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CoisaNawa: Nem todos que usam cocar por aí  são índios…

CoisaNawa: Nem todos que usam cocar por aí  são índios…

Por Jairo Lima 

Realmente o Acre não é para os desavisados. Principalmente o Acre indígena. Nesta semana veio a público uma matéria envolvendo a prisão de um indígena, na cidade de Feijó. Prisão esta que desencadeou manifestações de todos os tipos: das mais sensatas às  mais estapafúrdias possíveis. É o assunto do momento no palco virtual das emoções, onde todos têm sempre uma opinião, geralmente desprovida de mais conteúdo do que “eu acho que”.

Durante a semana, enquanto voava sopapos de todos os lados, como crianças brincando de ‘guerra’, jogando bolotas de lama enquanto escondem-se atrás da cerca, um amigo, a quem prezo muito questionou-me porque ainda não manifestei minha opinião sobre o caso todo.

Bem… acontece que não posso ainda expressar minha opinião sobre isso, pois, por questões de ética profissional, não poderei me manifestar até o término das apurações – para quem não sabe, o indigenismo, além de um caminho escolhido há muito tempo, também é minha ocupação profissional.

Na verdade, até fico feliz desta restrição, pois, tenho como princípio esperar a comida esfriar um pouco antes de comê-la, a fim de que não passe mal depois.

Se não ia escrever sobre o assunto, então porque citou?

Porque quis e porque posso. Para os que possuem a capacidade de refletir – pois, da águia admiram a visão em vez de sua capacidade de voar alto –  entenderão que já expus minha opinião nos parágrafos acima.

Mas o papo de hoje, apesar de não versar sobre este problema especificamente,  tem certa transversalidade com essa confusão toda. Porém, o cerne da crônica são os ‘índios fake’ ou, como prefiro dizer: os ‘coisanawa’.

Que esse mundo dos nawa (não-índio) está uma loucura todo mundo sabe. Tem horas que dá vontade de fugir para um local bem distante (no meu caso , frio também), onde  racionalidade reinasse, e o caos social e político não fosse a ordem do dia.

É muito comum passarmos por momentos de negação total, como refúgio para nos mantermos minimamente sãos. Quantos não acordam pela manhã com aquela sensação desconfortável de ter que enfrentar o mundão ao sair do quarto? Se algum dos leitores não sente isso, parabéns!  Vocês fazem parte de um seleto grupo de bem-aventurados, que exibem sorrisos radiantes, com a certeza de que o dia se passará sem nenhum sobressalto, tal qual a execução de um minueto de Bach.

Infelizmente não sou assim, os pensamentos afloram dois segundos após abrir os olhos pela manhã e, nas labutas diárias, apesar da satisfação de fazer o que faço, fico sempre à espera de algum sobressalto, tal qual um dos saltitantes minuetos de Mozart.

A busca pela sanidade e o equilíbrio são uma constante em minha vida. ‘Rotas de fuga’ e auto-terapias (como a jardinagem e a música) fazem parte de minha vida. E dentro destas rotas, claro, o ápice restaurador é a cultura indígena, a vida em aldeia, conviver e viver o cotidiano monótono da passagem do tempo, que vai desacelerando à cada dia de imersão na comunidade.

E assim, lá se vão mais de quatro décadas de vida nessa toada, e, dentro destas dezenas todas, duas de contato e vivência com estes povos. Mas, nisso tudo, tem um detalhe muito importante, essencial até: não sou indígena. Nunca serei.

Posso sim (e sou) considerado ‘parente’ por povos indígena aqui do Aquiry, membro da comunidade, com nome indígena e tal (em dois casos, com direito preparação e tudo, após anos de contato e meses na comunidade, sem essa onda fake de ser ‘batizado’ de qualquer jeito, após algum ritual de cipó estilo ‘ sagrado gourmet’). Tombaria junto com estes povos em qualquer trincheira de luta.

No entanto , tenho total clareza para entender perfeitamente o local que me cabe nessa história toda. Sentir-me indígena não me dá o direito de reivindicar uma identidade que, por alguma decisão cósmica que não consigo entender, não me veio com o nascimento, infelizmente.

Digo isso pois fico olhando certas figuras que, em alguns casos sem nem um centésimo do que eu vivi, assumiram para si uma falsa identidade indígena, criando toda uma história de vida para justificar essa identidade. São figuras conhecidas até, fáceis de achar no facebook ou nas ‘rodas de conversa’ dos fóruns, ‘zaps’ ou páginas diversas.

Estes ostentam um ‘nome’ indígena que, em geral, nada tem a ver com o processo de ‘nomeação’ tradicional no povo a que dizem pertencer. Ostentam uma parafernália de enfeites estranhos, e muitas vezes exagerados, geralmente ‘chupados’ de diversas culturas indígenas mais conhecidas (pois raramente conhecem a fundo detalhes das culturas que dizem pertencer).

Essas estranhas figuras geralmente se dividem em dois tipos: Uma versão black bloc, onde sempre estão envolvidos nas mais diversas presepadas que envolvam violência, depredação e protestos por causas tão bizarras quanto eles mesmos e; os xamãs/pajés, que alardeiam os poderes fodásticos que possuem, e que fazem o possível para que todos saibam que ele é ‘pajé’, procurando falar de coisas espirituais, e ostentar nas redes sociais frascos com ayahuasca, rapé, ou cocares estranhos, imagens de bichos e o escambau. Em geral, os que se passam por xamã/pajé constituem a maioria dessa estranha ‘fauna’.

O interessante que não existe nem um único ‘coisanawa’ que queira ser Guarani-Kaiowá, e se coloque na frente de batalha fundiária deste povo, sob o risco de levar chumbo de jagunços ou ter as mãos decepadas. Claro que não! Como gosta de dizer meu querido amigo egípcio Ali: Não dá rock!

Eu entendo que a negação sobre si mesmo pode levar alguém a transformar-se, a querer ser outra pessoa. O que acho muito louco nisso tudo é que estes assumem uma identidade indígena, e, em todos os casos que conheço, nenhum destes ‘convertidos’ contribuem positivamente para a luta pelos direitos dos povos originários. Ao contrário, essas criaturas só atrapalham e marginalizam a causa.

O que chama a atenção é que esses caras ainda conseguem arrumar uma penca de desavisados que os seguem e, em alguns casos, chegam a idolatrar os figuras. Isso me intriga, pois, na era da informação em que vivemos, basta umas poucas horas de estudo na internet para desmascarar esses pulhas. Essa é uma questão interessante: seguidores.

Estes, assim como os que assumem uma falsa identidade, também estão em busca de dar sentido às suas vidas, em busca de algo, como uma carência que não tem fim. No entanto esses seguidores, pelo menos no caso dos ‘pajeca coisanawa’ não fazem mal a ninguém, se não a eles mesmos por entregarem-se aos cuidados espirituais de quem não tem condições de cuidar nem de si mesmo.

O que acho mais doido é essa fixação obsessiva, de muitos destes, em se apresentar como indígena da amazônia, em especial do Acre. Eu hein!! Mas tem um detalhe: não qualquer povo do Acre, e sim, os mais conhecidos mundo afora. Advinha quais. Interessante né? Creio que isso é para que se tenha mais status ou talvez, porque esses coisanawa não conhecem muito sobre os povos daqui.

Pareço estar chateado com isso tudo né? Respondo: Tô mesmo. Ou como se pronuncia aqui no Juruá: Tô meeermú! E como não estaria? Eu não tenho nenhum trauma ou inconstância de caráter, que tenha me feito chegar a uma negação igual a desses caras, mas, apesar de não me identificar como sendo índio, eu me identifico e me alinho totalmente com esses Povos, melhor, ainda emanado na reunião que tive sexta com o Biraci Brasil Nixiwaka Yawanawá, ousarei na definição: com estas civilizações. Por isso presepadas como as que estes caras fazem me irritam profundamente.

Dia desses imprimi os  perfis do Facebook  dos caras e mostrei para alguns dos caciques, dos povos que estes dizem fazer parte. Creio ser desnecessário dizer qual a reação destes.

Aproveito este texto de hoje, já que estamos tentando deixar as coisas bem claras para responder um questionamento que vez ou outra me chega, via mensagem ou mesmo através de ligações telefônicas: “Porque você não cita logo os nomes deles”?

Respondo: “Pelo mesmo fato de que não me apresento como indígena, ou seja, por não ter este direito, por não trazer para mim tal poder que não me cabe, em miúdos: por saber qual o meu lugar nisso tudo”. – Respondido? Mas não pensem que a coisa está solta não. As lideranças estão pedindo cópias destes perfis para fazerem manifestações públicas sobre estes, o que, para certos grupos que conheço pelo Sudeste e Sul, vai ser um choque danado.

Já está enchendo a panelinha ver as medicinas e rituais dos povos da amazônia serem macaqueados por falsos índios, pajecas, terapeutas e o escambau, que descobriram uma verdadeira mina de ouro e de possibilidades, e, por isso, infestam (isso mesmo, o verbo infestar é proposital) as redes sociais oferecendo-se para rituais, terapias, ‘sagrado disso ou daquilo’.

Para piorar, descobri que tem um grupinho lá pelo Sul que anda fazendo chá de misturas de plantas que dão ‘barato’ e dizem ser ayahuasca, para enganar os desavisados. Era só o que faltava. Depois morre alguém e sabem que vão culpar? Eu vos digo: o ‘pajé’ indígena que veio do Acre.

É por isso, gente boa, que coisas como a que estão acontecendo hoje aqui pelo Aquiry envolvendo muitos jovens indígenas não vieram ‘do nada’. Fazem parte de uma cadeia de eventos e situações que só contribuem para essa confusão toda. Não se iludam.

Abram os olhos e a mente. Sejam espertos e busquem saber mais sobre estes messias de araque que se auto-promovem por aí. Não se deixem levar para batalhas sem causa justa, nem deixem que esculhambem com seu espírito.

Como bem me ensinou há quinze anos atrás meu compadre Ali Zeilton, um muçulmano egípcio que muito viajou pelas aldeias acreanas: Confia em Alá, mas amarre seu camelo.

O meu está bem amarrado e o de vocês?

CRÉDITOS:

Jairo Lima – indigenista acreano gentilmente cede seus relatos, publicados regulamente em seu blog cronicasindigenistas.blogspot.com.br para publicação também aqui na Xapuri. Gratidão, Jairo. As imagens desta matéria são foram selecionadas por Jairo, e são de peças indígenas descritas como:

1. Cocar Bororo
2. Cocar Irantxe
3. Coroa Ashaninka
4. Faixa Huni Kuin
5. Cocar Karajá
6. Cocar Kayapó
As fotos são todas imagens de divulgação, extraídas da internet. Não foi possível identificar seus autores.

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Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

 

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