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Marco Temporal, Não: O voto “Fachin”

Marco Temporal, Não: O voto “Fachin”

O Ministro Luiz Edson Fachin emitiu, na tarde do dia 9 de setembro, seu voto histórico contrário ao Marco Temporal no plenário do Supremo Tribunal Federal, em Brasília.

Por Juliana de Paula Batista

Nele, Fachin reconhece que os direitos dos povos indígenas são fundamentais: “enquanto direitos fundamentais, estão imunes às decisões das maiorias legislativas eventuais com potencial de coartar o exercício desses direitos, uma vez consistem em compromissos firmados pelo constituinte originário”.

A tese lançada pelo ministro, e já defendida em voto pelo ministro Luís Roberto Barroso, é uma pá de cal em propostas como o Projeto de Lei (PL) 490, que está em pauta na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados. O PL pretende inviabilizar as demarcações.

No voto, Fachin também não acolheu a tese do “marco temporal” de ocupação. Segundo essa teoria, somente indígenas que estivessem nas terras em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, teriam direito à demarcação de suas terras.

“Entender-se que a Constituição solidificou a questão ao eleger um marco temporal objetivo para a atribuição do direito fundamental a grupo étnico significa fechar-lhes uma vez mais a porta para o exercício completo e digno de todos os direitos inerentes à cidadania”, disse o ministro.

Sobre o “marco temporal” e os indígenas que vivem em isolamento voluntário, Fachin questionou: “estando completamente alijadas do modo de vida ocidental, de que modo farão prova essas comunidades de estarem nas áreas que ocupam em 05 de outubro de 1988?”

O ministro também destacou que o reconhecimento dos direitos territoriais indígenas independe da comprovação do chamado “renitente esbulho”, tese que exigia conflito de fato documentado ou ação possessória judicializada em 5 de outubro de 1988 como únicos meios de comprovar expulsões.

Ao analisar o estatuto jurídico das terras indígenas, o ministro reafirmou a teoria do “indigenato” e a jurisprudência do Supremo, que historicamente reconhece que os direitos dos indígenas sob suas terras independe de demarcação, visto se tratar de direitos “originários”.

O último parágrafo da proposta de tese exposta por Fachin trata da compatibilidade entre as terras indígenas e a tutela do meio ambiente, dizendo que não são incompatíveis.

“Autorizar, à revelia da Constituição, a perda da posse das terras tradicionais por comunidade indígena, significa o progressivo etnocídio de sua cultura, pela dispersão dos índios integrantes daquele grupo, além de lançar essas pessoas em situação de miserabilidade e aculturação, negando-lhes o direito à identidade e à diferença em relação ao modo de vida da sociedade envolvente, expressão maior do pluralismo político assentado pelo artigo 1º do texto constitucional.  Não há segurança jurídica maior que cumprir a Constituição”, finaliza Fachin.

PRINCIPAIS DESTAQUES DO VOTO

CLÁUSULA PÉTREA: “Em primeiro lugar, incide sobre o disposto no artigo 231 do texto constitucional a previsão do artigo 60, §4º da Carta Magna, consistindo, pois, cláusula pétrea à atuação do constituinte reformador, que resta impedido de promover modificações tendentes a abolir ou dificultar o exercício dos direitos individuais e coletivos emanados do comando constitucional.”

DIREITOS FUNDAMENTAIS: “Em segundo lugar, os direitos emanados do artigo 231 da CF/88, enquanto direitos fundamentais, estão imunes às decisões das maiorias legislativas eventuais com potencial de coartar o exercício desses direitos, uma vez consistirem em compromissos firmados pelo constituinte originário, além de terem sido assumidos pelo Estado Brasileiro perante diversas instâncias internacionais (como, por exemplo, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e a Declaração das Nações Unidas sobre os Povos Indígenas). Portanto, consistem em obrigações exigíveis perante a Administração Pública, consistindo em dever estrutural a ser desempenhado pelo Estado, e não meramente conjuntural. Em terceiro lugar, por se tratar de direito fundamental, aplica-se aos direitos indígenas a vedação ao retrocesso e a proibição da proteção deficiente de seus direitos, uma vez que atrelados à própria condição de existência e sobrevivência das comunidades e de seu modo de viver.”

DIREITOS INDEPENDEM DE DEMARCAÇÃO: “(…) a posse permanente das terras de ocupação tradicional indígena independe da conclusão ou mesmo da realização da demarcação administrativa dessas terras, é direito originário das comunidades indígenas, sendo apenas reconhecimento, mas não constituído pelo ordenamento jurídico. A natureza jurídica do procedimento demarcatório é meramente declaratória, consiste na exteriorização da propriedade da União, vinculada e afetada à específica função de servir de habitat para a etnia que a ocupe tradicionalmente. É atividade do Poder Executivo, desempenhada por diversos órgãos, conforme o procedimento acima demonstrado, mas que não cria terra indígena, apenas reconhece aquelas que já são, por direito originário, de posse daquela comunidade. A homologação final do procedimento, realizada pelo Presidente da República nos termos do artigo 5º do Decreto nº 1.775/1996, presta-se a atestar o devido cumprimento ao disposto no artigo 231 e à legislação de regência. Por se tratar de procedimento administrativo que reconhece o exercício de um direito fundamental, não é possível que razões de conveniência e oportunidade sejam alegados para deixar de se reconhecer a tradicionalidade da ocupação indígena.”

MARCO TEMPORAL: “Analisada a trajetória constitucional da tutela da posse indígena, compreendo que a Constituição vigente não representa um marco para a aquisição de direitos possessórios por parte das comunidades indígenas, e sim um continuum, uma sequência da proteção já assegurada pelas Cartas Constitucionais desde 1934, e que agora, num contexto de Estado Democrático de Direito, ganham os índios novas garantias e condições de efetividade para o exercício de seus direitos territoriais, mas que não tiveram início apenas em 05 de outubro de 1988.”

INDÍGENAS ISOLADOS: “Ademais, a chamada teoria do marco temporal ignora, em sua formulação, a situação dos índios isolados, ou seja, comunidades indígenas de pouco ou nenhum contato com a sociedade envolvente, ou mesmo com outras comunidades indígenas. A compreensão de uma sociedade plural e de respeito à diversidade, como aquela que a Constituição de 1988 busca constituir, exige que se respeite o direito à autodeterminação desses povos, mantendo-os fora do contato constante com outras pessoas, em respeito a seu modo de vida e evitando sua dizimação, como ocorreu notoriamente em nosso País com outras comunidades contatadas ao longo da história”.

TERRAS INDÍGENAS E GOVERNOS ESTADUAIS: “Logo, se se aplica a teoria do marco temporal, e não se verifica a presença indígena na data de 05 de outubro de 1988 na área considerada, não é suficiente apontar que a terra não seria indígena. É preciso questionar-se, então, de quem seria a titularidade da área que deveria ter revertido ao patrimônio público federal, uma vez ser impossível usucapião de terra pública. Como acima se apontou, terra indígena não é terra devoluta; assim, as terras não podem ter ingressado no patrimônio estadual e, portanto, não podem ter sido legitimamente transferidas ao patrimônio privado”.

 “RENITENTE ESBULHO”: “É preciso que esse abandono se revista de um caráter eminentemente voluntário por parte da comunidade, sem a configuração de qualquer forma de esbulho das terras por parte de terceiros, e sem a exigência de um conflito físico ou de uma demanda possessória ajuizada e em trâmite à data de 05 de outubro de 1988. As formas de resistência indígena à ocupação ilícita de suas terras deve ser perquirida de acordo com a concepção que cada etnia possui sobre as formas de resistir às invasões. Pelas razões acima elencadas, concluo que a proteção constitucionalaos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988 e da configuração do renitente esbulho como conflito físico ou controvérsia judicial persistente à data da promulgação da Constituição”.

USUFRUTO EXCLUSIVO: “Dessa feita, asseguram-se aos indígenas o uso e fruição das riquezas do solo, rios e lagos existentes na terra indígena, de forma exclusiva. Isso significa a impossibilidade de concessão de qualquer forma de direito real ou pessoal sobre essas riquezas a terceiros externos à comunidade indígena em favor da qual se configure a ocupação tradicional, ou mesmo a realização de atos negociais com os índios que lhes retire da condição de usufrutuários exclusivos da terra.”

 PARÁGRAFOS DO ARTIGO 231: “Mesma ratio informa o disposto nos §§ 3º, 5º e 7º do dispositivo constitucional, com a garantia de oitiva prévia das comunidades afetadas, em caso de aproveitamento de recursos hídricos e pesquisa e lavra de riquezas minerais, desde que haja aprovação específica do Congresso Nacional e participação na lavra, na forma da lei; vedação de remoção das comunidades indígenas de suas áreas, em razão da posse permanente e exclusiva, fora das hipóteses constitucionais, assegurado o retorno tão logo passada a causa da retirada provisória; e a vedação à garimpagem em terras indígenas. Tudo a corroborar a posse permanente com usufruto exclusivo das riquezas naturais pelos índios. São garantias que colocam as terras indígenas como res extra commercium, sobre as quais nenhuma negociação privatística é possível, em respeito à natureza pública e afetada à manutenção do bem-estar indígena a caracterizar essas áreas”.

 TÍTULOS NULOS E EXTINTOS: “Dessa forma, compreende-se que a cadeia dominial de determinada área, por si só considerada, não tem o condão de impedir procedimento demarcatório, diante da existência de direito originário à posse das terras tradicionalmente ocupadas, da proteção constitucional e normativa desse direito, desde antes do período republicano, bem como da consideração de que o texto constitucional reconhece a posse, mas não a constitui, donde não ser possível a existência de posse ou propriedade privada em terras indígenas. Outro aspecto referente ao dispositivo em comento, e que decorre da nulidade dos títulos dominiais, é a impossibilidade de se pleitear indenização ou ação em face da União em razão da nulidade ou da extinção do título proprietário ou possessório, salvo quando às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.

TERRAS INDÍGENAS E MEIO AMBIENTE:  “Logo, não há incompatibilidade entre os artigos 231 e 225 do texto constitucional, pois os índios detém todo o interesse na proteção dessas áreas. A manutenção das florestas, da biodiversidade, de rios e lagos despoluídos, asseguram o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais, mantendo a qualidade de vida dessas comunidades. A dupla afetação entre terras indígenas e áreas de proteção ambiental não é inviável, ao revés, como demonstra o diploma normativo acima citado. Nada obstante, em se considerando o direito originário das comunidades indígenas, as políticas de proteção ambiental não podem interferir no exercício das atividades tradicionais dos índios, a uma, porque não se configuram em ações predatórias ao meio ambiente, a duas, porque os usos, costumes e tradições indígenas consistem no núcleo do reconhecimento da tradicionalidade da ocupação tutelada pelo artigo 231 do texto constitucional.”

REPERCUSSÃO GERAL: “Nada obstante, o juiz que analisa essa espécie de litígio, ainda que se trate de processo com rito abreviado, deverá, primeiramente, considerar os elementos caracterizadores da posse indígena, como colocado no presente voto:

  1. a demarcação consiste em procedimento declaratório do direito originário territorial à posse das terras ocupadas tradicionalmente por comunidade indígena;
  2. a posse tradicional indígena é distinta da posse civil, consistindo na ocupação das terras habitadas em caráter permanente pelos índios, das utilizadas para suas atividades produtivas, das imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e das necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos costumes e tradições, nos termos do §1º do artigo 231 do texto constitucional;
  3. a data da promulgação da Constituição de 1988 não constitui marco temporal para a aferição dos direitos possessórios indígenas, sob pena de desconsideração desses direitos enquanto direitos fundamentais, bem como de todo o arcabouço normativo-constitucional da tutela da posse indígena ao longo do tempo;
  4. não se exige para a demonstração de renitente esbulho a instauração de demanda possessória judicializada à data da Constituição de 1988, ou mesmo de conflito fático persistente em 05 de outubro de 1988;
  5. o laudo antropológico realizado nos termos do Decreto nº 1.776/1996 é elemento fundamental para a demonstração da tradicionalidade da ocupação de comunidade indígena determinada, de acordo com seus usos, costumes e tradições; o redimensionamento de terra indígena não é vedado em caso de descumprimento dos elementos contidos no artigo 231 da Constituição da República, por meio de procedimento demarcatório nos termos nas normas de regência. O adequado cumprimento da Constituição é regra primordial para a manutenção de um Estado Democrático de Direitos, no qual se assegure a todos, sem distinção, os direitos que o Texto Magno confere, individuais e coletivos (…) Não há segurança jurídica maior que cumprir a Constituição.”

Juliana de Paula Batista – Advogada do Instituto Socioambiental – ISA. Com edições de Zezé Weiss. Capa: Espaço Vital. 


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