mesma pudesse dar conta que estava sendo capturada.

Dentro de uma mata foi encontrado um lugar pisado por animais. Perfeito para colocar alimento aos animais que ali estavam, vez por outra, comendo frutos das árvores. Escolheu pôr sal e milho. Sendo que o animal que ali apareceu comeu todo o milho e o sal, deixando o lugar todo pisoteado e o homem muito contente ao descobrir que era um veado que estava comendo na sua ceva.

Depois de vários meses engordando o cervo eis que chegou a hora de fazer-lhe uma armadilha. Isso foi o que pensou o homem camponês. Ele era muito feliz no seu casamento. Tinha uma esposa que por sinal, era muito inteligente. Ela, ora por outra, ralhava com seu esposo, visto que era muito soberbo e fazia as coisas sem pensar. Pagava caro por isso, mas nunca aprendia e às vezes levava-a a acreditar em seu orgulho. Agia sem antes medir as consequências.

Pela manhã, o homem saiu na preparação de uma armadilha. Era um dia de pouco sol que se alternava com fina chuva. O orvalho ainda estava no capim. O sol parecia muito fraco.

Nesse ínterim, foi às alturas de um pau que se chama tamboril. Daquelas alturas conseguiu enxergar do o outro lado de uma grota, onde ficava uma enorme pedra, seu trabalho tendo êxito. Era um veado gordo que tinha caído no seu laço quando pulava de um lado da grota para o outro.

Na travessia do veado tinha duas pedras formando entre ambas um corredor. Esse cabia não mais que um veado. Era estreito. À sua volta as árvores cresciam formando sombra. Isso facilitou a captura do silvestre.

Tendo em vista uma única passagem até um local onde se colocava o sal, foi estendida uma corda marrom em forma de laço. O silvestre, para comer sal, todos os dias, tinha que pular a grota. Nesse dia sua sorte foi esvaída. Pois caiu preso no laço.

Vendo sua presa aos pulos por todo quanto é lugar o homem tangeu-o até uma moita de cipó para melhor submetê-lo. Então, preso, teve sua última proeza: dar um coice certeiro na perna daquele homem. Mas logo, agarrado por seus chifres, foi dominado.

Com um facão em punhos grita o homem para sua esposa: “jogue o feijão fora porque o veado está no laço!”. Ao escutar as palavras, a dona de casa correspondeu, docemente. Atirou todo o seu sustento no monturo e seguiu correndo em busca do fresco alimento histórico familiar.

Poucos passos depois escutou outros gritos sem ternura, sem sucesso, dissuadido, sem alento: “cate o feijão de novo porque o veado foi embora”. Ele havia errado o golpe, sendo certeiro na corda deixando sua presa sair aos pulos para dentro do mato libando com a amabilidade da existência.

Ofegosa chegou sua dona com bacia na esperança de botar toda a comida. Ela encontrou um descampado com cipós retorcidos… Do lado oposto viu que alguém estava sentado olhando para o pé de tamboril. Nos seus olhos brilhava expectativa, todavia ao desvendar a verdade ficou apoquentada. Não tinha ouvido os gritos para catar o alimento! Então percebeu o valor da escrita do duende Haw de Spencer Johson:

Quanto mais importante / seu Queijo é para você menos / você deseja abrir mão dele” (“Quem mexeu no meu Queijo?”).

Ela disse: _ “a ignorância é inimiga da pressa. Ela sempre chega antes que qualquer projeto… Não se limita em permanecer na ganância. Quer além de si mesmo; quer a si mesmo a realidade”.

Dizendo isso ouviu: _ “é melhor contar com a única vaca que se tem do que confiar na boiada do vizinho!”.

 Era um verdadeiro desalento de ambas as partes ter que catar o feijão sem a concretude histórica familiar. Pensavam!

“Será que meu desejo incessante de me alimentar com o sustento retirado de minha história familiar me fez falhar no processo da execução?” _ indagava a si mesmo o homem.

Contudo, se persuadia de que seguiu corretamente os passos para o sucesso. Com isso sua culpabilidade era esvaída. Estava cônscio e determinado em continuar na convicção do “fiz correto” conseguindo, portanto, convencer sua esposa ao recordar: “lembra quando conversamos?” _ Lembro-me, disse ela, a qual tomando o comando da fala retrucou com sua sabedoria refinada através do silencio, da observação minuciosa e principalmente de sua afabilidade em tratar seus sentimentos de derrotas como se fossem oportunidades novas de se escolher caminhos inexplorados:

“O primeiro passo, como me ensinaste, era escolher um ponto”. Enquanto a dona falava o homem ficava pensando no que ouvira, porém dentro de si tinha uma voz que completava ao que sua esposa intentava. A voz dizia: “Eu escolhi um ponto dentro da floresta onde eu percebi a movimentação de algum tipo de caça”.

Ao se darem conta eles estavam diante de um ponto de vista da mulher e do homem. Eram, pois: dois pontos de vista. Suas escolhas, mesmo que se parecessem festivas não respeitara o rito. Não foram capazes de superarem os dois pontos. O sucesso foi vencido pela norma.

O local passou a ser apenas um ponto. A presa solta mostrava mais um ponto de vista: o excepcional pode abrolhar assombro, muito mais por saber que pode ter orvalho na armadilha, mesmo que ela esteja escondida. Assim, se tinham três pontos de vista, uma reticência para a vida…

 

Padre Joacir d’Abadia, Pároco de Alto Paraíso
NOTA DA REDAÇÃO: A Revista Xapuri não endossa, necessariamente, as posições do padre. 

Matéria publicada originalmente em 02/01/18


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

 

 

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