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Hãtxa Kuin: uma língua indígena, um significado de mundo

Hãtxa Kuin: Uma língua indígena, um significado de mundo

Encerrou-se na semana passada o “Curso de Hãtxa Kuin”, protagonizado pelo Prof. Dr. Joaquim Maná Kaxinawá. O curso foi  realizado na aldeia Água Viva, Terra Indígena Praia do Carapanã, aqui nas terras do Aquiry.

Por Jairo Lima

Sempre faço uma troça inocente sobre essa terra Huni Kuin (que os brancos chamam de Kaxinawá), informando aos interessados em conhecê-la que, a despeito do maravilhoso Povo que lá habita, e da beleza exuberante da natureza que a circunda, Deus decidiu que este seria o lugar onde morariam os mais nervosos e insaciáveis piuns e carapanãs da Amazônia.

O curso  foi especial, foi um marco no processo de fortalecimento do hãtxa kuin (língua tradicional do Povo Huni Kuin), pois desta vez vemos a iniciativa e sua execução totalmente sob a égide dos detentores dessa língua.

Esclareço que a  afirmação acima não procura visões simplistas ou panegíricas superficiais só porque a atividade foi realizada por professores indígenas. Nada disso. Temos um doutor em linguística à frente do processo, ou melhor, temos um doutor Huni Kuin que além de falante (e pensante) do hãtxa kuin,  também possui todas as ferramentas necessárias para o ambicioso projeto que o move: fortalecimento e expansão da língua materna.

O mais recente texto da Raial Orutu Puri, “Resposta a Samman Potéh”,  publicado aqui neste site da Xapuri e também no meu blog Cronicas Indigenistas, além de ser de uma profundidade singular, em seus parágrafos finais lembraram-me pensamentos que há muito circulam em minha mente e que me atiçaram a estudos e observações ao longo destes muitos anos, de subidas e descidas de barrancos. Trata-se da língua indígena.

Sempre apreciei ouvir e entender as nuances das línguas. Por exemplo, sempre achei a nossa lusitana “língua das luzes” a mais bela das línguas ocidentais, rivalizando em beleza e harmonia com a língua romântica francófona.

Quando me deparei com a língua indígena, desde o começo, passei a sentir uma curiosidade enorme sobre esta. Interesse que só fez aumentar quanto mais submergia nos mistérios cósmicos do huni (ou Kamarãpi, ou Uni). Não se tratava de entender a lógica linguística ou sua morfologia. Sempre foi algo mais, a essência do meu interesse sempre foi a sua força mística. Ou seja, a “verbalização da força”.

Hã!?

Não entrarei em delongas ou querelas com meus amigos linguistas, até porque não teria como rivalizar com eles quanto ao conhecimento sobre as entranhas estruturais das línguas, ou como aprendi com o velho Kupi Kaxinawá: “as tripas e os nós da coisa”.

Claro que as línguas indígenas não são iguais e, também, tenho cá as minhas preferências, mas de maneira geral acho todas muito lindas porque mantêm uma riqueza ímpar justamente por ainda se apresentarem, em muitos casos, em um formato mais primitivo onde “aquilo que se quer mostrar é realmente aquilo que se queria dizer ou mostrar” e que, ainda, carrega consigo toda uma mística e complementaridade com a natureza em que a mesma surgiu, bem como toda uma lógica de mundo.

Assim, para mim, este pormenor faz com que a língua indígena, em sua essência, seja mais que uma ferramenta de comunicação. Ela representa muita coisa e possui muitas faces.

Ela detém o “poder da palavra” que tanto é apreciado e que faz parte das culturas orientais, principalmente daquelas reconhecidas como as mais espiritualizadas, como, por exemplo, a tibetana, a hindu ou ainda em culturas africanas como as usuárias do iboga. Em nossa cultura ocidental este espaço foi, ao longo de muitos anos, restringindo-se a espaços pré-determinados, como as orações/rezas e, em certos aspectos, as homilias.

As canções do Huni são um bom exemplo do poder místico que a verbalização do etéreo e dos encantos da natureza tem sobre quem os ouve. É possível sentir a força e a energia emanada de cada palavra, cada frase e como esta se mescla a todo um cosmos de poder e entendimento.

Ouvir um bom txana (cantor de cipó) num ritual é uma experiência quase palpável do que estou afirmando. Para os que já experimentaram isso sabem bem o que quero dizer. Vejam bem, não estou sacralizando a língua indígena. É preciso citar isto antes de seguir neste texto, um tanto confuso para os que não conseguirem “sintonizar-se” com a mensagem.

Esse “poder” contido no ato de falar, em que as palavras formam frases e estas, por conseguinte tornam-se sentenças místicas que necessitam ser conhecidas e, por conseguinte dominadas, fica patente quando se faz a principal dieta de iniciação dos que desejam trilhar o caminho do sagrado indígena.

É como me disse, certa vez, o professor Nani Yawanawá ao recordar sua experiência durante a dieta a que se submeteu sob orientações do grande pajé Yawanani onde, segundo ele, após três meses de intensa preparação com uso das medicinas sagradas, ele sentia que se pronunciasse algo seria capaz de fazer o bem ou o mal a alguém, pois sentia que a força contida na natureza poderia ser canalizada e posta sob seu comando somente com a verbalização. Ouvi muitos relatos como esse ao longo dos anos.

Outra face que se apresenta é o que chamo de “ótica de mundo”, Explico: Quando iniciei minhas subidas pelos barrancos dos rios acreanos me sentia incomodado quando, no meio de alguma reunião na aldeia onde estávamos falando em “portuguíndio” (português indígena), os locais passassem a falar somente em sua língua materna, excluindo-me totalmente do assunto.

Porém, após alguns anos, passando a conhecer mais estas línguas, estas situações não me incomodavam mais, ao contrário, passei a ter o entendimento de que não era o fato de que o “assunto não me dizia respeito” e, sim que, para o entendimento total do assunto, este necessitava ter sua “estrutura com tripas e nós” postas sob a ótica linguística deles.

Entendo aqui que essa ótica ultrapassa a lógica de língua como “ferramenta de comunicação” indo para um patamar mais elevado e rico do “sentido de mundo a partir da língua”. Afinal, a lógica do pensamento enquanto manifestação de mundo parte do princípio que a percepção deste se verbaliza através da linguagem.

Claro que depois de alguns anos de convivência, você começa a dominar um pouco a fala da língua, porém, a lógica da mesma demora mais um pouco. Afinal, “pensar em língua indígena” não deve ser muito fácil.

Outro aspecto da língua indígena é o seu simbolismo de identidade e resistência cultural: “o nawa ainda não conseguiu entrar nesse mundo ainda, não conseguiu vencer” – ouvi certa vez esta frase do professor Joaquim Maná.

  • Como não? Muitos linguistas conseguem entender a língua indígena! – Posso até ouvir a manifestação de alguns estudiosos, mas, não é esta a questão. Entender sua estrutura não faz alguém falante da mesma, certo?

Observo que nesse mundo globalizado, líquido e niilista em que vivemos atualmente, estamos diante de um novo processo de colonização cultural que vem trazer mais um aspecto que, em certo grau, mina nossa “identidade”, reduzindo termos e frases a palavras que sintetizam a ideia do que se quer informar, ou criando palavras que expressem todo um sentido de entendimento em uma única sentença.

Também, novos aplicativos e necessidades linguísticas nos fazem migrar, a cada dia, a cada nova ferramenta, para uma dinâmica de transformação que, mais que nos “atualizar” e nos empoderar para a comunicação social e midiática atual, transforma-nos em um “novo ser”, planificando-nos em uma tábua cultural comum de “identidade” em que perdemos nossa singularidade regional ou familiar. A partir desta análise creio que é possível entender realmente a frase do professor Joaquim Maná.

Assim, mais que um gesto de valorização da língua, o fomento ao seu reconhecimento e utilização é acima de tudo a luta pela manutenção do “mundo como ele sempre foi” e que, para muitos indígenas e não indígenas, parece ser o que tinha (ou se tem) mais sentido.

Incrível que no Acre, por exemplo, um Estado onde existem cerca de quinze línguas indígenas, sendo que dessas  ao menos umas oito são faladas socialmente nas comunidades, ou seja, é a língua de comunicação, não haja uma política de valorização destas línguas, política esta que vá além da publicação de cartilhas e livros didáticos para as escolas indígenas.

É preciso que a valorização vá além dos limites das aldeias, englobando as cidades também, suas escolas e nichos de estudo. Até mesmo nas escolas indígenas (pelo menos no Acre), salvo aquelas em que a língua de instrução é a língua indígena, o seu fomento e fortalecimento ainda é muito incipiente.

Como tenho muito contato com as línguas nativas dos povos originários destas terras de Galvez, até porque trabalho junto a eles há muitos anos, confesso que, por vezes, me sinto meio que vendo o mundo através de um caleidoscópio que me ajuda a filtrar este mundo que me cerca e que, pelo menos para mim, torna-o mais suportável e decifrável. E dadas as aventuras e desventuras deste ano que finda, esse caleidoscópio foi fundamental para minha serenidade.

Por tudo isso é que vejo a iniciativa capitaneada pelo Prof. Dr. Joaquim Maná como um marco nesse processo, ainda mais pelas propostas e projetos que vêm a reboque desta iniciativa. Também, por toda a trajetória de vida deste professor, é que acredito muito nessa caminhada que foi iniciada a partir desse curso de hãtxa kuin.

Assim como Platão cita que “o sábio é senhor na própria casa”, ver os professores Huni Kuin assumirem o protagonismo dessa ação é, a meu ver, o caminho mais legítimo e que pode ter bons frutos para a manutenção e fortalecimento da língua materna. As sementes plantadas nesse curso hão de brotar e dar bons frutos.

 

Jairo Lima, o autor desta matéria, é indigenista, radicado em Cruzeiro do Sul, Acre. Além de parceiro da Xapuri, Jairo publica seus escritos em seu próprio blog: cronicas indigenistas A imagem de capa é do fotógrafo acreano Sergio Vale.

 

 

 


Block

Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.

Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.

Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.

Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.

Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.

Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.

Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.

Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.

Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.

Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.

Zezé Weiss

P.S. Você que nos lê pode fortalecer nossa Revista fazendo uma assinatura: www.xapuri.info/assine ou doando qualquer valor pelo PIX: contato@xapuri.info. Gratidão!

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