Kambô, o sapo que cura
Por Jairo Lima/Crônicas Indigenistas
Primeiramente, para quem não sabe, a popularmente chamada “vacina do sapo”, ou simplesmente “kambô”, é mais uma das medicinas indígenas da Amazônia, muito comum no Acre e no Peru.
O kambô, que na verdade é feito com a secreção de uma rã (Phyllomedusa bicolor), serve principalmente para afastar as “panemas”, que é o estado negativo de nosso espírito que atrai as doenças, os problemas e as desarmonias na vida da gente.
A ciência do kambô é algo muito sério porque está diretamente ligada a aspectos ritualísticos, sem os quais perde seu objetivo principal, que é a harmonização de nosso yuxin com as forças espirituais da natureza. E o yuxin é um dos nossos espíritos, pois, segundo a crença de muitos povos indígenas, todos nós temos dois.
Não se trata, portanto, só de fazer os “três pontinhos”, aplicar a secreção e ficar esperando o momento de retirá-la. O kambô é uma medicina, um “remédio” que se toma quando se tem necessidade e, ao contrário do que muitos dizem, pode sim levar alguém à morte.
Nota-se o aumento de pessoas que se apresentam como aplicadores de kambô, que se dizem conhecedores da medicina. É preciso ter cuidado com o charlatanismo e com a pirataria. Essa medicina já foi alvo de briga internacional entre os indígenas do Acre e empresas internacionais que tiveram a ousadia de, além de piratear, também patentear os princípios ativos encontrados na secreção da kambô.
Há também que se refletir se o aumento na procura da secreção dessa rã pode ter algum impacto ambiental sobre a espécie, uma vez que as kambôs não são criadas em cativeiro, sendo sua obtenção através da captura na natureza.
– Ué… quer dizer que se for índio que aplica está tudo bem?
Não, o pressuposto de ser indígena não garante a aplicação correta dessa medicina. Seria a mesma coisa que achar que todo japonês sabe preparar um sushi. Entretanto, os indígenas que utilizam essa medicina a conhecem desde a infância e sabem muito sobre seus rituais, dietas e aplicações, mesmo sem ser, necessariamente, um pajé.
No Acre, todos os povos indígenas são usuários do kambô, mas os Yawanawá, os Kaxinawá e os Katukina sempre foram considerados os principais expoentes desse conhecimento, principalmente por sua luta pelo reconhecimento e pela proteção desse conhecimento como exclusivo dos povos indígenas.
Os povos indígenas defendem a retomada das pesquisas sobre essa medicina, para que se defina o seu uso como homeopático, reconhecendo, valorizando e certificando as comunidades indígenas e extrativistas por seu conhecimento.
Defendem, ainda, o estabelecimento de “casas de cura”, a exemplo do governo chinês que as criou para vários tratamentos tradicionais na China. Até lá, é preciso informar, esclarecer e, se necessário, reprimir a comercialização e o uso indiscriminado do kambô.
E é fundamental entender que só quem está doente busca a cura. Assim como só quem está em desarmonia busca harmonizar-se. Afinal, água demais faz transbordar o pote, e o peso em demasia pode derrubá-lo e quebrá-lo, diz a sabedoria indígena.
Jairo Lima
Indigenista acreano, em Crônicas Indigenistas
Era novembro de 2014. Primeiro fim de semana. Plena campanha da Dilma. Fim de tarde na RPPN dele, a Linda Serra dos Topázios. Jaime e eu começamos a conversar sobre a falta que fazia termos acesso a um veículo independente e democrático de informação.
Resolvemos fundar o nosso. Um espaço não comercial, de resistência. Mais um trabalho de militância, voluntário, por suposto. Jaime propôs um jornal; eu, uma revista. O nome eu escolhi (ele queria Bacurau). Dividimos as tarefas. A capa ficou com ele, a linha editorial também.
Correr atrás da grana ficou por minha conta. A paleta de cores, depois de larga prosa, Jaime fechou questão – “nossas cores vão ser o vermelho e o amarelo, porque revista tem que ter cor de luta, cor vibrante” (eu queria verde-floresta). Na paz, acabei enfiando um branco.
Fizemos a primeira edição da Xapuri lá mesmo, na Reserva, em uma noite. Optamos por centrar na pauta socioambiental. Nossa primeira capa foi sobre os povos indígenas isolados do Acre: ‘Isolados, Bravos, Livres: Um Brasil Indígena por Conhecer”. Depois de tudo pronto, Jaime inventou de fazer uma outra boneca, “porque toda revista tem que ter número zero”.
Dessa vez finquei pé, ficamos com a capa indígena. Voltei pra Brasília com a boneca praticamente pronta e com a missão de dar um jeito de imprimir. Nos dias seguintes, o Jaime veio pra Formosa, pra convencer minha irmã Lúcia a revisar a revista, “de grátis”. Com a primeira revista impressa, a próxima tarefa foi montar o Conselho Editorial.
Jaime fez questão de visitar, explicar o projeto e convidar pessoalmente cada conselheiro e cada conselheira (até a doença agravar, nos seus últimos meses de vida, nunca abriu mão dessa tarefa). Daqui rumamos pra Goiânia, para convidar o arqueólogo Altair Sales Barbosa, nosso primeiro conselheiro. “O mais sabido de nóis,” segundo o Jaime.
Trilhamos uma linda jornada. Em 80 meses, Jaime fez questão de decidir, mensalmente, o tema da capa e, quase sempre, escrever ele mesmo. Às vezes, ligava pra falar da ótima ideia que teve, às vezes sumia e, no dia certo, lá vinha o texto pronto, impecável.
Na sexta-feira, 9 de julho, quando preparávamos a Xapuri 81, pela primeira vez em sete anos, ele me pediu para cuidar de tudo. Foi uma conversa triste, ele estava agoniado com os rumos da doença e com a tragédia que o Brasil enfrentava. Não falamos em morte, mas eu sabia que era o fim.
Hoje, cá estamos nós, sem as capas do Jaime, sem as pautas do Jaime, sem o linguajar do Jaime, sem o jaimês da Xapuri, mas na labuta, firmes na resistência. Mês sim, mês sim de novo, como você sonhava, Jaiminho, carcamos porva e, enfim, chegamos à nossa edição número 100. E, depois da Xapuri 100, como era desejo seu, a gente segue esperneando.
Fica tranquilo, camarada, que por aqui tá tudo direitim.
Zezé Weiss
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