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Cláudia Farinha: Superintendente do Incra no DF e Entorno

Cláudia Farinha: Mulher da Terra, Superintendente do Incra no DF e Entorno

Uma agricultora familiar, uma assentada da Reforma Agrária, uma mulher cuja história de vida se confunde com o destino da própria terra cerratense no Planalto Central do Brasil é agora a Superintendente da SR-28 do Incra.  Desde sua posse no último dia 13 de abril, Cláudia é a primeira mulher a ser nomeada para a Superintendência do Incra no Distrito Federal e Entorno. 

Por Zezé Weiss

Nascida há pouco mais de quatro décadas no Hospital de Base de Brasília,  Cláudia Pereira Farinha, mulher negra, feminista, orgulhosa de sua negritude, filha de lavradores, irmã mais velha de cinco meninas, dentro de um grupo de 14 irmãos,  criou-se na Fazenda Cafundó, próxima a Alexânia, no estado de Goiás.

Ali, desde cedo, a menina Cláudia viveu a dicotomia de boa parte das crianças do meio rural brasileiro: Pobreza, havia, mas fome nunca passou. Porém medo sentiu e não foi pouco  nas várias vezes em que teve que embrenhar-se mato adentro por conta das violentas disputas pela terra numa região tomada pela grilagem.

Para Cláudia, a memória da vida boa dos banhos de rio, da colheita de frutas no pé, da magia das brincadeiras infantis, vem sempre entremeada com a lembrança traumática das cenas fortes dos conflitos frequentes, da casa derrubada pelo trator do latifúndio, das ameaças de morte à família toda. Pior: por insegurança e medo, o pai, João Farinha (já encantado), passou a beber, e a beber muito.

A mãe, ao contrário, tomou o rumo da luta e o destino da resistência. Carmelita Santos, líder nata, optou por organizar os trabalhadores da região e, com isso, passou a viver mais tempo longe da família, fora do seu próprio roçado. Em casa, o tempo fechou. Cláudia e as irmãs vivenciaram, então, por anos seguidos, os tristes dias da violência doméstica.

Um doce com as filhas, segundo a irmã de Cláudia, Cíntia, “o melhor dos pais, super presente, super carinhoso e super cuidadoso, um pai que brincava de casinha, que levava pra lavoura, que ensinava toda filha a fazer sua hortinha,” com a mulher, era outro, totalmente diferente.

João naquele tempo não conseguiu aceitar a vida de militante sindical da feminista Carmelita, e só muito depois compreendeu a importância da luta e contribuiu para mobilizar outros trabalhadores para ter acesso a direitos, sobretudo previdenciários.

De piora em piora, a família acabou mudando para a área rural da Ponte Alta, no Gama, quando Cláudia tinha cerca de oito anos de idade. Para a menina criada no isolamento do interior goiano, aquele foi o grande momento da descoberta da escola, da TV na casa da vizinha, da convivência com outras crianças, das viagens à cidade, de carroça, com o pai, para as compras do mês.

Mas essa foi também a época em que a vida dos Farinha descontrolou total. Houve um conflito na chácara que tinham comprado, o pai deixou de pagar um pedaço, a família foi despejada, “a gente estava na escola, o oficial de justiça chegou e levou a gente pra debaixo de uma árvore, meu pai juntou uns pedaços de plástico, montou uma espécie de barraca em volta do tronco da árvore, e a a gente se virou do jeito que deu.” 

Entre Carmelita e João, as coisas também não melhoravam. “Era época da campanha do Lula, meu pai tomou ódio. O mundo desabando na nossa cabeça e minha mãe mobilizando gente pra campanha, sem desviar um minuto da luta. Demorou um pouco pra eu entender  o imenso esforço dela para tentar melhorar não só a nossa, mas a vida de todos os trabalhadores que passavam pelos mesmos perrengues que nós.”

Os amigos se juntaram e ajudaram a família a comprar outra chácara, com uma casinha simples, de alvenaria. Carmelita começou, então, a preparar-se para o inevitável caminho do divórcio. O jeito que encontrou para se livrar da miséria e das brigas em casa foi abrir mão da convivência com as próprias filhas. Cláudia, com apenas doze anos,  foi a primeira a ser entregue para a professora, Cátia Mattiolli,  uma amiga da família que, de forma solidária e familiar, os ajudava o quanto podia.

Saí de casa chorando, passei semanas chorando, quanto mais eu  me lembrava de casa, mais eu chorava, as coisas ficaram muito difíceis. Eu pensava nas minhas irmãs, todas menores e desprotegidas. Foi como me arrancar a alma…

Mas hoje vejo que essa foi a melhor solução. Cátia não foi só como uma segunda mãe, mas uma grande mentora intelectual e motivadora de sonhos. Na casa dela,  minha tarefa era só cuidar da Amanda, uma menina feliz que me inspirou como mãe. Diante disso, passei a ter uma vida organizada, com estrutura para estudar com mais conforto.”

Três anos depois, mais uma ruptura. Cátia teve que mudar para Vitória,  no Espírito Santo. Cláudia, ainda adolescente, foi morar com outras famílias, estudando quando dava e trabalhando como empregada doméstica.

O casamento veio logo em seguida, rendeu Fernanda e Marco Túlio , e durou sete anos. Acabou porque Cláudia, que  herdou da mãe o espírito rebelde, resolveu ser militante, e Osvaldo (falecido anos mais tarde em decorrência de um câncer de garganta), não aceitou, caiu fora, foi viver “vida normal”.

Com duas crianças para criar, Cláudia se aproximou da mãe e passou a trabalhar como secretária de Carmelita, que havia se tornado a primeira presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Distrito Federal. No Sindicato, ela conheceu Divino, seu segundo marido, também dirigente sindical.

Foi nessa época que a já militante da Federação dos Trabalhadores do DF e Entorno, FETADFE, filiada à CONTAG, que teve Carmelita como pioneira e criadora, conheceu a também militante Carliene Oliveira, de quem se tornou amiga e parceira de luta para as duas décadas seguintes.

A gente se encontrou em 1998, no ano em que foi fundada a Federação.  Eu, com 16 pra 17 anos, era acampada da Reforma Agrária. A Cláudia  começou como secretária, depois virou diretora. Nós duas passamos a trabalhar juntas nos processos formativos de fortalecimento das novas lideranças femininas e dali pra frente seguimos juntas nas mesmas lutas…

Sempre solidária, Cláudia foi fundamental na conquista do Assentamento Santarém, onde hoje vivemos em uma comunidade de 28 famílias de agricultores familiares,” conta a amiga Carliene, orgulhosa dos vinte anos de amizade.

Com Divino Gomes do Nascimento,  embora nem tudo fosse perfeito porque a relação  dos dois também era permeada por cenas de machismo, as coisas pareciam ter, enfim, tomado prumo: Os dois eram militantes, os dois eram da terra, os dois compartilhavam as mesmas lutas e os mesmos ideais.

Mas o casamento durou pouco, menos de um ano. Divino faleceu de um AVC fulminante, deixando Cláudia viúva com Amanda (17), uma bebê de apenas 40 dias de vida. Em vez de sucumbir, Cláudia mergulhou de vez na militância sindical.

Militante dedicada do Movimento Sindical dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais – MSTTR, com mais empenho desde o final dos anos 90, quando assumiu a secretaria da FETADFE, a aproximação com o PT veio de forma natural, seguindo os passos da  mãe, desde a adolescência.

Sua filiação partidária, entretanto, deu-se no ano de 2006, em Brasília, no mês de agosto, durante a Marcha das Margaridas, em ação conjunta com a amiga Carliene, que também se filiou no mesmo dia, mês e ano.

O amigo Hudson Cunha, advogado sindical, emprestou os R$ 5 para a primeira contribuição da nova filiada. “Penso que posso tê-la inspirado para a militância partidária, mas, no sindicalismo, o exemplo  foi sua mãe, Carmelita. Só contribuí num salto de qualidade da visão sindical para a partidária, e tenho muito orgulho disso,” diz Hudson.

No meio de sua  atribulada vida de dirigente,  mais mudanças: Cláudia conheceu Arthur, seu terceiro marido. “Não foi fácil. Além de toda dificuldade por conta das viagens que eu tinha que fazer, ainda tivemos que enfrentar o preconceito por conta da nossa diferença de idade. Com ele tive a minha caçula, Maria Eduarda (15)…

Desde então, Arthur vem sendo um parceiro, pai não só de Duda, mas também assumiu a responsabilidade com minhas filhas e meu filho.” E complementa: “Assim como Neide e Zé Carlos, minha sogra e meu sogro, Arthur vem sendo um incrível parceiro, com um papel determinante como meu companheiro de vida e de luta”. 

Militando e trabalhando em Brasília,  e ficando muito tempo longe dos filhos  enquanto  seguia viajando por vários estados como dirigente da FETADFE, a vida em Flores de Goiás tornou-se impraticável. Foi então que Cláudia tentou e conseguir no Instituto Nacional da Reforma Agrária, INCRA, uma permuta para o Assentamento Santarém, criado em 2015, durante o governo Agnelo Queiroz, em Brasília. Cláudia, Arthur e os quatro filhos vieram então para o Santarém, onde vivem hoje da agricultora familiar, plantando milho, mandioca, e vegetais diversos, conforme a época do ano.

De volta a Brasília, além da conquista pela terra, com o apoio do FIES, programa criado no governo Lula, Cláudia conseguiu,  em meio há tantas dificuldades formar-se em Direito no ano de 2017, aos 42 anos de idade. Na Faculdade, sofreu preconceito, mas sua decisão de resistir compensou, e muito. Meus filhos, motivados pelo o desejo de acesso a educação, estão na faculdade. Para nós, da terra, o acesso à universidade foi coisa do PT.”

Mesmo sendo militante orgânica e de longa data do Partido dos Trabalhadores, a  candidatura a vice-governadora no ano de 2018 em um partido que se adapta aos novos tempos da participação política igualitária entre mulheres e homens, Cláudia atribui à articulação da Secretaria de Mulheres do PT, que criou o projeto Elas por Elas para incentivar a participação de mais mulheres nos espaços de poder.

Para Andreza Xavier, Secretária de Mulheres do PT-DF, a candidatura de Cláudia representou uma grande conquista das mulheres petistas. “Ter uma mulher com a trajetória de Cláudia Farinha para ocupar esse posto é muito representativo para nós, pois significa que as mulheres, de forma coletiva e organizada, tiveram vez e voz no processo eleitoral de 2018.”

Assim, é com a vermelha convicção da militante forjada na luta, com a coragem da menina que teve que morar debaixo de uma árvore, da estudante discriminada na faculdade por ser feminista, negra e pobre, da aguerrida dirigente que enfrentou o fogo nos barracos do Assentamento Santarém,  que Cláudia Farinha faz história tornando-se a primeira militante do movimento sindical dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais  a ser nomeada para a Superintendência da Regional do Incra para o Distrito Federal e Entorno.

Ao chegar para o seu primeiro dia de trabalho no novo emprego, Cláudia encontrou dezenas de companheiros e companheiras à porta do Incra para dar as boas-vindas à companheira de lutas.

Em sua conta no Instagram, Cláudia agradeceu:

Hoje o  campo  ocupou o Incra-DF para me receber e é assim que eu quero estar: rodeada, de mãos dadas com os movimentos sociais.  A responsabilidade é imensa e eu me sinto muito honrada em representar cada um e cada uma que estiveram presentes.

Não tenho palavras para explicar o quanto este momento é simbólico e bonito. O Incra é a casa dos movimentos sociais de luta e assim será. Reforma Agrária Já!

As mãos que alimentam o Brasil de maneira saudável exigem respeito e condições para produzir e por comida na mesa do povo. Se o campo não planta, a cidade não janta.” 

Texto escrito originalmente em julho de 2018. Ajustes feitos em abril de 2023 para celebrar a nomeação de Cláudia para a SR-28. Fotos: Acervo Cláudia Farinha. Gratidão à Cíntia Farinha, pelo suporte na produção desta matéria.


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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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