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Política Indígena no Acre: Reflexões sobre a “Carta de Maio”

POLÍTICA INDÍGENA NO ACRE: Reflexões sobre a ‘Carta de Maio’

O mês pluvioso* continua a toada desconstrutivista da índole nacional e da sanidade mental dos que teimam em acompanhar cada desdobramento dessa triste comédia que insiste em não ter um ‘último ato’.

Minha crônica da semana certamente  não será de agrado geral, até porque o foco será político, mais precisamente sobre o que vou chamar aqui ‘política no Acre indígena”, ou seja, um tema bem provinciano mesmo, daqui da terra de Galvez, o que certamente desmotivará alguns leitores. Dou este aviso logo de início para que os que quiserem já ‘pularem fora do barco enquanto está perto do barranco’, abandonando o restante da leitura.

Vamos lá…

Na semana que passou fiquei refletindo sobre a leitura que fiz da “Carta de Maio – Reunião das Lideranças Indígenas no Acre”, publicada na coluna Papo de Índio. Enquanto lia o documento não ia vendo nada fora do ‘normal’,  em relação ao que vinha sendo manifestado nos encontros anteriores.

A surpresa foi quando me deparei com dois parágrafos que me deram certo sobressalto. Parágrafos que faço questão de  reproduzir aqui ipsis litteris:

“Diante do exposto queremos uma instância para discutir a formulação, execução e avaliação de todos os programas e projetos para os povos indígenas no âmbito do Governo do Acre, com consulta e que respeite os tempos e prazos de cada povo.

Nos chamou atenção também que a Assessoria Especial de Assuntos Indígenas do Gabinete do Governador não foi citada na apresentação desses programas acima citados, ficando para nós a pergunta se esta Assessoria foi extinta. Se não, diante da frágil estrutura da Assessoria, que hoje está até com o prédio caindo, gostaríamos de entender o papel dela nessa reta final de governo.”

“HÃ!!” – Foi minha primeira reação ao ler esses parágrafos. Reli o texto inteiro para ver se acaso não tinha entendido mal o contexto de tal afirmação. Infelizmente, não havia confusão em minha leitura, era aquilo mesmo. Para me informar melhor dei alguns telefonemas para saber o que tinha se passado, pois, apesar do convite feito pelos organizadores do evento, não consegui me fazer presente ao mesmo.

Devidamente informado, mas não satisfeito, fiquei refletindo sobre muita coisa que vem no bojo destes dois singelos parágrafos. Pensei logo em sua primeira sentença, que traz a necessidade da criação de uma instância para discussão da pauta indígena, e não pude deixar de lembrar que foi naquele mesmo espaço de discussão, no sítio da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI/AC), em que as bases para a criação da extinta Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas (SEAPI)  foram construídas, tendo, inclusive, um dos principais protagonistas das discussões na época, Francisco Piyanko Ashaninka, nomeado como secretário, posto que ocupou por dois mandatos durante os governos de Jorge Viana.

Essa secretaria contava com orçamento próprio, uma grande equipe, formada por técnicos muito bons. Participou ativamente dos processos de mitigação para a pavimentação das BR 364 e 317 que incidiam direta e indiretamente sobre muitas Terras Indígenas. Atuou magistralmente na mediação, atendimento e execução de políticas e projetos voltadas às comunidades.

Reuniões, eventos e encontros oficiais eram realizadas em sua sede, centro de Rio branco, no mesmo local onde se realizou o primeiro encontro dos povos indígenas. Um local muito bonito, arborizado, agradável, muito bem feita mesmo.

Sempre foi considerada referência para os povos indígenas e para as instituições, que, no decorrer da gestão anterior, haviam consolidado este espaço como a instância adequada e reconhecida para discussão das questões políticas e dos projetos indígenas.

Claro que, com a mudança de estratégia política no estado, onde a maioria dos gestores das secretarias de governo passaram a ser os ‘candidatos de amanhã’, esta instância de contato, bem como sua validade como parceira na luta pelos direitos e aspirações dos povos indígenas foi perdendo sua força, pois as secretarias passaram a desenvolver diretamente seus projetos nas comunidades. Por fim, deixou de ser secretaria e passou a ser ‘assessoria’, as explicações sobre os motivos, pelo menos para mim, nunca foram muito convincentes.

Assim, nos últimos anos, a sensação de que algo estava começando  perder a gênese foi tomando de conta deste cenário das políticas indígenas. Um claro exemplo disso foi o começo das ‘cartas manifesto de lideranças’ sendo publicadas a cada ano. Cartas estas que atentavam para questões base que fizeram do Acre, ‘O ACRE INDÍGENA’. Coisas que até pareciam simples de serem entendidas, mas que se mostravam extremamente confusas e complexas de serem explicadas pelas secretarias que voltaram a assumir o protagonismo dos projetos e das políticas indígenas.

Ainda assim, mesmo sendo relegada a um papel inferior – a de ‘assessoria’ -, continuou um espaço importante, onde era possível ser recebido ‘com tempo’ suficiente para se ter um ‘papo de índio’. Um espaço que eu mesmo já estive várias vezes, sempre bem recebido, onde as questões sempre foram bem discutidas.

Ir à Rio Branco se reunir na Assessoria indígena passou a ser um movimento comum às lideranças indígenas. Órgãos como a FUNAI passaram, inclusive, a disponibilizar recursos para este traslado. Mas, com o passar dos anos, alguma coisa estava meio truncada ‘neste rio’, algum balseiro andava atrapalhando o percurso desse batelão. E isso começou a ser percebido pelas lideranças.

 

Um sinal claro foi que o outrora garboso espaço dos povos indígenas, sua embaixada na capital começou a mostrar que estava sendo relegada ao esquecimento. Sem estrutura de mobilidade para transporte das lideranças em suas agendas, com as cores e o colorido se apagando das paredes, sem um corpo técnico, sem recursos para realizar ações e, a meu ver, o que seria mais pernicioso à sua imagem: a sensação de invisibilidade de suas ações e poderes junto às demais instâncias de governo.

Na contramão disso vimos os secretários das demais secretarias indo nas aldeias, o governo se fazendo presente com muitos projetos e iniciativas interessantes, como o KFW, PROSER, PROACRE, etc. Fotos e mais fotos, matérias e mais matérias nas mídias. Sim! Projetos importantíssimos mas, alguma coisa não estava bem. Era como se, por mais que se fizesse presente, ainda assim, o governo ia pra mais longe. E assim, no afã de estar perto, afastou-se.

Creio que o problema foi a falta de sacação do governo em entender o  bê-a-bá básico no trato com os povos indígenas, que é a figura centralizadora do shaneybu que ouve e resolve a coisa, como antes era a figura do ‘Secretário Indígena, afinal, ‘governo’ é uma coisa muito grande, com muitas caras, onde nada é facilmente resolvido.

A personalização no atendimento e resolução dos problemas é algo fundamental para uma boa parceria, para a consolidação de processos, para a representatividade no discurso. Assim, mesmo com o fato importante de aproximar o secretariado das lideranças em suas comunidades, isso não promoveu a personalização no trato pois, como é sabido, a disponibilidade destes secretários é pequena dada as agendas que possuem, o acesso aos mesmos não é algo tão simples e o foco destes é mais amplo – o que pode atrapalhar no trato das especificidades dos povos indígenas.

Assim, este espaço criado como uma grande conquista do movimento indígena acreano, parece ter perdido esta proeminência de diálogo com os povos indígenas e, subsequentemente com o poder de decisão nas políticas de governo.

Claro que não irei desconsiderar, muito menos contradizer o que as lideranças manifestaram em sua carta, quanto a Assessoria Indígena. No entanto, na qualidade de partícipe do processo de sua criação, bem como na qualidade de quem vem acompanhando estas políticas, não poderia me furtar a expor minhas considerações a respeito.

Assim, creio eu que a instância que é demandada pelas lideranças nesta Carta de Maio já existe. E esta instância é a Assessoria de Assuntos Indígenas do Governo do Acre. Este é um espaço conquistado a duras penas na história do movimento indígena e indigenista acreano e não pode simplesmente ser deixado de lado. Tem que ser renovada, reconstruída e valorizada. Afinal, de nada adianta criar uma nova instância descolada de toda esta história, começar tudo do zero. Não é justo nem prudente. No entanto, em vez de uma ‘Assessoria’,  o que precisa é da Secretaria Indígena de volta, sem essa pegadinha de ‘extraordinária’.

Esta Carta de Maio diz muita coisa, traz muitos significados em suas entrelinhas, e as lideranças indígenas presentes no evento perceberam algo na apresentação dos projetos de governo. Por isso creio que é preciso reverter os mal entendidos que possam existir. É preciso reabrir o diálogo, baixar a guarda e vencer os balseiros que estão atrapalhando este diálogo. É preciso desconstruir certezas e as divisões e,  acima de tudo, é preciso entender que na luta pelos direitos e promoção da  questão indígena só existe um lado certo: a dos índios.

Por fim, neste mês pluvioso, o que desejo é que ao final deste ano doido em que estamos, e das lutas que estamos enfrentando, que tenhamos, ao menos, um bom quintidi**.

 

ANOTE AÍ:

Notas do autor:

* Quinto mês do calendário,  adotado durante a Revolução Francesa. O uso deste termo, no texto,  para o mês de maio é intencional, em alusão aos ânimos políticos que efervesce a sociedade brasileira.
** Chamado “dia das recompensas” segundo este mesmo calendário.

Fotos: As fotos usadas nesta matéria foram selecionadas por Jairo Lima e são da autoria de:

Foto 1 – Jovens Huni Kuin – Foto: Assis Huni Kuin
Foto 2 – Criança Yawanawá – Foto: Sérgio Vale
Foto 3 – Marubo – Foto: Kenampa Marubo
foto 4 – Crianças e Huni Kuin – Foto: Beth Linz Specht
Foto 5 – Milton Kuntanawa – Foto: Talita Oliveira

 

 

 

 

Jairo Lima, escritor e indigenista acreano, publica suas crônicas semanalmente no blog www.cronicasindigenistas.blogspot.com.br  e, por gentileza do autor, publicadas também aqui neste nosso sie da Xapuri xapuri.info

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